Volume 1
Capítulo 15: Vagão
— Nem sempre a gente é contratado pra arrumar as coisas, sabia?
— Quê? Mas o que a gente vai fazer agora é arrumar essa bagunça pra eles, não?
— Não é arrumar nesse sentido, jumento.
Roberto deu um soco na parede a fim de chamar a atenção dos dois.
— Vamo deixar de papo furado e agilizar esse trabalho? Esse trem deve estar saíndo logo mais.
Renan deu dois tapas no chão de terra batida, levantando poeira à medida que limpava a mão na outra e se erguia. Ele suspirou e apoiou as duas palmas na cintura, balançando o quadril para frente e para trás.
— Eu realmente adoraria saber o que rolou nesse vagão, sabe? — perguntou Renan, aquietando seu corpo e se virando para Elisa.
— Pra quê? Faz parte do profissionalismo não fazer perguntas
— Claro, mas quando um vagão pintado de sangue e pedaços humanos é nossa responsabilidade fica complicado não perguntar.
Dando uma boa olhada no interior do vagão, o jovem constatou que sua descrição do interior do vagão do trem não estava completamente precisa. Exceto por um terço dele, todo o resto estava completamente coberto de sangue e restos possivelmente humanos, mas amorfos demais para se dizer com certeza.
— Quer dizer então que esse é o motivo de a gente não poder entrar feito pessoas normais nesse trem, né? — questionou Roberto, pondo a mão na cintura. — Há, há! Pelo menos esse lugar no meio do mato não é tão suspeito mesmo.
— Vocês entendem rápido, hein? E Renan, vai ficar sem sua resposta — Elisa retrucou rapidamente, como se quisesse cortar logo o assunto. — Eu vou passar logo as instruções para vocês, entenderam? Prestem bem atenção.
Renan suspirou, mas fez como a mulher havia pedido e se virou para ela com os braços cruzados e cenho franzido. Roberto, por sua vez, deu muito mais atenção à paisagem de terra seca e mata rasteira, chão batido e céu limpo de prédios e luzes. Era o mais natural possível, melhor que a praia de Recife ou da Megalópole Costeira do Brasil¹. A luz do sol brilhou nos olhos do grande homem, que cerrou os olhos e, enfim, decidiu prestar atenção à mulher perante ele.
— Esse trabalho deve ser o ,aos simples que vocês receberam até agora — começou, projetando uma apresentação de slides com as informações na parede de metal do vagão. — Vocês só tem que fazer a limpeza dessa bagunça antes de chegarem no ponto de descarga desse trem, que vai acontecer lá em Caruaru.
— Quê? Caruaru? Isso não é, tipo, aqui do lado? — perguntou o jovem, erguendo o cenho direito.
— Umas duas horas de viagem não é tão do lado assim, tá ligado?
— Claro que é, Roberto. É rapidinho chegar lá.
— É, mas a rota vai dar umas voltas em outras cidades antes de descarregar lá — disse Elisa, rispidamente. — Se vocês fizerem, tudo direitinho vai dar tempo e ainda sobra.
— E o que tem de errado pra dar? Vai, quanto tempo a gente têm?
— Sei lá, Renan, o bastante, só façam!
O jovem já havia entendido que Elisa não estava para brincadeira naquele dia. Apesar de parecer estar tirando uma com ela, sua pergunta era genuína e definiria o ritmo de seu trabalho de limpeza. Roberto também parecia estar interessado na questão do tempo, por mais que estivesse transbordando tédio acima de tudo.
— Eu não queria entregar isso, mas tô tentando ser otimista com relação a vocês. — O moça meteu a mão no bolso de seu shorts jeans e puxou um cartão preto furtacor. O olhou e suspirou profundamente antes de o estender aos empregados. — O contratante mandou isso como uma regalia por aceitarmos o trabalho.
— Que é? — disse Roberto, pegando o cartão e o levantando contra o sol a fim de admirar seu brilho. Renan acompanhou com os olhos, quase como hipnotizado.
— É um cartão ilimitado. Todo de vocês. Podem pedir e comprar qualquer coisa que quiserem de dentro desse trem ou de suas paradas e passar nesse cartão que vai ser totalmente da conta do contratante.
— Urra! Que foda! — Os olhos de Renan brilharam. — E ainda tem pagamento?!
— Sim… Quer dizer, pra você não, tudo que você ganha é meu, então aproveita pra comprar bastante coisa viu, moleque?
Roberto riu da cara de Renan, que perdeu metade de seu entusiasmo ao ser lembrado da trágica realidade a que estava submetido.
— Claro… claro que sim…
— Mas eu imploro a vocês, pelo amor de Deus, façam essa porra desse trabalho! — ela implorou, juntando as mãos em forma de súplica.
— Sério mesmo, mulher, do quê que você tá duvidando? Acha que a gente não vai conseguir fazer, é? — indagou o jovem mais uma vez.
Elisa coçou os olhos com a mão direita e com a esquerda apontou para o homem alto e forte, que logo soltou um riso de canto de boca.
— Eu conheço esse cara há anos, Renan. Quando se trata de limpeza, procrastinar é com ele mesmo.
— Há! Pera aí, né colega, também não é assim que eu faço — o alto provocou, usando seu indicador direito para tocar repetidamente o tipo da cabeça da moça.
— É exatamente assim! — bravejou, dando um tapa na mão de Roberto e tornando seu olhar para Renan. — Já você, moleque, não sei o quão proativo é em faxina, mas é bom que seja bastante.
Ela não concluiu o que iria dizer, mas sentiu vontade de explicitar que a fonte de seu otimismo raso sobre esse trabalho vinha totalmente das esperanças de Renan ser um bom faxineiro ou de, no mínimo, ser menos preguiçoso que o seu parceiro.
— Se não confia nesse cara pra isso… — começou o jovem, descruzando os braços e pondo a mão na cintura. — Então pra quê escolheu ele?
— Falta de opções, sinceramente — Elisa respondeu na lata.
Fato era que ela mesma estaria ocupada durante todo aquele dia, sem contar que Gab havia arrumado um comprovante de última hora e Cypher sequer era membro oficial do grupo — tava mais pra um freelancer. Deixar nas mãos dos dois que sobraram era a única coisa possível, tirando, é claro, negar uma bolada enorme de grana.
— Por fim — a mulher anunciou, olhando para os dois e, logo em seguida, para o interior do vagão. —, tudo que vocês vão precisar pra fazer a limpeza já tá lá dentro. Separem qualquer pedaço orgânico numa sacola preta e descartem em alguma das paradas que vão ser feitas. Descarte, preferencialmente num lugar vazio e sem testemunhas.
Roberto, como uma criancinha do jardim de infância, ergueu sua mão o mais alto que conseguiu e deu alguns saltinhos enquanto mantinha um sorriso perverso no rosto. Elisa parou sua explicação e o olhou sem nenhum brilho nos olhos, mas o homem não falou até que ela ordenasse.
— Obrigado… Bom, minha dúvida é se alguém desse trem sabe dessa bagunça aqui. Não vamos ter a ajuda de nenhum funcionário? Nem pra acobertar essa parada?
— Isso não ficou claro e não importa, só façam o que eu tô dizendo que vai dar certo.
— E se formos vistos? — perguntou Renan.
— Se fizerem, de uma vez e do jeito certo, não vão ser vistos.
— Mas se formos? — foi a vez do Roberto questionar.
A pálpebra da moça tremeu. Suas veias dilataram, e seu punho cerrou. Os lábios da moça se contorceram como se eles mesmos quisessem se calar e engolir todo o veneno que estava prestes a pôr pra fora. A inspiração e expiração pesada levantou certa poeira do chão e levou dois segundos até que os olhos da moça deixassem de fazer força e se abrissem novamente.
— Vocês tão acabando com, meu dia, que já não tá fácil, então pela última vez, façam o que eu mandei!
Dessa forma, sem mais explicações ou adulação, a moça deu meia volta e caminhou até uma estrada de terra próxima dos trilhos. Abriu a porta de um carro que ali estava estacionado, entrou, deu partida e aí sim partiu.
Os dois faxineiros recém formados olhavam-na ir embora erguendo uma cortina de poeira e logo depois se entreolharam.
— Desde quando ela tem aquele carro, Roberto?
— Deve ter sido ,aos uma regalia temporária desse contratante.
— Acha que é alguém muito importante?
— Tem mais a cara de uma big-tech tentando se passar por alguém.
— Sério? — Renan cruzou os braços e ergueu a sobrancelha. — Como cê sabe?
— Anos nessa indústria, meu caro… anos…
Enquanto Renan contemplava a sabedoria de seu amigo e enquanto Roberto mostrava seu saber, o vagão atrás dos dois começou a, misteriosamente, se mover. Foram poucos centímetros, depois metros e então, alguns segundos depois, já estava em completo movimento. Os dois levaram alguns segundos para perceberem algo, mas quando notaram a partida do trem tiveram que ter mais forças nas pernas do que imaginavam.
— Eu… acho que entendi… o que ela quis,,, dizer…
— É… eu acho que foi… só impressão sua…
Ambos, ofegantes, por algum milagre do atletismo, se encontravam dentro do vagão moribundo. Largados no chão do vagão, erguiam-se aos poucos do salto que fizeram para entrar.
— Sorte que… esse sangue já tá seco, né…?
— É, não queria sujar minha roupa, moleque.
Deram uma boa p;nada no interior, na cena que estaria num filme de terror slasher sem a menor dificuldade — se é que já não esteve antes — e sentiram um certo e devido incômodo.
O lugar tinha um cheiro fétido, amargo e pesado. Doía nos pulmões respirar aquele sangue seco e carne apodrecida. A verdadeira morte havia passado por aquele vagão e tinha levado no mínimo três vidas, ao menos foi o que Renan conseguiu contar dos pedacinhos destroçados de carne, entranhas e ossos, talvez até miolos — se é que não haviam sido pulverizados ou pior, esmagados pelo chão e paredes.
Poucos lugares do vagão não haviam sido manchados de sangue ou tinham pedaços presos. Era possível ver algumas coisas muito bem cobertas e vedadas preenchendo o espaço. No canto do vagão, à direita dos dois, alguns equipamentos, químicos e esfregões prontos para a ação.
Enquanto Roberto fechava a pesada porta lateral do lugar, Renan se aproximava dos equipamentos e acendia um interruptor que se encontrava logo acima deles. A iluminação avermelhada da única lâmpada do vagão dava um clima ainda mais incômodo à visão.
— Bom, acho que essa lâmpada é o ponto de começo perfeito, né não? — comentou Roberto, descontraído e sorridente.
Vendo a calma e leveza do homem, Renan logo foi levando a questão com menos peso. Soltou um suspiro e, com a mão na cintura e um igual sorriso no rosto, concordou com seu parceiro.
Ambos logo se paramentaram com luvas e máscaras descartáveis , cada um pegou um paninho — que umedeceram em um dos baldes d'água do canto — e se posicionaram embaixo do alvo. Não levou mais que uma olhada entre eles para que logo tivessem a ideia perfeita para realizar aquela missão.
Ao finalmente conseguir equilibrar e erguer Renan em seus ombros, Roberto foi subindo aos poucos até ficar na altura perfeita para que seu colega conseguisse limpar o sangue da lâmpada e lustra-la.
— Isso aí, só,aos um pouquinho, aguenta aí! — o jovem incentivava. Para Roberto não era nada demais, apenas fazia rir e fingir uma fraqueza perante o peso nada alto do jovem. — Isso aí, foi! Tá limpo!
— Boa, moleque!
Logo, o gigante o desceu e, orgulhosos, olharam para o alto e viram a bola bola brilhante iluminar suas manhãs.
— Nossa… Tão brilhante quanto o sol… — comentou o jovem.
— Extremamente inspirador… — completou o gigante.
Admirados com sua proeza, deram um “toca aqui!” em comemoração.
— E aí? Alguma outra boa ideia, moleque?
Renan o olhou, ponderou, observou o espaço novamente. Talvez pudessem começar catando os pedaços, quem sabe limpando logo o sangue do lugar… ele não tinha tanta certeza de qual era o próximo passo.
— Vem cá, cê não tem nenhuma, não? — Jogou a bola [tá Roberto, que também pareceu pensar um pouco antes de dar a sua resposta.
— Sabe… — Ele levou a mão ao rosto, abaixando a máscara. — Que tal a gente sair uma descansada agora? O descanso dos justos?
A ideia era boa, melhor que qualquer ideia que o jovem Renan poderia sequer pensar em dar. Com ambos em acordo, foi fácil deixar as luvas e máscaras de lado e saírem do vagão pela porta que o conectava ao próximo.
— Tá com o cartão aí? — Perguntou Renan, alongando seu corpo.
— Bem aqui. — Roberto, por sua vez, mostrou o cartão furtacor entre seus dedos.
Os dois deram boas risadas enquanto passavam pelos vagões de carga, levaria alguns minutos até finalmente chegarem em algum que continha pessoas — inteiras —, produtos compráveis e assentos bastante confortáveis.
Nota:
1— Megalópole costeira se trata de um complexo de cidades capitais da costa do Brasil. São cidades independentes e de prefeitos próprios, mas tão grandes que se conectam espacialmente e, em muitos casos, qualquer fronteira se torna imperceptível. Tal complexo é bem mais ligado da metade do Brasil para o sul, mas ainda tem suas zonas de convergência da metade para o norte. No fim, uma vista espacial da costa brasileira demonstra o que parece ser uma única cidade extremamente brilhante que vai de norte à sul do país.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios