Volume 1
Capítulo 5: Devorador de Sonhos
“Feio?”
Foi a primeira coisa que Ezkiel pensou ao ouvir a fala do prisioneiro à sua frente.
Parecia meio insano pensar nisso após toda a dor que sentia, mas Ezkiel nunca tinha sido chamado disso.
— Pelos Fragmentados! Olha a sua cara! Parece que eu fui o primeiro a dar essa notícia!
O prisioneiro riu o mais alto que pode. Sua risada bela ao mesmo tempo triste foi desaparecendo aos poucos. Ele encarou-o mais uma vez, seus olhos brilhando em âmbar se estreitaram.
— Talvez eu tenha mesmo sido o primeiro... Me desculpe, garoto, mas você não é uma das beldades que um homem como eu gostaria de ver após anos de aprisionamento!
A risada vazou baixa desta vez pelo ambiente, como uma piada de mau gosto guardada por anos nessa escuridão indomável, na qual apenas as correntes e o homem permaneciam.
— Eu apenas quero voltar pra casa!
A voz fina de Ezkiel parecia sintonizar perfeitamente com a fala. O corpo machucado também queria voltar para sua casa.
O homem o encarou em silêncio. Observava a súplica do garoto com desconforto, sabendo que não era possível voltar para casa. Nenhum prisioneiro daquele local jamais voltou. E não seria o garoto surrado, desnutrido e completamente machucado que sairia desse inferno. A prisão já era ruim na época de sua construção, há de se saber como está no mundo atual.
— Ah, garoto, não chore pelo que já foi! Uma das verdades desse mundo é que tudo sempre tende a piorar. O bom sempre será o presente, e o melhor sempre será a lembrança! Por isso, Ezkiel, aproveite o seu agora. Sua situação poderia ser pior... E logo será!
Ele deu uma grande gargalhada, como se zombasse dessa verdade.
— Escute as minhas palavras, rapaz, esse tesouro ninguém por todas essas terras irá te contar.
O homem acorrentado tinha um ar sábio, porém a forma com que falava parecia mais uma filosofia de bêbado. Algo que Ezkiel não conseguia entender.
— Esse sonho cada vez tem menos sentido! Merda, merda, merda! Eu só quero acordar!
A fala fina e infantil saiu de sua boca em enorme frustração. Nesse ponto, Ezkiel já não se importava mais em manter-se em silêncio. Estava cansado de todo esse sonho e suas loucuras.
Ele esperou em silêncio alguma resposta sarcástica, lição de vida, uma risada tosca... ou todas ao mesmo tempo. Porém nada ocorreu, apenas o silêncio sem fim.
Encarando o rosto do homem, Ezkiel notou uma expressão diferente surgindo. Um misto entre pavor, descrença e frustração irônica. Os olhos dele se estreitavam, analisando cada movimento de Ezkiel como únicos. Um sorriso torto, com a boca levemente trêmula, entre a raiva e o entretenimento, surgia e desaparecia a cada pensamento, até sua boca se abrir em um grande suspiro.
— Quem diria... Um Coletor de Sonhos... E ainda falam que eu não conheço esse mundo! Como disse, o destino sempre tende ao pior! Sempre soube que eu era o mais odiado, mas a esse nível?
Uma risada triste saiu de sua garganta, uma demonstração de raiva contra o próprio mundo, contra o próprio destino.
— Mandar o Coletor de Sonhos... É mesmo um dos seus grandes desejos excluir a minha existência desse mundo! Já não bastavam os meus feitos, agora... meus sonhos...
Um clima fúnebre instaurou-se no aposento. A dor que Ezkiel sentia ao entrar em contato com a sala escura voltou, com uma pressão assustadora em seu âmago, tentando dilacerar seus órgãos por dentro, abrindo espaço à força para o rompimento de algo dentro de seu ser que ele nem sabia que existia.
O garoto tombou de joelhos em meio às correntes, na frente do homem que apenas o encarava com olhos fuzilantes de um predador. Ezkiel começou a chorar lágrimas vermelhas de sangue, enquanto, por todos os orifícios de sua face, gotas escarlates escorriam.
A confusão preencheu sua mente, misturando-se à dor. Não conseguia mais pensar, e cada vez que tentava, sentia os órgãos serem rasgados por dentro. A única ação que conseguiu fazer, com muita dificuldade, foi levantar o rosto e encarar o homem acorrentado à sua frente.
Por sua vez, o homem apenas o observava morrer ali, sem nenhuma reação.
Encarava em silêncio, enquanto a própria existência matava o garoto. Os olhos se estreitaram mais, analisando cada segundo da dor que Ezkiel sofria, apenas esperando que aquilo acabasse logo.
Porém, ele era resistente.
Estava aguentando por tempo demais, e o que deveria ser uma morte rápida tornara-se uma tortura.
— Chega! Inferno, garoto! Não podia morrer logo?
Toda a pressão sobre o ambiente desapareceu, como se nunca tivesse existido.
Apenas o sangue que banhava o corpo de Ezkiel e suas lembranças da dor extrema repercutiam na cena.
— Achei que poderia te dar um fim rápido! A sua esperada volta pra casa, seja lá de onde vocês, Coletores de Sonhos, vêm!
Ezkiel ainda estava congelado, recuperando-se do choque de ter quase morrido novamente.
Esse pesadelo nunca acabava.
Não se podia confiar em ninguém.
Nunca se estava seguro...
Aos poucos, ele começava a entender como as coisas funcionavam.
Devagar, segurou a adaga com as duas mãos, mantendo a força nos punhos.
Se o homem tentasse novamente, ele tentaria atacar antes. Acreditava que aguentaria tempo suficiente para efetuar o golpe, se estivesse preparado mentalmente.
— Não acho que isso será muito útil contra mim, Coletor. Mas faça como achar melhor... Não te atacarei novamente, então apenas faça seu trabalho logo.
O homem inclinou o rosto para frente e deu um belo sorriso. Conversava com um antigo amigo.
— Devore meu sonho. Me mate!
A adaga se afrouxou em sua mão. Nunca em sua mente havia pensado em matar alguém, e agora um homem estava pedindo para matá-lo. Mesmo que há poucos instantes estivesse pensando em se defender, a ideia de matar alguém era muito oposta do que acreditava. Machucar para se proteger até fazia sentido. Entretanto, após tudo que estava passando, outros caminhos se abriam.
Ele não havia parado para analisar as mudanças em sua mente.
— Matar você? Não... Por quê?
A voz de Ezkiel saiu trêmula apenas ao imaginar o ato. O homem, por sua vez, voltou a gargalhar alto, sem conseguir parar de rir até sua voz falhar.
— Como não? Que tipo de Coletor de Sonhos é você que não quer me matar? Não é pra isso que está aqui, Ezkiel Arcs? Me matar e coletar o meu sonho?
O prisioneiro tinha um ar de zombaria na voz, se divertindo com esse destino cruel.
Ezkiel o encarou e gritou desespero.
— Não, não! Eu apenas acordei nesse lugar. Estava fugindo daquelas criaturas e encontrei esse espaço. Não quero matar ninguém!
“Por favor! Apenas acabe logo com esse inferno... Sinto que minha mente vai se quebrar a qualquer instante... Eu... Eu não aguento mais!”
— Bem... Sinto lhe informar, meu caro visitante, mas no momento em que você abriu aquelas portas, quebrando o sigilo, você sentenciou a minha morte. E, se não for rápido, a sua!
Um sorriso simples e enigmático surgiu em seu rosto. Ele agia em tom de brincadeira, mas guardava tantas verdades que Ezkiel nem mesmo conseguia processar. Com toda certeza, esse prisioneiro foi o ser mais singular a qual encontrara em toda sua vida.
— Por isso, não me faz diferença se você retirará minha vida ou eles. Na verdade, pensando melhor, prefiro que você o faça! Não quero dar o gosto a eles de terem me achado vivo!
Ezkiel paralisou.
Esse mundo estava o bombardeando de informações sem parar, e ele não tinha tempo para analisá-las corretamente. Queria fazer perguntas, mas nem sabia por onde começar. E os traumas que vivera ainda repercutiam em seu inconsciente, deixando-o em um estado anestesiado e perdido.
— Eles?
— Claro! Uns acólitos filhos da puta de um Fragmentador!
Ele encarou Ezkiel percebendo sua confusão e como estava completamente perdido. O prisioneiro se forçou muito para segurar o riso.
— Pelos Fragmentados, rapaz, você não sabe de nada mesmo... Como você caiu nessa guerra?
Antes que Ezkiel pudesse abrir a boca para responder, o prisioneiro continuou a falar. Porém, agora havia uma nova emoção em sua voz.
Pena.
Algo que Ezkiel reconheceu muito de longe, como uma experiência conturbada para o corpo, que se arrepiava em calafrios fortes, semelhantes à dor, totalmente desacostumado com tal tonalidade.
— Ande, garoto! Você não tem muito tempo...
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