Volume 1
Capítulo 12: Tesouro
Uma dor tão intensa preenchia sua cabeça que parecia que a testa iria explodir. Seus olhos ardiam ao simples toque das pálpebras, e lágrimas involuntárias vazavam para lubrificar as córneas ressecadas.
— Oh, seu bastardo horrível, sei que está acordando! Se continuar fingindo, vou terminar o que começaram com você.
Ezkiel não teve tempo de se recompor antes que a voz feminina gritasse em sua direção. Ela parecia irritada, mas era possível sentir um tom de medo em seu discurso.
Ele abriu os olhos lentamente. Viu o chão de madeira antiga e as correntes de seus braços e pescoço jogadas contra o solo. Sangue seco grudava os trapos velhos de suas roupas às costas, colando-os à madeira.
“Não! Não! Não! Eu estou de volta nesse inferno! Como? Puta merda! Eu desmaiei por causa dos símbolos no site?”
A mulher não estava em seu campo de visão, e Ezkiel estava confuso demais com seu surgimento abrupto no sonho. Ele passou as mãos pelo rosto, tentando sem êxito aliviar a ardência. A cabeça ainda pulsava, mas o ritmo diminuía aos poucos.
Diferente da última vez, não estava tão perdido; conseguia assimilar melhor as informações. A euforia desesperada que sentira antes diminuía rapidamente, e ele se adaptava à situação de forma surpreendente.
“Esse corpo está mais acostumado com a dor do que o meu corpo real. Deve ser por causa desse talento maldito.”
— Pelos Deuses, você ainda consegue se mexer nesse estado?
Ela deu alguns passos à frente, saindo das sombras do aposento e entrando no campo de visão de Ezkiel. Tudo ainda estava meio turvo, mas ele conseguiu notar seus detalhes.
Era jovem, por volta dos 18 anos. Tinha cabelos castanhos escuros, repicados de forma irregular nas pontas, provavelmente por um corte caseiro. Sua pele, um pouco suja, contrastava com o rosto oval que reforçava um ar selvagem. Vestia um simples vestido bege, quase todo escondido por várias peças de armadura de couro: um corset, uma ombreira, cotoveleiras e um par de botas que subiam até as coxas, com uma abertura nos joelhos para prender o tecido.
Quando se aproximou, Ezkiel percebeu que ela segurava um sabre curvo, semelhante aos que via em filmes de piratas com sua namorada. A lâmina, no entanto, estava gasta e levemente torta. O corpo magro a deixava esguia e furtiva, mas a forma como segurava a arma, com as mãos trêmulas, revelava sua inexperiência. Além disso, a adaga de Ezkiel, presa na coxa direita dela por uma tira de couro, a fazia se mover de forma desconfortável. Definitivamente, não era uma combatente.
— Nesse estado, não por muito tempo. — Ezkiel se levantou devagar, a mão esquerda tocando o ombro ferido. Uma onda de náusea pulsou com a dor, mas ele estava começando a se acostumar.
As correntes tilintaram no chão. Ele percebeu que era bem mais baixo que a mulher, o que lhe causou um leve desconforto. Não havia notado sua real estatura até agora.
— Para quem tentou me roubar, você não parece nem um pouco silencioso. — Um sorriso contido surgiu no rosto dela. Tentava parecer valente, mas o tremor acelerado da lâmina denunciava sua farsa.
— Por quanto tempo eu apaguei? — Ezkiel perguntou, tomando a iniciativa. Precisava da informação, e a mulher parecia se sentir no controle.
— O sol já surgiu faz algum tempo. Umas quatro horas, talvez? Um pouco mais? — Ela olhou de relance para a janela, mas, ao perceber o desvio, voltou o olhar para Ezkiel, estendendo a lâmina. — Sorte a sua ter acordado, senão eu teria terminado o serviço. Você está tão acabado que achei que era um Outro, mas Outros não dormem! Talvez eu ainda termine!
“Quatro horas. Esse é o tempo que passei acordado até a escola. Então, meu corpo aqui dentro dorme quando estou lá fora? Merda! O que acontece se ele morrer? Eu nunca mais sonho ou morro ao dormir”
O arrepio percorreu seu corpo, um alerta instintivo de que a segunda opção era a correta. Ezkiel notara que os instintos deste corpo lhe davam dicas sobre esse mundo, e era melhor segui-los.
— Puta merda — pensou em voz alta, indignado com a armadilha em que o filtro o colocara. Precisaria ser mais cuidadoso toda vez que acordasse, pois poderia ser morto sem nem saber. Se não fosse pela sua aparência teria sido morto.
“Também, com a minha aparência neste mundo, até eu teria medo de mim.”
Um gosto amargo se formou em sua boca e a insatisfação preencheu sua face. Ele se importava bastante com a aparência.
— O quê? Tem algum compromisso? Fale logo, estranho, o que você quer antes que eu te mate! — Ela se aproximou, apontando a lâmina curva para a cabeça dele.
— Eu... — Ezkiel hesitou, pensando no que realmente queria. — Preciso de mantimentos e alguns medicamentos para a minha ferida.
“Preciso sobreviver neste mundo. Tenho que cuidar deste corpo. Nem sei como ainda estou de pé. Okay... talvez esse talento seja realmente útil.”
— Só isso tudo? Cacete! Você está achando que é fácil assim? Invade minha casa e ainda pede mantimentos. Tem sorte de eu te deixar vivo. — A mulher resmungou, abaixando um pouco o sabre. Parecia pensativa; sentia que Ezkiel não era uma ameaça, apenas muito estranho.
— Então, por que me deixou vivo?
Ele se arrependeu da pergunta assim que ela saiu de sua boca. Poderia ter selado seu destino com essa fala, mas estava acostumado a conversar com pessoas normais. Era comunicativo e espontâneo, por isso as pessoas gostavam dele. Mas este era um mundo diferente, com regras diferentes.
— Dois motivos, na verdade! Primeiro, porque sou muito curiosa, e isso me leva a fazer escolhas burras. Segundo, porque você tem algo que pertence a alguém que conheço. — A garota bateu com a mão esquerda na adaga presa à sua coxa.
— Você está falando do guerreiro de um olho só?
A resposta da mulher foi inesperada. Não sabia muito bem digerir a situação. Fora coincidência demais eles dois se conhecerem.
— Então você o conheceu mesmo... Não fez nada com ele, não é? — A voz da mulher se intensificou, e o sabre parou de tremer, firme, apontando para sua boca. — Óbvio que não. Olhe para o seu estado lastimável. O que me deixa confusa é como você ainda está vivo. Barton não é o tipo de homem que deixa pessoas como você vivas, muito menos que dá presentes. — Ela deu uma leve gargalhada enquanto o examinava. Seus olhos fuzilavam as correntes e o estado de suas feridas com uma curiosidade mórbida.
Uma raiva subiu pelo corpo de Ezkiel só de lembrar do homem. Ele o havia deixado para morrer. Pior, para se matar naquela cela. Foi por esforço próprio que conseguiu sair dali. Refletindo melhor, sobreviver à prisão fora uma loucura. Quebrar a parede, fugir dos Outros, encontrar o prisioneiro, descer a prisão pelo lado de fora... tudo isso ferido e desnutrido. Mas não era hora de pensar nisso. Precisava sair daquela situação.
— Eu te conto se você me ajudar com o que eu pedi. Qualquer coisa já basta.
“Eu não tenho nada mesmo. E preciso pensar no que contar para ela. Puta que pariu! Tenho tanta coisa para pensar que sinto que posso ficar horas sozinho.”
A mulher passou a mão esquerda pelo cabelo, bufou e apontou com a espada para o fogão à sua direita.
— Tem carne seca e água ali. Te darei um pano limpo e álcool assim que terminar a história. — Ela manteve a espada apontada para ele, mas gesticulou novamente para que fosse pegar a comida.
O garoto não se conteve. As correntes dançaram contra o solo em uma sinfonia alarmante enquanto ele caminhava, mas ele as ignorou, focado na comida.
Viu alguns pedaços de carne seca escura, dura como pedra. Não se importou. Seu corpo implorava por nutrientes. Só de ver o alimento, saliva escorreu por seu queixo. Como um neandertal, devorou os pedaços como se fossem a melhor comida de sua vida. E realmente era. O ditado "o melhor tempero é a fome" fazia completo sentido. O salgado da carne e a textura quebradiça se desmancharam entre seus dentes. O simples ato de engolir algo sólido lhe deu um prazer quase convulsionante. Parecia que toda a dor de seu corpo havia sumido, substituída pelo gozo de se alimentar. Quando a boca ficou seca, ele despejou a água de um balde direto na garganta, transformando a massa de carne em um bolo suculento.
A cena era horrenda. Ele parecia um porco comendo lavagem. As mãos não paravam de enfiar mais comida na boca e, logo após, despejar água. Uma pasta escura sujava seus lábios e escorria pelo pescoço, prendendo-se no grilhão metálico. Para a sorte da mulher, a comida acabou rápido, deixando apenas o prisioneiro exaurido, raspando o fundo da panela coberta de sal.
— Satisfeito? — Ela o encarou com um olhar de nojo misturado com pena. — Agora, pode ir contando.
Ezkiel voltou a si no instante em que a ouviu. Olhou para o corpo imundo e limpou os restos de comida da boca e do peito com a mão enquanto pensava.
“Isso foi a melhor refeição que já tive... Pena que acabou! Foco, Ezkiel! O que eu conto para ela? Bem, ela já viu as correntes, não dá pra esconder que sou um fugitivo. Ela conhece o filho da puta de um olho, então deve saber que ele explora aquele lugar. Porra! Aqueles acólitos vão perguntar sobre mim... Tudo o que eu disser aqui pode chegar aos ouvidos deles... Pensa! Pensa, Ezkiel!”
— Eu estava na prisão. Não me lembro como fui parar lá. Barton me encontrou quando estava fugindo dos Outros. Me deu essa adaga e mandou eu me virar. Consegui fugir, mas fui atacado. Corri o mais longe que pude e acabei encontrando este lugar. O resto você sabe. — Ezkiel resumiu a história, omitindo a parte da sala escura e do prisioneiro. Precisava dar informações suficientes para satisfazê-la, mas sem revelar tudo.
— Você estava preso na antiga prisão? Quão velho você é? — Os olhos da garota brilharam com súbita compreensão. — Você é um daqueles especiais, não é? Que possuem habilidades únicas?
“Merda... Ela está perguntando demais! O que eu faço?”
— Acho que sim. Não sei ao certo. Estou muito cansado e não estou entendendo as coisas direito. Só sei que acordei preso. Você poderia me ajudar a tirar isso? — Ezkiel apontou para os grilhões, na esperança de conseguir os suprimentos e sumir dali.
— Correntes da prisão... Esse metal é o maior mistério da cidade. A maioria dos exploradores vem aqui só para coletar esse metal antigo. — Ela fez uma pausa, abaixando lentamente o sabre. — Elas são indestrutíveis. Ninguém consegue quebrá-las.
Ezkiel a encarou, sem expressão. Parte de seu mundo desabou naquele momento.
— Indestrutíveis? Como?
— Dizem que foram feitas na Era Antiga, antes dos deuses. Deve ser por isso que Barton lhe deu a adaga. É a cara dele. Como não podia salvá-lo, decidiu que a melhor escolha era você se matar, para ele depois tirar as correntes do seu cadáver. Quem diria que você conseguiria sobreviver... — Ela fez outra pausa, observando as correntes se moverem com a respiração dele. — Nunca ouvi falar de um prisioneiro que saiu de lá vivo. Geralmente, as correntes são retiradas dos corpos e vendidas na torre por um bom preço. Quem consegue um par desaparece daqui; já tem riqueza suficiente para comprar terras no Norte.
As mãos de Ezkiel pousaram sobre os grilhões em seus braços, um peso de tristeza se somando ao peso do metal. Teria que viver com elas até descobrir um método de tirá-las. A esperança de removê-las não havia morrido, mas isso lhe causaria tantos problemas.
“Como vou sair daqui com essas correntes? Meu plano de fugir já era. Não consigo me mover em silêncio com elas. Além disso, aqueles acólitos vão me reconhecer na hora. Merda! Cada vez mais eu me fodo nesse sonho!”
Então, um pensamento ainda pior o atingiu.
— Espera. Você está querendo dizer que eu sou um tesouro ambulante?
— Sim. Suas correntes valem uma fortuna, e só dá para retirá-las de um cadáver.
Ezkiel engoliu em seco e deu alguns passos para trás.
— Então... por que você não fez isso?
A garota embainhou o sabre em suas roupas e afastou uma mecha de cabelo do rosto, revelando olhos castanhos escuros que se afunilaram ao observar o medo na expressão dele.
— Porque eu não sou um monstro. Se eu matar alguém por dinheiro, serei pior do que os Outros.
Um alívio percorreu o corpo de Ezkiel. A própria mente estável se tranquilizou. Ela se moveu para um móvel escondido no teto da casa, retirando de uma gaveta uma garrafa de vidro e alguns panos brancos.
— Venha... Vou tentar dar um jeito nessa sua ferida.
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