Volume 2

Capítulo 81: Manipulações

Em uma cidade outrora próspera, onde as pessoas desfrutavam de liberdade e a escravidão não era uma ameaça, a vida era tranquila. No entanto, tudo mudou no fatídico dia em que Reven caiu, traída por dois irmãos magos que impiedosamente a entregaram a Re’loyal.

O que antes eram ruas vibrantes, agora eram cenários de caos, pontilhadas por latas onde o calor se manifestava em chamas, fornecendo um mínimo de calor para os desabrigados. A liberdade de movimento deu lugar à constante vigilância de soldados corruptos, enquanto a sombra da escravidão pairava sobre todos. 

Filas intermináveis de pessoas acorrentadas que aguardavam a decisão dos que detinham o poder, sem saber para onde seriam enviadas: minas de minérios, fazendas ou casas de nobres privilegiados capazes de adquirir tais cativos? No fim, pouco importava, pois a única certeza imutável que tinham era a de que suas vidas já haviam sido ceifadas, restando apenas cascas vazias destinadas ao trabalho forçado.

E, acima de tudo, acima de toda vida, estavam aqueles que detinham o poder: Dalian e Delilian, os governantes provisórios da cidade, mas já se autodenominavam reis após quatro anos no comando.

Sentado no trono, encontrava-se Dalian, um mago de meia-idade, de pele branca e estatura mediana. Seus cabelos negros caíam elegantemente sobre os ombros, enquanto vestia uma túnica nobre na cor azul.

Ele observava Delilian, seu irmão, parecendo absorto em pensamentos e preocupações. Seus olhos fixavam o horizonte distante, perdidos em reflexões que pareciam consumi-lo.

— O que está te afligindo? — perguntou, rompendo o silêncio que envolvia o ambiente.

— Hã? Ah, Dalian… — Delilian, o irmão gêmeo de Dalian, ergueu os olhos, revelando a mesma expressão serena, porém carregada de inquietação. Suas feições eram uma réplica exata das de Dalian, desde as vestimentas até os traços faciais, exceto pela altura, já que Delilian era ligeiramente mais baixo. — Estou apenas preocupado com o comunicado de Re’loyal.

Dalian inclinou-se levemente para trás, apoiando-se no trono, enquanto seu olhar vagava pela majestosa sala do trono, que se encontrava vazia, apenas com a presença dos dois.

— Entendo. Não há com o que se preocupar. Nossa função é apenas observar enquanto os soldados marcham…

— Não acredita que é prematuro avançarmos sobre outra cidade de Aldemere? — questionou, erguendo uma sobrancelha com preocupação evidente.

— Prematuro? Já se passaram quase cinco anos desde que conquistamos Reven. Na minha opinião, já era hora. Estava começando a pensar que Re’loyal havia se acovardado completamente.

A conquista de Reven já fazia quase cinco anos, marcada por uma batalha sangrenta que culminou na vitória liderada por Re’loyal. Esta cidade era uma das joias da coroa de Aldemere Dominium, após sua capital. No entanto, desde então, o avanço das forças invasoras estagnou, deixando um vazio de atividade até o momento presente.

— O que me inquieta é o que Aldemere está tramando… — Delilian avançou, posicionando-se aos pés da escadaria do trono e encarando Dalian com evidente apreensão. — Por mais que eu reflita e tente compreender, não consigo conceber que eles simplesmente não tenham reagido desde que conquistamos esta cidade... Não faz sentido!

De fato, desde a queda de Reven, Aldemere Dominium permaneceu inerte, sem enviar expedições ou tentativas de reconquista. A aparente indiferença do rei Bartolomeu perante a perda de uma cidade tão estratégica como Reven perturbava profundamente o mago. 

— Quando colocado dessa forma... — murmurou Dalian, levando a mão ao queixo em reflexão. — Não creio que seja por covardia; provavelmente estão tramando alguma estratégia maluca...

Um sorriso malicioso dançou em seus lábios ao imaginar desvendar e acabar com tal engenho. Em contraste, Delilian parecia à beira de se encolher num canto, abraçando os próprios joelhos.

— Talvez seja melhor parar de remoer isso... — Ele reconheceu, sentindo-se à beira da insanidade, e mudou de assunto: — E quanto a ela?

— Mani? Hmmm... desde aquele dia, ela não consegue nem se levantar da cama... — Dalian ergueu-se do trono. — Parece estar em algum tipo de coma, talvez para facilitar sua regeneração…

Ele desceu os degraus do trono, passando por seu irmão, que o observava de soslaio.

— Mas já se passaram quatro anos... — comentou Delilian, seguindo o irmão. — Você acha que há alguma chance dela acordar?

— Sinceramente? Não. Nunca fui um homem de esperança, esperando que o tempo resolva os meus problemas... — respondeu com calma, alcançando as portas da sala. — Eu crio minhas próprias soluções, minhas próprias esperanças... Contudo, quando se trata dela, estou de mãos atadas.

Delilian coçou a cabeça diante dessas palavras. Ele ansiava pelo momento em que ela acordaria, não porque nutria qualquer apreço por aquela deusa, mas simplesmente para questionar o que havia acontecido com ela, embora já imaginasse que aquela arrogante não diria uma palavra sequer. Com isso em mente, viu Dalian abrir as portas e sair, e logo o seguiu, deixando para trás a sala do trono.

— Dalian, há algo que me preocupa acima de tudo... — disse, enquanto seguia seu irmão pelos corredores do castelo. — Aquele demônio...

— O primordial? — Ele cruzou os braços nas costas. — Realmente, já se passaram quatro anos, e até agora não há notícias dele...

— E isso me preocupa. Um demônio sempre busca o caos... então por que ele...

— Demônios menores agem em prol do puro caos. O que você não considera é que, quando falamos de um primordial, estamos lidando com uma existência superior.

A resposta não tranquilizou a mente de Delilian; ao contrário, apenas o deixou ainda mais preocupado. Afinal, eles estavam com tal existência superior em algum lugar da terra, com certeza planejando algo. 

Os dois atravessaram os corredores bem iluminados, seja pelos lustres pendentes ou pelas amplas janelas que deixavam entrar a luz solar. Em breve, chegaram à saída do castelo. No entanto, o destino de Dalian os levava além daquela estrutura, então contornaram-na até alcançarem o campo de treinamento.

O local era vasto, cercado por arquibancadas. Em tempos prósperos da cidade, competições de esgrima e outros jogos eram realizados ali, e todos os cidadãos do reino eram convidados a assistir, pelo menos até que todos os assentos estivessem ocupados.

No centro das arquibancadas, um amplo campo de areia servia de palco para tais competições e para os treinos regulares daqueles com maior influência na cidade.

Os dois se acomodaram nos assentos, observando um jovem solitário treinar sem cessar. O rapaz castigava o pobre boneco de palha com golpes pesados de espada, executando movimentos tão complexos que Delilian mal conseguia acompanhá-los com os olhos. Enquanto isso, Dalian assistia com um sorriso amplo no rosto.

— Aquele jovem... Ele nunca descansa? — questionou Delilian.

— E por que deveria? Ele busca poder, aperfeiçoamento. Ficar parado nunca o levará a isso... — respondeu Dalian, desfazendo o sorriso ao cruzar os braços. — E alguém sem poder não é útil para mim. E se não me é útil, não tem lugar ao meu lado. Mas ele precisa estar ao meu lado para concluir o que deseja. Então, não, Delilian, ele nunca irá parar.

Delilian abaixou a cabeça, perturbado pela resposta de seu irmão. Observou-o com uma mistura de tristeza e frustração, percebendo o quanto ele mudara desde que selara aquele maldito pacto. O Dalian que antes conhecia agora parecia obcecado pelo poder, disposto a usar e manipular quem quer que cruzasse seu caminho.

Mas o que realmente o perturbou foi aquela frase: "Se não tem poder, não é útil." Aquilo feriu Delilian profundamente. Será que, aos olhos de Dalian, ele se tornara dispensável por não possuir os mesmos dons mágicos? A ideia o assombrou, deixando-o questionando se seu próprio sangue seria capaz de descartá-lo em nome de seus interesses egoístas.

Quando cogitou questionar certas atitudes de seu irmão, notou o assento ao lado vazio. Confuso, vasculhou o ambiente com os olhos até avistar Dalian próximo a uma mesinha na borda do campo, onde repousava uma jarra de água e alguns copos. Ele parecia servir-se de um copo e dirigir-se ao jovem, que interrompera seu treino.

— Vejo que está progredindo. Parabéns — congratulou Dalian, oferecendo o copo ao rapaz.

— Não preciso de sua motivação superficial — retrucou o jovem, aceitando o copo e dando um gole.

O mago irrompeu em uma risada estrondosa, como se tivesse ouvido a piada mais hilária do mundo, o que fez o jovem franzir a testa, descontente com a situação.

— Calma... Hahaha! Desde quando você é tão engraçado? — indagou ele, tocando o ombro do rapaz, ainda rindo. No entanto, de repente, cessou a risada de forma sinistra, encarando-o com seriedade. — O que te leva a pensar assim, Dorni?

— Estou ao seu lado há três anos — respondeu Dorni, dando um tapa na mão do mago que repousava em seu ombro, bufando com raiva daquele cinismo irritante. — Conheço você muito bem…

Dorni já estava familiarizado com os maneirismos daquele mago; sabia que ele agia sem se importar com ninguém. Cada gesto, cada palavra, parecia envolto em falsidade. Até mesmo sua risada estrondosa suscitava desconfiança, uma artimanha típica de Dalian.

— Ah, Dorni, você não conhece... — sussurrou o mago, com um ar enigmático. — Mas em uma coisa você acertou, ou quase acertou, não estou aqui para lhe oferecer elogios...

— O que deseja que eu faça? — indagou Dorni, tomando mais um gole d'água.

— Lidere o avanço e o ataque a Citra, nosso último obstáculo antes de conquistar a capital — prosseguiu Dalian, com um sorriso falso e um olhar confiante. — Você é capaz, não é? Afinal, foi o escudeiro pessoal do grande general Erne.

Dalian era um mestre na arte da manipulação, habilmente escolhendo cada palavra com cuidado. E desta vez não foi diferente; ao mencionar o nome de seu falecido mestre, Dorni endureceu o olhar em determinação, o que provocou uma transformação no sorriso falso de Dalian, assumindo uma expressão malévola e ambiciosa.

— Eu liderarei... Mas me responda... — Os olhos estreitos de Dorni cravaram-se no mago, quase o compelindo a recuar. — Após a conquista desta cidade, estarei mais próximo de alcançar meu objetivo?

— Certamente! Você estará às portas de sua tão merecida vingança! — Com dois tapinhas nos ombros de Dorni, Dalian virou-se para partir. — Apenas siga minhas ordens sem questionar, e em breve terá o sangue daquele garoto em suas mãos…

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Nas sinuosas ruas de terra daquela humilde e tranquila vila, onde Alaric havia se estabelecido, o jovem caminhava com atenção aos seus arredores. Ao seu lado, seguia Peng, uma espécie de "guardião" local. Ambos pareciam em busca de algo.

Alaric tentava passar despercebido, o que se mostrava difícil. A cada passo, os habitantes da vila o cumprimentavam calorosamente, oferecendo sorrisos amigáveis, alguns até paravam para trocar algumas palavras.

Alaric, por sua vez, mal respondia ou se envolvia nas conversas, limitando-se a retribuir os cumprimentos com um sorriso forçado. Entretanto, isso não parecia incomodar as pessoas, que já estavam acostumadas com o temperamento reservado do rapaz.

— É incrível como alguém que raramente sai de casa é tão querido... — comentou Peng, observando o comportamento dos moradores. — Mas, pensando bem, até sai, mas apenas até a taverna...

— A resposta está no seu próprio comentário — disse Alaric, olhando para o céu tingido de laranja pelo entardecer. — A maioria dos moradores deste lugar frequenta aquela taverna…

Em um recanto isolado e tranquilo, onde a vida seguia em um ritmo sereno e pausado, a taverna despontava como o único oásis de diversão para os habitantes que labutavam árdua e diariamente. Era ali que encontravam um refúgio para socializar, além de ser um ponto de encontro propício para negociações, uma vez que diversos viajantes, aventureiros e andarilhos também frequentavam o local.

— De fato. Mudando de assunto, o que exatamente estamos procurando? — Apesar de ter acompanhado o jovem desde sua casa, Alaric ainda não havia revelado o objetivo da busca. — Preciso saber para ajudar.

— Você já fez o bastante, é hora de voltar para casa — respondeu o rapaz, num tom áspero, mas tingido de preocupação. — Eu me viro a partir daqui.

— Ahh, já te falaram que você é uma pessoa difícil?  — resmungou Peng, passando a mão pelo rosto, frustrado. — Não ouviu nada do que eu disse sobre não agir sozinho?

Alaric parou subitamente, fazendo com que Peng, que ainda estava com a mão no rosto, esbarrasse em suas costas largas.

Ai! — Foi como se encontrar com uma parede maciça. De imediato, levou a mão ao nariz. — Por que parou? O que foi?

Ao elevar os olhos para o rosto do jovem, notou aquela expressão séria, quase repreensiva, como a de um pai para um filho.

— Você já fez muito por mim — Alaric colocou a mão no ombro de Peng, que ainda parecia confuso, e continuou com suavidade: — Volte para casa, por favor.

— ...Tá, tá — Alaric sorriu, embora o gesto parecesse mais forçado do que genuíno, e afastou a mão do ombro de Peng. — Você realmente é complicado...

Ele virou-se para sair, deu dois passos, mas então parou e olhou para Alaric por cima do ombro.

— Não vá fazer nenhuma loucura... Não quero encontrar seu corpo largado por aí… Ele não gostaria…

O jovem assentiu com a cabeça e, sem mais palavras, Peng começou a se afastar, deixando Alaric para trás.

Alaric sentia uma sensação de satisfação com isso. Embora não assumisse, o jovem se importava profundamente com Peng e preocupava-se com seu bem-estar. Talvez aquele "guarda" fosse a pessoa mais próxima que Alaric tinha de um verdadeiro amigo, apesar da grande diferença de idade. Era a única pessoa com quem conseguia estabelecer uma conexão, apesar de suas barreiras e traumas emocionais.

"Agora posso investigar..." Após a árdua batalha contra tantos homens, o jovem sentiu-se intrigado. Era evidente que muitos recursos foram investidos para eliminá-lo, sugerindo que alguém poderoso estava determinado a tirar sua vida. 

Compreendendo que não teria mais paz até resolver esse problema, decidiu que a melhor abordagem seria identificar quem era o responsável por tamanha hostilidade, e tirar satisfação, talvez até a vida.

Enquanto andava pelas ruas de terra batida da vila, as pessoas continuavam a cumprimentá-lo como se fosse alguém próximo. Alaric iria mentir se dissesse que não sentia seu coração se aquecer com isso. Depois de três anos morando nesse lugar, podia dizer que era seu novo lar, o lugar para onde sempre poderia voltar quando estivesse na pior.

"Aquele idiota... me deu sua casa e partiu... Mas acho que devo ser grato a ele, pois, no fim, ele me proporcionou algo pelo qual busquei durante um ano: um lugar para chamar de lar..." Alaric quase deixou uma lágrima escapar de seus olhos, mas conseguiu conter-se a tempo e continuou seu caminho. 

"Hmmmm... essas vestimentas..." Alaric observava alguns indivíduos trajados com uniformes negros, robustos como se fossem armaduras, patrulhando as ruas. Equipados com estacas e punhais, pareciam ser caçadores de vampiros da instituição Van Helsing, especializados em lidar com esse tipo de criatura. "Então há vampiros por aqui?"

Durante toda a sua estadia na região, o jovem só havia ouvido falar uma vez, sobre um ataque de vampiro. Mas a presença de pessoas daquela organização indicava que algo mais sério estava acontecendo.

"Vlad, será que você está por trás disso?" Vlad Drácula, o rei dos vampiros, o próprio ser das trevas. Alaric já havia cruzado seu caminho anteriormente, e poderia defini-lo como intrigante e imprevisível. Naquela ocasião, Vlad havia mostrado interesse pelo rapaz e o convidara para visitá-lo em um lugar chamado Antáres, do qual Alaric nunca ouvira falar. “Será que se eu fosse lá, poderia conseguir mais poder?”

O jovem balançou a cabeça com esse pensamento, sentindo um arrepio percorrer-lhe todo o corpo. Essa reação se dava porque Vlad provavelmente iria querer matá-lo, já que ele havia perdido a força que possuía no primeiro encontro deles. E, ele sabia que o vampiro o mantivera vivo apenas por achá-lo interessante, poderoso.

Por um momento, Alaric considerou abordar um dos membros daquela patrulha para perguntar o por que estavam ali, mas acabou desistindo e os ignorou. Mesmo assim, permaneceria mais alerta aos arredores, pois sabia que vampiros eram perigosos.

— Alaric... — Uma voz rouca, marcada pela idade, ecoou por trás do jovem, fazendo-o virar-se. — Podemos conversar por um momento?

Era a senhora Lia Ying, uma mulher idosa a quem Alaric já havia ajudado antes. Embora sempre demonstrasse gentileza, exibindo um sorriso caloroso, naquele momento suas feições revelavam preocupação. O jovem assentiu com a cabeça, e ela o puxou para um canto.

— Desculpe incomodá-lo, meu jovem... Mas... — Seus olhos se encheram de lágrimas, revelando sua aflição; era evidente que algo sério havia acontecido. — Alaric! Por favor, salve minha neta... Por favor…



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