Volume 1

Epílogo

O jovem voava pelos céus do continente de Mythárea, sem esperança, carregando nos braços aquele que lhe dera um motivo para viver, agora sem vida. O vento chicoteava seu rosto impiedosamente, ele não tinha ideia de sua direção, e pouco importava; apenas ansiava por distância.

“Eu sou o único culpado...” Os murmúrios de autocondenação ecoavam em sua mente. Cada acontecimento, cada escolha, pesava sobre seus ombros como um fardo insuportável. As consequências de suas decisões foram cruéis.

Com a culpa que sentia, apertava os braços ao redor do corpo de seu irmão, pressionando-o contra si mesmo. Sentia ainda o suave aroma que os cabelos brancos de Gideon exalavam, embora seu corpo já estivesse frio como uma pedra de gelo, o calor da vida havia se esvaido.

“Me perdoe, Gi…” Uma única lágrima escorreu por sua bochecha, caindo sobre os olhos fechados de Gideon, deslizando por sua própria face.

“O que é aquilo?”

“Merda, estou perdendo o controle!?” Num instante, percebeu que seu poder estava falhando, e seu voo estava chegando ao fim abruptamente. Começou a cair descontroladamente, agarrando-se com desespero ao corpo inerte de Gideon.

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No majestoso reino de Estudenfel, Aldebaram interagia com os nobres influentes com certo constrangimento. A arte da realeza não fluía naturalmente para ele; algumas conversas giravam em torno da delicada questão sobre o retorno das terras de Windefel. No entanto, o guerreiro não se sentia inclinado a ceder, acreditando firmemente que seria capaz de desenvolver as terras de forma mais próspera do que qualquer outro rei.

O clima era ameno, sem tensões exacerbadas, pois nada estava decidido definitivamente; questões dessa magnitude seriam discutidas pessoalmente entre ele e o antigo rei de Windefel. Contudo, a atmosfera agradável logo se dissipou quando Astrid adentrou o salão e relatou os acontecimentos recentes.

À medida que ela desenrolava a narrativa, as expressões faciais de Aldebaram transitavam do desagrado à ira e, por fim, à melancolia. O sorriso inicial deu lugar a uma expressão sombria.

— Gideon... — O guerreiro os tratava quase como sobrinhos ou filhos; saber da morte de alguém que era sua família mexeu com ele. — Filha, como você está?

Ele conhecia bem o relacionamento dela com Gideon e se preocupava com seu estado. Mas ela parecia estar lidando bem, talvez já tivesse derramado todas as lágrimas que podia.

— Estou bem, pai... — Seu olhar se fixou, sério, em seu pai. — E Alaric? O que faremos?

Aldebaram temia essa pergunta; afinal, ele mesmo não sabia a resposta. Não tinha pistas de para onde Alaric havia ido, apenas abaixou a cabeça resignado, enquanto a melancolia o abatia.

— Encontraremos uma solução... — Nem ele mesmo acreditava totalmente nessas palavras, seu tom diminuindo. — Encontraremos...

Ao erguer a cabeça novamente, percebeu o colapso da expressão de Astrid. Toda sua postura forte desmoronou. Ela sentia a perda, e se sentia perdida, desamparada, sem ninguém. Tudo ao seu redor se transformou de repente em nada; aquele que amava havia morrido, nem mesmo o corpo restou, pois foi levado.

Aldebaram, ao notar toda aquela tristeza, fez o que podia, o que um pai amoroso faria: envolveu-a em seus enormes braços fortes, tentando confortá-la, transmitindo-lhe algum consolo. 

— Estou desolada… tudo acabou… pai… porque?

— Não sei filha, não tenho as respostas… e temo nunca a ter… — Suspirou profundamente. — Vamos apenas esperar por dias melhores…. 

Apos um longo abraço de conforto e apoio, às portas da sala do trono foram abertas e duas figuras surgiram, um príncipe e seu cavalheiro.

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Em Lidenfel, onde Nadine havia se instalado temporariamente, havia uma sensação de alívio misturada com medo entre os moradores. Embora metade do exército tenha sido dizimado, as pessoas estavam determinadas a seguir em frente.

Inicialmente, Nadine estava apreensiva com as intenções do rei em relação a ela, mas surpreendentemente ele não pareceu se importar com o que Alaric fez, e até mesmo pareceu gostar do jovem. Ela ponderou sobre os gostos peculiares de cada um.

Após a partida do grupo, ela havia cuidadosamente recolhido o corpo de Dolbrian e o sepultado no cemitério da cidade. E agora, estava a caminho da saída da cidade.

“Que dor…” Uma dor estranha apertou o peito de Nadine, como se tivesse perdido alguém importante, como se o mal estivesse se desenrolando e ela não pudesse intervir.

Apesar das sensações desconfortáveis, ela seguiu em frente em direção à saída da cidade, determinada a continuar sua jornada sozinha e talvez um dia libertar Re’loyal das garras de seus governantes opressores.

"Alaric... como estará ele?" Ela não guardava ressentimentos por ele tê-la deixado para trás, afinal, foi sua escolha ficar. Na verdade, ela se preocupava com seu antigo companheiro e desejava saber de seu bem-estar.

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No domínio tranquilo e sereno de Fuxi, a quietude reinava enquanto o lobo terminava de enterrar cada membro de sua família, cuidadosamente colocando-os para descansar. Diante do túmulo de seus entes queridos, uma lágrima solitária escapou de seus olhos, tingindo seu pelo branco.

— Tenham um descanso digno... — Sua voz carregava uma mistura de tristeza e amor. — Amei, amo e sempre amarei vocês…

“Como será que está o Alaric?” De repente uma sensação ruim tomou seu peito, apertando-o, Fuxi já entendia o que era, o que significava aquilo.

— Garoto... — Ele murmurou, resignado. — Nesses momentos, nem o caos pode fazer algo…

“Que você fique bem, Alaric…. Que você fique bem…” 

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No solo onde Alaric aterrissou, envolto por uma densa floresta, o pouso se revelou turbulento, mas ele conseguiu pousar com habilidade, apesar dos últimos vestígios de seu poder. 

“Onde estou?” pensou, sentindo a umidade envolver seu corpo, uma mudança marcante do clima seco que conhecia no norte e no meio do continente. Ao vasculhar o ambiente, seus olhos encontraram milhares de árvores, muito mais densas e imponentes do que as do norte, com pinheiros altivos dominando a paisagem e algumas sequoias majestosas com seus troncos robustos.

O ar úmido provocava gotas de suor a escorrerem pela testa de Alaric, enquanto a opressiva densidade da floresta dificultava sua respiração, envolvendo-o em um ambiente sufocante. A vida selvagem se manifestava esporadicamente, enquanto os insetos zumbiam, infligindo pequenas picadas em sua pele.

Com Gideon ainda nos braços, ignorou os insetos que castigavam sua pele e adentrou um pouco mais entre as árvores. A floresta parecia emanar uma aura ancestral, carregada de mistério e misticismo. O solo variava entre gramíneas, musgos e arbustos, contribuindo para a sensação de densidade que pairava no ar.

“Que calor...” resmungou em pensamento, sentindo o abafado do ar úmido, enquanto o vento escasso falhava em proporcionar qualquer alívio, deixando suas roupas grossas encharcadas de suor. Após um breve percurso, deparou-se com estranhas árvores, logo identificadas como bambus, embora ainda desconhecidas para ele.

Adentrando o bambuzal, logo percebeu a péssima escolha, uma vez que a vegetação se revelou ainda mais densa, com os troncos finos e altos se fechando ao seu redor, dificultando cada passo. Apesar das adversidades, persistiu, até que finalmente sua determinação foi recompensada com a visão de um paraíso escondido entre as hastes de bambu.

Diante de seus olhos se estendia um lago sereno, alimentado por uma pequena cachoeira que ecoava um suave som de água caindo incessantemente. Ao redor do lago, arbustos frutíferos pontilhavam a paisagem, enquanto o bambuzal se afastava, criando uma clareira acolhedora.

— Aqui será um bom lugar para o seu descanso… — murmurou, com voz embargada, ao depositar com cuidado o corpo de Gideon no chão. 

Em seguida, começou a cavar, sem pausas, até que a cova estivesse pronta para abrigar aquele a quem tanto amava.

— Adeus, Gideon... — sussurrou, segurando o corpo do irmão e depositando-o com delicadeza na cova. — Eu te amo... e me perdoe...

A Escolion, embainhada junto ao corpo de Gideon, brilhou intensamente e, com um lampejo, flutuou até a altura do rosto de Alaric, como se estivesse se despedindo. E então, desapareceu, aguardando pacientemente até encontrar um novo escolhido para se manifestar novamente.

Assim, entregou-se ao doloroso dever de sepultar o corpo, sentindo que a cada punhado de terra lançado no buraco, um pedaço de sua alma e coração iam juntos. Não havia mais espaço para sorrisos, apenas lágrimas marcavam o rosto daquele jovem, enquanto a amargura da culpa pairava sobre ele como uma sombra.

Quando o último grão de terra foi depositado,  Gideon repousava finalmente em paz. Caminhando em volta do lago, Alaric encontrou algumas pedras, que recolheu. Organizou-as por tamanho e escolheu um pedaço que pudesse servir como "caneta", então, com a maior delas, escreveu algumas palavras. Depois, colocou todas as pedras sobre o túmulo de Gideon, transformando-as em uma lápide improvisada.

Com isso, nada mais havia a ser feito. Tudo estava terminado para Alaric. Os sentimentos, inclusive a felicidade que um dia existira em seu coração, agora eram apenas sombras distantes. Restava-lhe apenas a culpa e o rancor, consumindo-o por dentro.

Assim, enquanto uma leve brisa agitava seus cabelos vermelhos, ele se virou para partir, decidido a nunca mais olhar para trás. A partir daquele momento, Alaric estava sozinho, e assim permaneceria, convencido de que qualquer um que se aproximasse dele estava fadado a perecer por sua culpa.

“Aqui jaz um grande homem, que pereceu no lugar do morto que agora caminha. Perdoe-me.” Essas eram as palavras gravadas na lápide improvisada de Gideon, palavras pesadas que assombrariam Alaric pelo resto de seus dias.



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