Volume 1

Capítulo 75: Inglória

Após a morte do rei, Alaric e os outros dois permaneceram na sala do trono por um tempo. Durante essa pausa, Alaric consentiu que o cadáver fosse removido para um local apropriado para o enterro.

Com todas as questões relacionadas a Estudenfel resolvidas, Alaric pôde focar no que realmente importava para ele. No entanto, ainda havia uma última questão a ser abordada em relação a esse reino.

— Eles vão precisar de um novo rei — afirmou Alaric, com os braços cruzados logo abaixo das escadarias do trono.

— Preferencialmente alguém que respeite suas crenças e aja com bondade e compaixão — completou Gideon, ao lado de seu irmão.

Como se estivessem em sintonia, os dois se entreolharam e abriram um sorriso. Em seguida, dirigiram seus olhares para Aldebaram, o guerreiro que mais respeitava os valores do norte.

No entanto, ao receber esses olhares presunçosos, Aldebaram ficou sem jeito e confuso, como se tivesse um ponto de interrogação pairando sobre sua cabeça.

— Como você é lerdo… — Alaric se aproximou do guerreiro, tocando-lhe no ombro. — Você será o novo rei...

Aldebaram quase deu um salto para trás com essa afirmação, seus olhos se arregalaram intensamente. Ser rei estava muito além de sua alçada.

— Tá maluco!? — Ele nunca teve qualquer preparação para comandar um país, ainda mais um país com tantos problemas como Estudenfel. — Tô fora!

— Eles precisam de você, Aldebaram… — Gideon aproximou-se calmamente do guerreiro, seus olhos azuis pareciam crescer cada vez mais, quase como um gatinho pidão. — Aceite…

Perante tais palavras, simples, porém carregadas por aquela expressão tão gentil, era quase impossível recusar. O guerreiro levou a mão aos cabelos, que com certeza cairiam ao enfrentar tantos problemas como rei. Às sobrancelhas franziram levemente em irritação enquanto ele respondia:

Tsc… Posso tentar… —  Apontou o dedo para Alaric, que tomou um leve susto. — Quero ver como você fará os nobres aceitarem alguém como eu no comando.

— Relaxa… — Alaric tirou a mão do ombro dele e se dirigiu às portas, abrindo-as. — Eles já vieram presenciar sua nova majestade.

Conforme as portas se abriam, o queixo de Aldebaram ia caindo. Quando estavam completamente abertas, a imagem de centenas de pessoas se formava na entrada.

— Desde quando, Alaric...? — indagou Gideon, surpreso, quase incapaz de fechar a própria boca.

Alaric lançou-lhes um olhar confiante por cima dos ombros. O jovem havia tomado a iniciativa de permitir que retirassem o corpo do rei e solicitado que alguns dos soldados ainda íntegros convocassem todos os nobres para uma reunião, já noticiando a morte do monarca.

Essa ação por si só eliminou o problema que irritaria Alaric: o risco de alguns nobres simplesmente não comparecerem, o que o obrigaria a fazer visitas desagradáveis a essas pessoas e explicar o que ocorreu. No fim, o jovem só poupou tempo.

Com isso, os nobres entraram na sala. No início, houve uma leve comoção, rapidamente controlada pela atitude autoritária de Alaric. Em seguida, ele explicou tudo que pretendia. Houve outra comoção, devidamente controlada. No final, todos aceitaram.

Isso foi facilitado por diversos motivos que o próprio rei morto havia criado. Os nobres estavam insatisfeitos com sua administração, suas políticas de fechamento da fronteira e impedimento do comércio com outros reinos estavam desestabilizando economicamente Estudenfel, causando crises internas. Além disso, os desvios de verba para o exército intensificaram essas crises e a pobreza, quase levando a uma revolta.

Com as promessas de abrir as fronteiras, se abrir ao mundo como um todo, diminuir a verba exorbitante do exército, mas sem abandonar suas crenças e permitir que as pessoas fossem livres para crer no que quisessem, os nobres quase unanimemente aceitaram Aldebaram como rei. Outro motivo para isso era a fama de guerreiro que não era pequena no norte. Aqueles que não aceitaram, Alaric tratou de dar um jeito, pelo velho método da ameaça.

— Acho que é isso… — Com um tom pesaroso, Alaric virou-se para Aldebaram, já sentado no trono. — Estamos de partida, guerreiro…

— Cuidado, garoto… — Aldebaram se levantou do trono, unindo Alaric, Gideon e Astrid, que havia chegado há pouco, em um abraço coletivo. — Fiquem vivos…

— Traremos sua filha de volta — afirmou Alaric com convicção. — Isso é uma promessa.

— Hahaha! Confio em suas palavras — Ele soltou os três e olhou para sua filha, que parecia sem jeito. — Filha… se cuide, e cuide desses dois idiotas…

Ela assentiu com a cabeça e entrelaçou seus dedos com os de Gideon. Ficando vermelha no processo, mas isso não importava para ela, tudo que importava já estava ao seu lado. 

— Então é isso, adeus Aldebaram — Alaric virou-se para partir, bagunçando os cabelos de Gideon no processo. — Eu protegerei esse escolhido e essa filha de dragão.

Gideon sentiu os cabelos sendo terrivelmente bagunçados e se encolheu até que Alaric parasse. Quando assumiu uma postura ereta, voltou sua atenção para Aldebaram. 

— Quando voltarmos, quero conversar com você sobre… — Seus olhos azuis buscaram Astrid com ternura, ela respondeu com uma expressão curiosa, mas meiga. — Ela e eu… 

Hahaha! Entendo! — Aldebaram voltou ao trono e se acomodou. — Já pode considerar um belo sim como resposta… mas, de qualquer forma, voltem… — O guerreiro, pela primeira vez naquele momento, demonstrou melancolia. — Não deixe seu irmão se perder. A vingança não pode ser maior que a vida daquele idiota…

Gideon entendeu o que Aldebaram quis dizer. Era sobre não deixar seu irmão se perder na loucura da vingança. Algo que era bem a cara dele fazer, mas Gideon não permitiria. Ele também estava ressentido pela morte de Dolbrian, mas não deixaria o desejo de vingança o consumir por completo, nem permitiria que acontecesse com seu irmão.

Com isso eles partiram ruma a Reven, Gideon, Alaric e Astrid em sua forma dragão para chegarem rápido, mesmo que ela ainda não estivesse revigorada por completo, iria conseguir os levar.

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— Você sentiu isso, Delilian? — indagou Dalian, no trono, parecendo apreensivo.

— Senti o que? — respondeu o irmão, que estava à frente.

Delilian respondeu com silêncio. Ele estava experimentando uma sensação familiar. Seria poder? Suspeitava que estava sentindo uma aura divina. Talvez seu pacto com um demônio o permitisse fazer isso agora. Fechando os olhos, concentrou-se, controlou sua respiração e deixou a mente vagar.

— Achei! Estão na antiga favela! — De maneira abrupta, ele se levantou do trono, com um sorriso maléfico no rosto. — Vamos, Delilian. Certas formigas adentraram o formigueiro errado.

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Na antiga favela de Reve, os três haviam pousado. Era o lugar mais isolado onde um dragão gigante como Astrid não chamaria atenção. O plano consistia em se infiltrar no castelo e assassinar os dois, afinal, lidar com um exército inteiro não era uma opção viável.

Gideon vagava com o olhar pelo campo de destruição, cada vez mais triste, cada vez mais perdido. 

— Não sobrou nada… — murmurou.

O acalento para sua alma veio na forma de calor, uma palma macia tocando sua mão. Astrid estava lá por ele. E isso o fez sentir-se melhor.

— Certo, vamos- 

Antes que Alaric pudesse concluir sua explicação dos planos, uma presença poderosa foi sentida próxima, seguida por um tremor vigoroso que se originou diante deles. Ao dirigirem suas atenções para lá, notaram uma nuvem de poeira subindo até o céu.

Dentro dela surgiram duas figuras: Dalian e Delilian. Uma delas estava encolhida, como se não quisesse estar ali, enquanto a outra exibia confiança, sorrindo como nunca.

— Olha quem voltou! — O mago falou como se visse pedaços de carne prontos para serem devorados por suas chamas infernais. — Os covardes reapareceram.

— Vocês vieram até nós... — Alaric começou a invocar as espadas de luz e colocou as mãos nos bolsos. — Pouparam-nos trabalho...

— Astrid, recue — orientou Gideon, sabendo que ela não estava nas melhores condições. — Alaric, eu cuido do da barreira.

— Certo — Alaric já se preparava para partir, mas antes lembrou-se de algo. Sem voltar sua atenção para trás, disse: — Não hesite, mate. Busque a morte do seu oponente. Você consegue?

Gideon desembainhou a Escolion e assentiu com um forte balançar de cabeça, que agitou seus cabelos brancos como a neve. Assim, Alaric não tinha mais com o que se preocupar e avançou.

— Delilian! Mate aquele ali! — Sem esperar uma resposta de seu irmão, ele partiu em direção a Alaric, deixando um rastro de fogo por onde passava. — Você é meu, moleque!

— Foi mal — Com um gesto singelo dos dedos, as espadas partiram. — Mas não estou afim.

Quando Dalian se deu conta, já tinha três pontos brilhantes vindo em sua direção. Tombando a cabeça, deixou o primeiro golpe passar. Virando-se de lado, evitou outro golpe que passou rente à sua barriga. Na terceira investida, apenas saltou e a espada passou por baixo.

Entretanto, as espadas simplesmente voltaram pelas costas. Enquanto Alaric abria um sorriso confiante, pensando ter vencido, viu o mago dar um pisão vigoroso no solo, surgindo uma barreira de chamas infernais atrás dele. Quando as espadas tocaram a barreira e foram atingidas pelo fogo dos confins do inferno, começaram a pingar um líquido dourado no chão cinzento, estavam derretendo.

Tsc... — Vendo suas espadas derreterem, ele as reinvocou e aguardou o momento certo.

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Delilian e Gideon se encaravam, nenhum dos dois avançara nem um centímetro desde que a luta começou. Ao contrário de seus irmãos, eles eram mais prudentes, e Delilian, por ser um mago defensivo, não tinha tantas magias ofensivas.

— Vamos acabar logo com isso... — Sem esperar pela resposta do homem, Gideon avançou com a Escolion em punho. — Morra! Pelo bem do mundo!

Delilian observou o jovem se aproximar com olhos azuis transbordando de ódio. Quando o golpe descendente estava prestes a atingi-lo, conjurou uma barreira que, ao tilintar irritante, pode contemplar sua barreira absorver o ataque.

— Consegui? Hahaha! Consegui! — No entanto, sua facilidade durou pouco, pois o detalhe crucial que ele havia esquecido sobre aquela lâmina era... — Merda!

A Escolion, em instantes após o toque, desfez a barreira como se a mesma fosse feita de papel molhado e, sem nenhum impedimento, continuou o movimento voraz, que buscava um corte limpo por todo o peito do mago. 

A mente de Delilian entrou em choque, sem solução à vista, enquanto seus olhos se arregalavam diante da expressão fria de alguém que não se importava em tirar sua vida.

A centímetros de ser acertado em cheio, um lampejo salvador surgiu em sua mente e, sem ponderar ou hesitar, ele proferiu:

— Morfocampo! — Em microsegundos, uma barreira com pontas afiadas emergiu, envolvendo todo o seu corpo.

— Merda! — Gideon estava próximo demais para evitar o impacto. Tudo que pôde fazer foi jogar as mãos à frente do rosto, para impedir as perfurações e aceitar a dor descomunal que sentiu ao ser atingido quase por completo. — Argh!

No entanto, a lâmina prateada resplandecida pelo sol que pairava no céu brilhou como nunca antes, e isso, por sorte do jovem, impediu que aquelas pontas penetrassem mais fundo em sua carne, desfazendo a barreira.

Com um impulso repentino, ao tocar os pés no solo, Gideon se jogou para trás, afastando-se de Delilian. No entanto, já era tarde; seu corpo sangrava por inteiro, as roupas rasgadas e a respiração descontrolada. O jovem havia sofrido um duro golpe.

— Por que você sente tanto ódio por mim? — perguntou Delilian com sinceridade, genuinamente confuso com a intensidade dos sentimentos de Gideon. — O que eu fiz para você?

— O que você fez!? — Num instante, todo o ódio que Gideon tentava conter irrompeu como água rompendo uma barragem. Seu coração, uma vez bondoso, começou a ceder à mais gélida escuridão. — Vocês... vocês...

Gideon mal conseguia articular palavras, tamanho era o furor que o consumia. As sílabas pareciam se prender na boca, como se estivessem engasgadas na garganta. E a cada segundo que passava, as lembranças de Dolbrian invadiam a mente do jovem.

— Você teve um papel significativo no que aconteceu... Você e seu irmão... — começou Gideon, aproximando-se com uma cadência deliberada. Seus passos eram leves, mas transmitiam uma imponência pesada e ameaçadora. 

Delilian sentiu a fúria que percorria a alma de Gideon, a ira de alguém que já não se importava. A reação do mago diante disso foi recuar sem desviar o olhar do jovem, pois o medo de Gideon avançar em sua direção o consumia.

Delilian via Gideon como uma besta sedenta por sangue, observando seus olhos azuis estreitando-se cada vez mais.

— Pare! Se afaste! — O medo começava a consumi-lo, enquanto a sombra de Gideon parecia crescer, envolvendo-o. — Me deixe ir! Dalian! Dalian!

— Seu irmãozinho não está aqui... — Gideon continuava avançando com uma lentidão ameaçadora. — É só você e eu...

"A aura desse jovem... a sensação!" Delilian podia sentir o ar mudando, algo envolvendo seu corpo, algo que preenchia todo o ambiente. Ele podia sentir a dor que isso carregava, a ira e a vontade assassina. E foi nesse momento que as pernas do mago vacilaram em meio ao recuo, deixando-o cair de bunda no chão.

Quando Gideon percebeu a brecha, saltou em direção a Delilian, pronto para tirar-lhe a vida. Delilian viu apenas a sombra no céu se aproximando rapidamente, um pânico que ele nunca pensou ser capaz de sentir tomou conta de seu coração, era irracional, indescritível.

— Socorro!! — No momento iminente do golpe fatal, quando a vida parecia prestes a abandoná-lo, a barreira que tanto o protegera durante toda a sua existência, convergiu para um único ponto e, sem piedade, avançou como uma estaca, em uma velocidade impossível de se esquivar.

Argh… — Gideon gritou de dor, seus olhos que antes transbordavam ódio agora se abriram, revelando não mais ira, mas puro terror. — Merda…

A estaca trespassou o jovem, rompendo sua pele logo abaixo do peito e emergindo do outro lado, suspendendo-o no ar enquanto o sangue viscoso começava a escorrer pela lâmina impiedosa.

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Antes de todos os eventos que se desenrolaram, Alaric e Dalian se enfrentavam. Os olhos de Alaric fitavam seu algoz, o homem responsável por reduzir a cinzas o lugar que ele chamava de lar, aquele que dilacerou sua família e, invocou o demônio que ceifou a vida de seu avô. O jovem jamais foi inclinado a nutrir rancor, mas tudo mudou na presença desse homem, pois nele Alaric guardava todo o peso do ódio e da mágoa que um coração poderia suportar.

— Morra! — Dalian apontou a mão para Alaric, lançando labaredas que, em um instante, ganharam vida, transformando-se em uma coluna de fogo furiosa em direção ao jovem.

— Jamais… — Alaric avançou intrépido contra o fogo, pegando Dalian de surpresa, que continuava incansável em seu ataque. Correndo velozmente, Alaric sentia o calor infernal acercando-se de sua pele. Com agilidade, cruzou duas de suas espadas formando um “X” à sua frente, enquanto a terceira assumia uma nova forma, semelhante a um escudo redondo, interceptando a coluna de chamas. O fogo violento colidiu contra essa barreira improvisada, incapaz de atingir Alaric. Contudo, o jovem lutava com todas as suas forças para manter-se firme, pois a coluna de fogo incessante empurrava-o para trás, e o escudo começava a ceder. — Maldição...

Dalian, observando toda a situação, ainda lançava a coluna de fogo. Usando a outra mão, virou a palma para cima e dela emergiram três bolas de fogo em uma velocidade assombrosa, como se fossem controladas por alguma vontade própria. Elas subiram aos céus e, mudando de direção, caíram sobre Alaric.

Percebendo a situação tensa em que se encontrava, Alaric endureceu seu olhar e, usando toda a força que seu ser poderia reunir, ainda sendo empurrado para trás, impulsionou suas mãos para frente, fazendo o escudo se afastar dele e contendo a coluna de fogo. Assim, segundos antes de ser atingido pelas bolas de fogo, saltou para o lado

Duas das bolas acertaram o chão onde ele estava, rompendo seu escudo, mas por sorte ele já não estava mais lá.

Alaric notou um único detalhe estranho: ouviu apenas dois sons de explosão. Ao olhar para trás, ainda no chão, deparou-se com a terceira bola de fogo próxima a ele. Sem muitas opções, apenas se jogou para o lado, evitando ser atingido em cheio, mas ainda sofrendo com os resquícios da explosão.

— Alaric, o Gideon! — O jovem direcionou o olhar para a origem da voz e viu Astrid no ar, seguindo para onde seu indicador apontava. Testemunhou algo que nem em seus piores pesadelos poderia imaginar: Gideon, empalado. — Gideon!!

Sem hesitar, Alaric avançou em direção ao seu irmão, mas Dalian não permitiria tão facilmente. Desferiu outra torrente de fogo em direção ao jovem.

— Não vou deixar você atingi-lo! — Astrid interveio, colocando-se entre a torrente e Alaric, protegendo-o com suas escamas e seu próprio poder de fogo, contendo as chamas do inferno de maneira improvisada. — Vá, Alaric! Não sei por quanto tempo consigo segurar isso!

O jovem nem olhou para trás, continuou a avançar determinado. Ao se aproximar de Gideon e Delilian, enviou suas espadas, que foram habilmente defendidas pelo mago com suas barreiras.

Porém, isso fez Delilian desativar a estaca, deixando o jovem cair inerte no solo. Alaric chegou deslizando e o pegou no colo, sentindo algo agarrando sua camisa. Era Astrid voando, momentaneamente liberta de Dalian.

Ela os levou para o céu, fugindo juntos. No entanto, acabaram no meio de Reven, buscando sair dali o mais rápido possível.

— Astrid, vam-

Antes de conseguir terminar a frase, viu a dragonoide ser atingida por uma enorme bola de fogo, desequilibrando-a, e juntos começaram a cair, sem esperança, sem nada.



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