Volume 1

Capítulo 2: O Deus Dentro do Jogo e Quem Realmente Sou

 

Acabei escrevendo um textinho bem longo até. Se a inteligência artificial conseguir entender pelo menos um décimo do que eu escrevi, aí sim eu admito que a IA é boa. Mas será que ela vai conseguir entender alguma coisa ou o jogo vai crashar?

 

— Ouçam-me fiéis que conseguiram escapar da morte certa, eu sou o Deus do Destino - aquele que vos salvou de seus perseguidores hediondos utilizando de um milagre. Do presente momento em diante, eu irei vos conceder um milagre por dia, espero que consigam viver em abundância com as minhas ordens. Comecem procurando um lugar seguro para viver e então cortem as árvores ao redor do local.

 

Acabei falando como se eu fosse um, sei lá, senhor feudal? Mas como na história do jogo eu sou um Deus então não deve ter problema. Acho que não cometi nenhum erro de gramática e nem digitei nada errado também.

 

Eu me esforcei bastante pra escrever aquele texto, mas não é como se eles fossem entender alguma coisa que eu escrevi.

 

Rindo da minha própria cara por ter escrito um texto daqueles eu pressionei a tecla enter do meu teclado.

 

— Pessoal, venham! O Deus do Destino nos enviou um oráculo pela bíblia!

 

Eu diria que a sacerdotisa Chem teve uma reação exagerada.

 

Todos estão olhando atentamente para a bíblia. Que tipo de reação eles vão ter quando lerem o texto?

 

— Erm… perdão. Eu e a Carol não sabemos ler.

 

Layla ergue sua mão, envergonhada. Carol, por outro lado, está levantando o braço inteiro cheia de energia.

 

— Eu consigo ler algumas palavras mais simples, mas textos mais complicados assim são impossíveis pra mim. Pode ler o que está escrito para nós, Chem?

 

Mas, irmão, você sabe… Tudo bem, eu leio.

 

Vendo pela conversa deles, dá para perceber que o número de pessoas alfabetizadas no mundo desse jogo deve ser bem baixo.

 

Pelo o que parece, o Gamz sabe ler normalmente, mas para não envergonhar os outros ele fingiu que não é muito bom fazendo isso.

 

O Gamz é do tipo quieto, mas ele é bem atencioso.

 

Ainda que eu o inveje, minha opinião sobre ele melhorou um pouco. Até que o Gamz é um cara gente boa.

 

O jogo é bem detalhado e gosta de levar o seu tempo até as coisas progredirem, devo ter essa impressão porque a introdução está durando mais que o normal. Mas tudo bem, eu não me importo de ver as interações naturais que os personagens têm entre si.

 

Após respirar fundo, a Chem disse tudo que eu havia escrito nos mínimos detalhes.

 

Tá, não é como se fosse difícil repetir o que eu escrevi. O verdadeiro problema vem agora.

 

— Então Deus realmente salvou a gente?! Além de nos salvar, agora ele vai nos guiar também?

 

— Obrigado, Senhor!!

 

Até mesmo Rodis e Layla se emocionaram, e começaram a orar de joelhos.

 

Sem entender o que estava acontecendo, a Carol simplesmente começou a sorrir. Já o Gamz, abaixou sua cabeça e fez uma oração em silêncio sem mudar sua expressão.

 

— Nem ferrando…

 

Eles estão se movendo e falando como se realmente tivessem entendido todo o conteúdo da mensagem.

 

— Não, não, não, calma aí. Isso é sério? Como que o personagem de um jogo pode ser capaz de pensar e opinar por si só? Isso aqui é inacreditável. Esse tipo de tecnologia deve estar pelo menos uns dez anos à frente do tempo, não?

 

Os celulares e os computadores mais recentes até possuem uma inteligência artificial capaz de compreender palavras, porém, essas IAs conseguem entender somente comandos simples.

 

As IAs atuais simplesmente são incapazes de entender frases longas e complexas. Talvez isso que está acontecendo agora faça parte dos scripts de comportamento pré-programados do jogo.

 

— Pessoal, o Deus do Destino nos mandou procurar um local seguro e cortar algumas árvores. Então vamos nos separar e começar a procurar!

 

Eles estão falando como se… como se eles tivessem entendido cada palavra que eu escrevi.

 

— Claro, já que estamos dentro de uma floresta, árvores são bem comuns aqui, mas não tem como usar madeira assim que você termina de cortar a árvore. Para a gente poder usar a madeira, é necessário que ela passe por um longo processo de secagem antes.

 

Dessa vez quem expressou sua opinião foi o Rodis, com uma cara séria e de braços cruzados. — Hã…? Precisa secar a madeira antes de poder usar?

 

Ué? Normalmente, em jogos assim, na mesma hora que você termina de cortar a árvore, a madeira já está pronta para ser usada e construir uma casa sem precisar fazer nada antes. Me pergunto até que ponto esse jogo busca ser realista.

 

— A gente realmente precisa secar a madeira antes?

 

Boa pergunta Chem, eu estava pensando na mesma coisa.

 

— As árvores contém bastante umidade dentro delas, então se você não secá-las antes de usar, a madeira vai acabar mudando de forma e ficando um pouco deformada. É por isso que se você não secar a madeira antes, você vai acabar construindo uma coisa defeituosa e mais frágil.

 

— Nossa, eu não fazia ideia que a gente precisava fazer isso.

 

Eu e a Chem balançamos a cabeça concordando, ao mesmo tempo, só que separados por uma tela.

 

Eu também não fazia ideia de que era preciso de um processo complicado desses. Quando eu escrevi o texto mais cedo, eu agi como se eu fosse um ser onisciente, mas acabei sendo leigo sobre esse assunto. Que vergonha, sério.

 

— A intenção divina não é algo que nós simples mortais possamos entender com tanta facilidade. Provavelmente há um significado mais profundo nas palavras do Senhor do Destino. O que vocês acham de cortar algumas árvores mesmo assim? Por mais que a gente não possa usar a madeira agora, não faz mal deixar guardado para usarmos futuramente.

 

Boa Rodis, me salvou. Obrigado, cara.

 

Depois de todos concordarem, eles começaram a pegar algumas ferramentas que estavam guardadas dentro da carruagem - machados e serras. Os homens, Rodis e Gamz, estavam encarregados de cortar as árvores.

 

O grupo das meninas ficou encarregado de explorar a área em volta enquanto procuravam coisas para comer.

 

Nesse meio tempo, eu também descobri que tem como controlar o zoom da tela do jogo usando o scroll do mouse.

 

Distanciando a câmera do chão, o mapa todo aparece escuro como se houvesse uma nuvem preta obscurecendo minha visão, então eu só consigo ver em volta do lugar que os meus personagens estão. Fora isso, também é possível ver uma “linha” em zigue-zague que se estende por onde meus personagens passaram antes. Provavelmente não é um bug, mas sim algum tipo de mecânica do jogo.

 

Tem uma linha mais comprida, que se estende até o local onde os personagens pararam a carruagem, provavelmente ela indica o caminho que eles fizeram enquanto fugiam.

 

— Hmm, então o mapa vai abrindo conforme os personagens vão explorando novos locais? Quando é assim, sempre é bom mandar um personagem explorar os arredores, pena que eu já usei o meu oráculo do dia.

 

Mesmo quando eu clico em algum boneco, é impossível controlar ele, a única coisa que isso faz é mostrar uma caixa de texto com as características do personagem.

 

Eu tentei achar um jeito de acelerar o jogo, mas não encontrei nenhuma função assim.

 

— Será que esse jogo é em tempo real? Ué? Então depois de usar o oráculo, uma vez por dia, eu não tenho mais nada pra fazer?! Não, não, não, não pode ser!

 

Será que não dá pra fazer mais nada além disso mesmo? Isso não faz o menor sentido pra um jogo desse calibre. Claro, com certeza é divertido ver os personagens interagindo com as coisas, mas se acabar por aí não dá pra chamar isso de jogo.

 

Comecei a apertar várias teclas do teclado tentando encontrar alguma que tenha uma função no jogo, e do nada apareceu outra caixa de texto na tela.

 

«Além de enviar oráculos, existe mais uma coisa que o Deus do Destino pode fazer. Usar Fate Points (Pontos do Destino) para realizar diversos milagres diferentes.»

 

De repente, uma explicação apareceu na tela. Mas o que será que esses Fate Points são afinal?

 

«O que os Fate Points são? Você deve estar se perguntando neste exato momento. Os Fate Points estão ligados ao destino dos aldeões – em outras palavras, quanto mais gratos os aldeões forem ao Deus do Destino, mais desses pontos o jogador receberá. Por favor, dê uma olhada no canto superior direito de sua tela…»

 

Assim que terminei de ler, dei uma olhada na parte de cima da direita do meu monitor e vi um ícone de bíblia com uns números em cima.

 

«Lá você encontrará a quantidade de pontos que possui. À medida que a fé e a gratidão que os personagens sentem por você subir, os pontos também irão aumentar. Quanto mais os oráculos que você escrever beneficiarem os aldeões, maior será o sentimento de gratidão entre eles, portanto mais pontos você receberá.»

 

Então, resumindo, a quantidade de pontos que eu vou receber vai depender do conteúdo dos meus oráculos.

 

É melhor eu começar a pensar bem sobre o que vou escrever nos oráculos a partir de agora. Basicamente eu tenho que fazer algo bom para que eles se sintam gratos à mim, né?

 

«As coisas que podem ser compradas com o uso de pontos serão exibidas ao clicar no ícone de bíblia. Conforme o vilarejo prosperar e o número de aldeões aumentar, mais milagres serão desbloqueados e outros serão aprimorados, então dê o seu melhor para ser recompensado de acordo.»

 

Eu já tava começando a achar que esse jogo ia ser bem chatinho se eu não tivesse mais nada pra fazer além de enviar oráculos, como é bom estar errado. Enfim, bora ver do que esses milagres se tratam.

 

— Ué, como assim? Eu não posso dar nada mais concreto pra eles? “Um mercador ambulante surge em busca de negócios” ; “um viajante médico vai até a aldeia” ; “um caçador misterioso aparece” ; “um grupo de camponeses refugiados se juntam aos aldeões”. Saquei, como eu sou o Deus do Destino, já era de se esperar que eu fosse capaz de controlar o destino das pessoas também. O que mais tem aqui será? Hmm… eu também consigo controlar um pouco do clima, esse é bem interessante, e tem mais cara de milagre divino.

 

Agora sim tá parecendo um jogo de verdade!

 

Os únicos pontos que eu tenho até agora, muito provavelmente, são os que eu consegui por ter ajudado eles a escapar dos monstros no início do jogo.

 

Mas como tenho poucos pontos, eu não tenho certeza de como gastar eles por agora.

 

Eu não sei o que exatamente os personagens precisam no momento. Então, a única opção que eu tenho por enquanto é prestar atenção nos diálogos e pensar no que fazer daqui pra frente.

 

Os homens, Rodis e Gamz, estão quietos enquanto cortam árvores. Eles não precisam conversar muito um com o outro pra fazer isso, então não tem nenhuma caixa de diálogo.

 

Na verdade, o Rodis até tá tentando iniciar uma conversa, mas é meio difícil já que o Gamz só responde dizendo “Hmm…”, “Certo.”, “Sério?” ou alguma outra coisa do tipo.

 

É, ver a conversa desses dois não vai ajudar em nada agora. Melhor dar uma olhada na das meninas agora.

 

— Layla, você conseguiu trazer comida pra quantos dias mais ou menos?

 

— Poucos, já que eu estava desesperada para fugir. Eu consegui trazer três caixotes de alimentos que estávamos vendendo quando tudo aconteceu, se a gente economizar bem, deve ser o suficiente por pelo menos duas semanas.

 

— Hm… quatorze dias? Seria bom se a gente desse um jeito de conseguir comida de um jeito mais estável então.

 

Informações valiosas foram faladas enquanto elas colhiam frutas silvestres conversando.

 

Então eles precisam de mais comida, hm? Será que se eu gastar meus pontos para fazer um comerciante misterioso aparecer eles vão poder comprar comida? Isso dependeria muito de quanto dinheiro eles possuem. Além disso, por enquanto, é melhor eles arranjarem comida nas montanhas mesmo, seja pescando, caçando ou de alguma outra forma.

 

Eu queria conhecer melhor a fauna e flora de onde eles estão.

 

— Será que eu mando o Gamz explorar os arredores amanhã? Se bem que fazer a única pessoa capaz de lutar se separar do resto do grupo pode acabar sendo uma péssima ideia…

 

Se eu pudesse conseguir mais informações sobre os arredores, eu poderia me preparar com antecedência para os futuros problemas e perigos. Mas do jeito que as coisas estão eu não sei se é perigoso sair para explorar ou não. Tá aí um dilema.

 

Olha, se fosse qualquer outro jogo, eu usaria a personagem mais fraca, nesse caso a Carol, para ter uma visão melhor da região.

 

Mas não tem como eu descartar um personagem que age de maneira tão humana assim, os personagens desse jogo sequer parecem ser controlados por uma IA. Todos eles estão dando seu máximo para sobreviver.

 

Sei que é besta pensar assim sendo que é só um jogo, mas eu falo sério quando digo que quero protegê-los a partir de agora.

 

Faz menos de três horas desde que comecei a jogar, mas eu já me apeguei bastante aos personagens de tão humanos que eles são. 

 

— Nunca que eu conseguiria dormir direito se eu fizesse alguma merda e acabasse fazendo todos eles morrerem. 

 

Mesmo que não haja ninguém próximo de mim para me escutar dizendo isso, as palavras saem da minha boca antes mesmo que eu perceba.

 

Melhor eu começar a pensar num jeito de garantir a sobrevivência deles. Por ora, vou dar uma olhada nos milagres que consigo ativar usando meus pontos.

 

No momento, a minha prioridade número um é dar um jeito de conseguir mais comida. A segunda, seria arranjar os meios necessários e construir um abrigo para eles morarem. Já a terceira…

 

— Osh, que isso?

 

No final da lista, tem um item chamado “Familiar”.

 

Nesses jogos de fantasia assim, um Familiar é tipo um pet de um mago. Eles podem compartilhar seus sentidos com os donos, fazer algumas tarefas e até mesmo conseguir informações…

 

— Perfeito!

 

Ótimo. Se eu escolher esse aqui, expandir minha visão sobre o mapa do jogo seria mamão com açúcar!

 

Parando pra pensar, faz sentido o jogo providenciar esse tipo de alternativa, já que os personagens são tão únicos.

 

— Tomara que dê pra contratar algum Familiar legal com os pontos que eu tenho.

 

Assim que cliquei em {Familiar} a janela expandiu, mostrando diversas opções para eu escolher.

 

Desde animais comuns a até mesmo monstros que aparecem em mundos de fantasia.

 

— Já que a ideia é usar o Familiar para fazer o reconhecimento do local, é melhor escolher algum tipo de pássaro, já que eles voam e tudo mais, né? Ter uma visão de cima ajudaria bastante a explorar o local de maneira mais eficiente.

 

Tem vários pássaros diferentes para escolher, só que a maioria é bem caro.

 

Por enquanto, o único pássaro que eu consigo fazer um contrato com meus pontos atuais é uma pintainha.

 

— Depois que ela crescer, virar uma galinha e começar a botar ovos, vai ajudar a resolver o problema da falta de alimentos, mas para reconhecimento não daria nem um pouco certo.

 

O normal seria começar pegando um gato ou um cachorro, mas com meus pontos eu não consigo nenhum dos dois.

 

— Será que tem algum outro jeito de conseguir Fate Points sem ser acumulando gratidão?

 

Como se estivesse respondendo as palavras que escaparam da minha boca, outra caixa de texto apareceu na tela na mesma hora.

 

«Existem outras maneiras de aumentar seus pontos. Depositando dinheiro. A cada mil ienes depositados o jogador receberá dez Fate Points

 

Tem que depositar… dinheiro de verdade?!

 

Ah não mano, não tem coisa pior que isso pra um desempregado que nem eu!

 

Tudo bem que estamos em uma época que é bem raro encontrar jogos online que não tenham nada para comprar com dinheiro de verdade. Claro, existem até mesmo jogos que são pay to win, mas porque caralhos eles implementaram um sistema desses em jogo que nem lançou de verdade ainda?!

 

Com os pontos que eu tenho agora, eu não consigo contratar nenhum Familiar bom, mas se eu depositar uns dois mil ienes, eu conseguiria comprar um gato ou um cão de pequeno porte. Com isso eu conseguiria facilitar pelo menos um pouco a vida dos aldeões.

 

Depois de me levantar da cadeira, que eu já estava sentado fazia tempo, eu peguei um caderninho que estava perto da mesa do computador e comecei a fazer as contas.

 

— Eu ainda tenho dez mil ienes sobrando. Se eu vender os livros e os jogos que eu tenho na estante, eu provavelmente conseguiria um dinheirinho bom até. E se eu colocasse as coisas para vender na internet ou fazer um leilão online, então…

 

Depois disso eu continuei fritando minha cabeça sem conseguir resolver esse impasse interno por um bom tempo.

 

— No fim acabei ignorando o fato de que é estranho se apegar tanto aos personagens de um jogo em tão pouco tempo.



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