Santo Renegado Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 3: Voo

— Acharam meu celular?

Dona Lílian, avó de Erik, encarou-o desconsolada. Parou de descascar a tangerina ao lado da cama.

— Eu sinto muito, Erik, mas os assaltantes levaram tudo.

Ainda acomodado no mesmo quarto de hospital, ele apertou o punho com força.

— Não fique bravo — reconfortou ela, notando a irritação do neto. — Compro um novo pra você amanhã mesmo, prometo. Ainda estou devendo o seu presente de aniversário. Agora coma isso. Precisa ficar forte pra sair daqui.

Sim… Ela estava certa. Tinha que comer. Jogou um gomo da tangerina na boca.

— Tá tudo bem — disse ele, pouco mais tarde. — É vergonhoso pedir isso, mas preciso de um pouco de dinheiro também… pra comprar comida de verdade na cantina. Não aguento mais canja e suco de caixinha.

— É claro. Desculpa a vó concordar em adiar sua alta. Sei que quer ir logo pra casa, mas os médicos insistiram com os exames agora que saiu do coma.

Segundo o diagnóstico, o trauma de Erik cobria uma parte do cérebro que controlava sua personalidade, sério o bastante para merecer mais quinze dias no hospital.

Inicialmente, irritou-se com a decisão; realmente queria voltar para casa, mas depois enxergou a situação como uma forma de repensar sobre todo o incidente, remoendo de raiva ao presumir até onde a polícia investigou sob a versão de Vicente.

Como todo endinheirado, aparentemente se safara do problema com demasiada facilidade, dando fim ao celular de Erik ou qualquer evidência que pudesse comprometê-lo.

Em todo caso, julgava conveniente que as coisas permanecessem daquele modo. Sua vingança era algo que tinha de fazer com as próprias mãos, então preferia que a polícia não interferisse.

Contando pontos a seu favor, tinha agora a regalia do Eremita: sua memória absoluta. Erik podia se lembrar de todos os detalhes da própria vida.

Por conta disso, lembrou-se de onde conhecia o nome de Ivan Lemaire. O empresário brasileiro era filho de franceses, dono de uma das holdings mais importantes do mundo e classificado entre os dez mais ricos do planeta. Foi daquele modo que conseguiu fechar uma parte inteira do hospital apenas para si.

Erik suspirou.

Com o celular simples que a avó trouxe no outro dia, passou a alternar a rotina entre os exames médicos, a cantina enorme do hospital e observar a movimentação dos homens de preto que vigiavam a entrada do elevador para o andar do Sr. Lemaire. Erik construiu diversos cenários na cabeça, arquitetando um plano cuja peça inicial seria o bilionário.

Auxiliado pelo Eremita, começou também a fortalecer o próprio corpo. O demônio sugeriu que Erik comesse de sete a oito vezes por dia, acrescentando proteínas em todas as refeições, forçando comida para dentro mesmo quando sem fome. Passou mal no início da coisa, mas continuou sem reclamar.

Doze horas antes da alta médica, decorrido quase duas semanas no hospital, Erik pingava de suor após outra sessão de flexões e socos no ar. O quarto era puro silêncio, não fosse o ruído veloz dos punhos lutando contra o vento.

Quando parou, escorou-se na cama e apanhou a garrafa d’água, sentindo-se um tanto zonzo. Ainda não se recuperara de todo, mas forçou o próprio corpo ao limite do que poderia evoluir em quinze dias. Como resultado, ganhou quase doze quilos e um pouco de tônus muscular, além de alguns centímetros depois de finalmente ajeitar a postura. Finalmente se podia dizer que ele tinha um e oitenta e três de altura.

Erik caminhou até a cômoda e consultou o relógio no celular. Eram oito da noite. Em algumas horas, colocaria a primeira parte do seu plano em prática.

Ele clicou num aplicativo, abrindo a carteira digital e conferindo, mais uma vez, que o banco realmente aprovou sua solicitação de transferência. O visor mostrava a quantia de oitenta mil reais oriundos da indenização do acidente de seu pai na fábrica.

Desde que aconteceu, avó Lílian preferiu deixar o dinheiro na poupança para que o neto utilizasse no futuro e, mesmo sabendo pouco render, Erik jamais teve vontade de mexer no montante por lhe recordar da tragédia.

Agora, por conta das pancadas na cabeça, tinha as lembranças tão nítidas que começou a se sentir anestesiado de questões extremamente sentimentais como aquela, bastando explicar para a avó que queria aplicar o valor num rendimento melhor.

Durante aquele tempo, Erik vinha estudando a cotação do Dervano, uma moeda digital pouco conhecida. Pelo mesmo motivo, encontrava-se há meses estagnada em dois centavos; o preço oscilando menos de um por cento no período em que passou no hospital.

Ele sorriu enviesado, atirando o celular sobre a cama ao finalizar a compra de quatro milhões de Dervanos com o dinheiro da indenização.

Às onze da noite, a segunda parte do plano finalmente começaria. Erik vestiu um conjunto preto e, após enfiar todos os pertences para dentro de uma mochila, jogou-a pela janela do quarto, que se afundou nos arbustos laterais.

Erik colocou um boné e deixou o local em silêncio.

Com metade das luzes apagadas, o hospital havia se transformado num cenário de terror, seguindo pelos corredores vazios até se aproximar do elevador guardado pela dupla de terno preto. Parou de caminhar.

“Contenha a própria força, Erik”, ecoou a voz do Eremita em sua cabeça. “Ainda não se recuperou por completo, mas continua um Renegado. Sua força já sobrepuja a de um homem comum.”

— Agradeço o aviso — sussurrou ele, tornando a postura repentinamente desafiadora. Erik deixou o rosto parcialmente encoberto pelo escuro ao fitar os homens, como se fosse uma assombração.

— Ei! Não pode ficar aqui! — rosnou um dos guardas, o tom ansioso. — Vai embora!

Erik avançou como um espectro, deixando as memórias agirem por si. As sinapses conduziram seus movimentos e, com a fúria de um boxeador experiente, atingiu a barriga e o queixo do primeiro guarda. Assombrado, o segundo congelou no lugar, tendo a cabeça golpeada contra a parede antes mesmo de puxar a pistola.

Por um segundo breve, o rapaz se deteve, fitando o segurança que o agrediu semanas atrás. Ele e o parceiro jaziam desmaiados a seus pés.

Sem perder mais tempo, voltou-se ao painel e apertou para subir, sacudindo os braços enquanto esperava pela abertura das portas. Socar um alvo invisível era um bom exercício, considerou Erik, mas não era o mesmo que bater em ossos e carne viva. Ainda tinha de se acostumar à dor irradiando pelos membros.

Quando a cabine apitou, precipitou-se para dentro, baixando a aba do boné sob o ângulo da câmera interna. Passado um instante, as portas tornaram a se abrir.

— O quê?! — exclamou um segurança, dando de cara com Erik. O homem protegia a entrada do elevador apoiado à parede do outro lado.

Erik não hesitou. Em posse do elemento surpresa, projetou-se para frente, nocauteando o adversário com uma rapidez aterradora. Entretanto, tal como previu após duas semanas de observação, o lugar estava atolado de guardas.

Pelo menos dez brutamontes empacotados em ternos pretos se voltaram perplexos até o estranho de boné repentinamente surgido do elevador. O primeiro a emergir do transe gritou:

— Peguem aquele filho da puta!

E partiram para cima de Erik.

 

*******

 

Uma sombra atravessou a porta do quarto grande e luxuoso e daquele modo permaneceu, estática.

— Você… — A voz idosa ecoou pelo aposento. — Você é o Anjo da Morte…? Veio me buscar?

Erik se aproximou tropegamente de Ivan Lemaire, que jazia sobre um leito confortável; o corpo de um dos homens mais ricos do mundo se ligava a diversos aparelhos de suporte de vida a partir de cateteres e tubos, além de uma grande cruz de madeira entalhada acima da cabeceira.

— Não — respondeu Erik, despencando sobre a cadeira mais próxima. — A Morte usaria boné, Sr. Lemaire?

O bilionário fez uma pausa.

— Então… quem é você? Está todo ensanguentado.

Pela fala difícil, Erik supôs que Lemaire estivesse parcialmente sedado, embora com a visão suficientemente afiada para não deixar passar as marcas de sangue em sua roupa; parte do líquido sendo dele próprio, parte arrancada dos guardas.

O rapaz suspirou. — Sou um grande fã do senhor.

— Fã…? — O homem pareceu não compreender. — Como conseguiu entrar aqui? A segurança permitiu sua visita?

Erik fez um gesto negativo.

— Peço desculpas, mas tive que bater em todos eles. Queria fazer uma proposta, mas se eu não viesse em pessoa, o senhor nunca me receberia.

— Bateu em todos…? Como pode? Você é só um garoto.

Erik deu os ombros.

— Aprendi a lutar recentemente…

O gelo entre ambos foi quebrado. Lemaire achou o comentário tão absurdo que foi acometido por um acesso de tosse seca ao gargalhar. Com os olhos marejados, declarou:

— Uma boa piada, garoto.

— Só estava sendo sincero, senhor.

— É claro, é claro… Subiu até aqui lutando, não é? Do jeito que ergui meu império. Só podia contar com minha força, meu suor e com Deus me guardando. É uma bela história. Devo ter contado numa dessas revistas por aí. Hoje, só me restam puxa-sacos, um monte de remédios e enfermeiras me tratando como se eu fosse um bonequinho quebrado. Queria conquistar minha simpatia, é?

Erik encarou a cruz de madeira entalhada sobre a cama de Lemaire. Fitou a imagem de Cristo pregado nela, a cabeça inclinada como se chorasse.

— Na verdade queria saber se o senhor tem vontade ficar mais rico.

Lemaire arqueou uma sobrancelha.

— Mais do que já sou? Foi o que veio me propor?

Erik fez que sim. O idoso sorriu de canto antes de prosseguir:

— Agora você soou como o diabo: vindo pra cima de um velho com uma oferta tentadora no meio da madrugada.

— Acredita no diabo, senhor?

— Com certeza, e seu maior feito foi convencer o mundo inteiro de que ele não existe. — Lemaire fez o Sinal da Cruz. — Tenho bons instintos, garoto. Sei quando o mal está por perto. É por isso que a gente ainda tá nessa conversa: há algo bom vindo de você, mesmo invadindo o meu quarto e me propondo um negócio de risco, estou certo?

Erik assentiu. O homem suspirou.

— Então minha resposta é negativa. Já aceitei minha ruína… Tenho mais de setenta anos, meu filho me odeia, e meu neto não fala mais comigo. Demorei tempo demais pra perceber que o dinheiro destruiu coisas muito valiosas pra mim, coisas que eu não consigo comprar com uma maleta cheia de notas de cem, então não acho que ficar mais rico me servirá de algo.

— Fala de André, senhor?

Lemaire fez cara de surpresa.

— Sabe até mesmo o nome do meu filho? É mesmo um grande fã, garoto.

— Na verdade também sou paciente deste hospital. Fui espancado alguns meses atrás. Bateram tanto na minha cabeça que entrei em coma. Depois que acordei, adquiri essa condição que me tornou incapaz de esquecer das coisas. Li o nome do seu filho numa revista cinco anos atrás.

Lemaire tossiu, estudando-o por algum tempo.

— Não parece estar mentindo.

— É porque não estou, senhor.

— E não consegue se esquecer de nada? Nadinha mesmo?

Erik concordou.

— Fascinante…

— Diria que às vezes é irritante.

— Isso muda tudo. Com essa habilidade, você pode me ajudar numa coisa. — Lemaire pareceu subitamente empolgado. — Se aceitar, prometo considerar sua proposta e esquecer essa história de invasão.

— Do que o senhor precisa?

— Não sou idiota… apesar de todos repetirem o contrário, sei que estou nas últimas. Meu único desejo é pedir desculpas pro meu filho. Faça isso por mim, pode ser? É improvável que André venha me visitar no hospital, por isso lhe diga que eu não considerava o momento certo de transferir a presidência quando discutimos da última vez.

— Mas André é inacessível!

Lemaire achou o comentário engraçado.

— Eu também deveria ser, não é? Mas aqui estamos nós: conversando cara a cara. Você é forte, inteligente e habilidoso, garoto, assim como eu era na mocidade, então sei que vai dar um jeito. Tenho uma conta bancária secreta. Se realmente tiver a memória tão extraordinária como diz, gostaria que decorasse a senha dela e passasse a André no momento que ouvir notícias sobre ele ter deixado o Grupo Erys. Se assim fizer, prometo que será recompensado.

— Não quero o dinheiro do senhor. Farei isso como forma de me desculpar por tê-lo incomodado. Não sabia que estava tão doente.

Lemaire sorriu.

— Ouça bem…

E proferiu a senha de catorze dígitos a Erik, que a repetiu com perfeição cinco minutos mais tarde, explicando que a chave da conta estaria em posse de André assim que o testamento fosse lido.

— Agora me diga como posso ajudá-lo — brincou o idoso, após outro acesso de tosse.

Erik sabia o quanto a opinião de um dos homens mais ricos do planeta podia afetar o mercado financeiro, então pediu que Lemaire apenas escrevesse uma mensagem simples com seu perfil oficial numa rede social importante:

Dervano me parece promissor.

Erik fugiu do hospital em seguida.

Uma semana depois, vendeu todos os Dervanos que tinha assim que a morte de Ivan Lemaire foi anunciada pelos jornais, altura em que a moeda já valia cinco reais. Daquela forma, transformou oitenta mil reais em cerca de vinte milhões.

Erik havia se tornado um novo milionário.



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