Santo Renegado Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 2: Pupa

Os olhos se arregalaram de susto. Os pulmões puxaram oxigênio como se fosse a primeira vez que funcionassem na vida.

Mas essa não era a pior das sensações.

Erik experimentava uma dor de cabeça tão dilacerante que era como se lhe tivessem arrancado o cérebro apenas para enfiá-lo de volta pelo ouvido.

Sentado sobre algo macio, examinou os arredores; a vista ainda toda embaçada. Gradualmente, porém, reconheceu um quarto… um quarto de hospital que lembrava um grande aposento de luxo, com aparelhos que bipavam e telas de monitoramento de última geração.

“Finalmente acordaste…”

A voz aterradora ecoou por dentro da cabeça de Erik e tudo voltou a rodopiar, ainda pior do que antes. Ele urrou de dor, agarrando o rosto com as mãos e enterrando as unhas na pele.

Sentiu um turbilhão de memórias desconexas pulsando desde a inconsciência, como se criassem um caminho à força pelo cérebro. A vertigem era tão intensa que insurgiu do estômago até a boca. Erik vomitou ao lado da cama.

De um instante para outro, reviveu lembranças que julgava não mais existirem, tão nítidas quanto no dia em que aconteceram. Lembrou-se da mãe antes do câncer, do pai antes do acidente na fábrica, da primeira vez que caiu de bicicleta quando criança, do primeiro dente que perdeu, dos chutes que Vicente lhe desceu no rosto, de Bianca tentando ajudá-lo e daquela sombra cheia de olhos no colégio…

Para Erik, a sensação era como despertar de um pesadelo muito longo.

Quando a dor diminuiu, a visão também ganhou foco, percebendo que uma enfermeira gorducha e ansiosa o encarava com aspecto ao mesmo tempo maravilhado e apavorado. Erik supôs que tivesse acordado metade do hospital com o berro.

— C-como está se sentindo, meu querido? — perguntou ela, abrindo um sorriso ofegante. — Não se mexa demais, ok? Seu corpo deve estar bastante fraco.

— Eu… Eu preciso sair daqui.

Para horror da enfermeira, Erik saiu arrancando todas as agulhas do corpo, guinchando de dor enquanto as puxava. A mulher correu para impedi-lo, mas ele rolou apressado para fora do colchão, desmoronando ao lado do vômito. Deu razão à enfermeira: sentia o corpo em frangalhos.

— Por favor, querido, não faça isso! Volte já pra sua cama.

Erik se pôs de pé com dificuldade, apoiando-se na parede antes de se virar.

— Me deixa em paz.

A enfermeira simplesmente travou no lugar, muda de susto ao ser golpeada pela expressão animalesca de Erik; encarando um rosto que, por um segundo, nem pareceu humano.

Sem perder mais tempo, cambaleou até a porta, deparando-se com um corredor tão luxuoso quanto o quarto, decorado com guirlandas e motivos natalinos. Assombrado, Erik se voltou até uma idosa sentada numa cadeira próxima e murmurou:

— Me desculpe, senhora… a medicação me deixou zonzo. Não sei dizer que dia é hoje…

Ela sorriu com simpatia.

— É dois de dezembro, meu jovem.

Erik arregalou as órbitas. A incredulidade invadiu o semblante. DOIS DE DEZEMBRO?! Era difícil acreditar que ficou desacordado por três longos meses. Seu aniversário acontecera sobre uma cama de hospital…

Olhou para baixo, para os próprios braços, compreendendo o motivo pelo qual se encontrava ainda mais magro e fraco do que se lembrava. Supunha que, mais alguns quilos a menos, sumiria de vez.

Frustrado, apenas continuou adiante, tropeçando sem saber muito bem aonde ia. Com a vista turva, deixou que as pernas o carregassem a esmo pelo hospital, até sentir-se chocar contra algo inteiramente sólido. Ele bufou ao cair de bunda no chão, virando-se para o obstáculo enquanto acariciava a testa.

— Presta atenção, moleque!

Erik olhou na direção da bronca. Havia batido num homem forte, careca e mal-encarado. O sujeito trajava um terno impecavelmente preto.

Por um momento, o instinto automático de pedir desculpas e evitar o conflito quase tomou a voz de Erik, contudo, por qualquer que fosse o motivo, optou por sorrir com deboche e disparar:

— Vai se ferrar. Acha que bati em você de propósito?

O homem escancarou a boca, como se não pudesse acreditar que aquele garoto raquítico fosse capaz de resposta tão malcriada. Olhou para trás, na direção de um parceiro que protegia uma porta de elevador, trajado com a mesma marca cara de terno.

— Ora, seu moleque…

A mente de Erik trabalhou muito rápido: ele enxergou os dedos do homem se fecharem, gradualmente baixando no formato de um soco poderoso. Sentiu uma descarga de adrenalina, e toda a informação desordenada que tinha sobre artes marciais de repente se alinhou. Ele se lembrou de cada vídeo que assistiu, cada revista que leu, cada filme ou combate que já presenciou na vida. Era estranho. Inquietante. Contundo, pela movimentação alheia, simplesmente sabia de que modo o homem o atacaria. Num átimo, Erik se levantou e aparou o golpe com a própria mão…

…mas se arrependeu no segundo seguinte.

A dor explodiu pelo braço magro de Erik, repercutindo por toda a extensão do corpo, como se tivesse rompido algum nervo importante. Ainda mais espantado, a surpresa do homem logo se transformou em fúria, baixando um chute no peito do garoto.

Erik desmoronou sobre o piso, incapaz de respirar. Tremia dos pés à cabeça; o cérebro e o braço queimando de dor.

— Moleque atrevido! — vociferou.

— Peço desculpas, senhor. Por favor! — A enfermeira gorducha surgiu apressada de algum canto do corredor, amparando a figura patética de Erik. — O garoto acabou de acordar de um coma. Ainda está confuso.

O homem bufou, ajeitando as lapelas do paletó.

— Então controle seus malditos pacientes! Esse hospital virou zona, é? Sabe que a partir desse ponto, tudo está reservado pro Sr. Lemaire.

O parceiro que protegia a porta do elevador esticou o pescoço, curioso com a balbúrdia, mas não se aproximou, preferindo encarar à distância.

A última coisa que Erik distinguiu foi a enfermeira concordar com humildade, pois a dor que irradiava pelo corpo voltou a crescer. Ele apertou as pálpebras tentando resistir à fraqueza extrema, mas tudo escureceu novamente.

 

*******

 

Erik sentia metade do corpo úmido.

Quando abriu os olhos, percebeu-se caído sobre um chão de pedra aparentemente sem fim. Uma fina camada d’água se espalhava por toda a superfície. Levantou-se assustado, encarando a paisagem. O lugar era frio e desolado, preenchido por uma névoa cinza muito rala; o céu brilhando num tom deprimente.

Notando que se sentia plenamente bem, deduziu que podia estar sonhando, embora aquele mundo se assemelhasse muito mais a um pesadelo.

Entrementes, do solo rochoso perfeitamente plano subiam, de quando em quando, monólitos colossais em direção aos céus, lembrando lápides escuras do tamanho de montanhas.

Foi numa delas, muito distante de onde estava, que Erik distinguiu um ponto brilhando em vermelho. Era a única cor distinta naquele mundo espectral.

Perdido e sozinho, norteou-se pelo brilho, seguindo em silêncio enquanto um grupo de baleias nadava lentamente pelo céu nebuloso. A visão deixou Erik maravilhado. “Que sonho maluco”, pensou ele.

Quando enfim alcançou o monólito, sua boca se escancarou novamente. Aquelas lápides enormes não eram simples rocha negra, e sim um tipo de estante colossal talhada em obsidiana — cada prateleira abarrotada de livros que se erguiam até sumirem na névoa acima.

Havia uma escada de pedra que subia paralela ao monólito, prolongando-se até o patamar do brilho avermelhado. Ele seguiu pelos degraus por um longo tempo, até finalmente alcançar o nível superior.

Quando o viu, teve de apertar a boca para não gritar.

— Estava à sua espera, Erik… — A voz da criatura ecoou na cabeça dele, mas dessa vez muito mais potente, quase um rugido.

Era um ser alto e magro, mas definido; a pele de um branco muito pálido. Seus dedos longos acabavam em pontas, e os pés descalços, em unhas cumpridas. Um trapo escuro lhe cobria da cintura até o chão, como uma túnica esfarrapada pela infinitude do tempo.

Nas costas, um par de cicatrizes cobriam as escápulas, e o torso nu terminava numa cabeça lisa, encimada por dois chifres escuros de órix.

— Quem… é você? — Erik perguntou a uma distância segura, fitando a entidade.

Ela, que vasculhava alguns livros na estante de obsidiana, virou o rosto até ele. Erik engoliu em seco, encarando uma face inexpressiva de manequim, mas com olhos que brilhavam de um escarlate intenso.

— Há muito tive um nome… Antes da Queda — disse em seu tom gutural. — Uma das poucas informações que me esqueci nos milênios da minha existência. Tornei-me O Eremita.

Erik se lembrou daquele sonho na escola, daquela sombra.

— Engraçado — comentou, sentindo-se repentinamente idiota. Nada daquilo podia ser real. — Sonhei com algo parecido.

O Eremita expeliu algo próximo ao riso, enfiando um livro de capa dura na estante.

— Fizemos um contrato naquela sala, Erik. Estive te observando desde então. Agora caminhe comigo.

Ficou surpreso com o convite, mas se colocou ao lado da entidade. Começaram a avançar pelo patamar rochoso.

— Aquela sombra…? Era você?

— Sim.

— E o que é você?

— Há muitas eras, fui um anjo. O mais sábio das fileiras de Yahweh.

Erik ergueu uma sobrancelha.

— E não é mais?

— Fui enganado e caí. Aos olhos dos homens, transformei-me num demônio.

— Mas se era tão sábio assim, como te enganaram?

— Através da insídia de Lúcifer, o mais astuto… agora chamado Satanael.

Erik mexeu a cabeça de um lado para o outro.

— Caramba… que sonho doido, isso porque nunca gostei muito das aulas de religião.

— Você não está sonhando, Erik, apesar de estar dormindo sobre uma cama de hospital neste exato momento. O lugar à nossa volta existe entre sonho e realidade… Eu o chamo de A Biblioteca Imortal. Aqui é o meu reino.

— Reino? — repetiu ele. — Você é um rei?

— Um Monarca, título que me põe entre os mais poderosos do inferno, embora não me importe com isso.

— Então há outros como você?

— Não exatamente como eu… mas sim, existem outros Monarcas. Seis de nós. Excluo Satanael deste círculo, pois está num patamar superior como o grande Imperador do abismo. Outrossim, éramos todos anjos de alta hierarquia antes da Queda. — O Eremita estendeu os braços longos. — Naquela era longínqua, eu guardava os segredos das artes, ciências e das coisas recônditas do Céu. Construí A Biblioteca como forma de reunir todo o meu Conhecimento.

Erik deu uma boa olhada ao redor. Tudo era ermo e frio.

— Queria fugir do inferno pra voltar aqui?

— Sim… e não. Com o tempo, você entenderá o meu propósito. Se eu despejasse tudo na sua cabeça agora, você enlouqueceria. Cada desígnio a seu tempo.

— Então me diga… Por que apareceu no meu colégio?

O Eremita fez uma pausa antes de explicar:

— Existem passagens entre o abismo e o mundo dos homens, Erik, e uma delas surgiu naquele prédio. Um demônio, contudo, é um espírito corrompido: algo pela metade. É por isso que precisamos de um receptáculo com uma alma inteira para habitar fora do domínio da passagem, então tudo o que eu podia fazer era vaguear por aqueles corredores como um fantasma. Você surgir àquela noite era eventualidade que eu buscava.

— Então o acordo que a gente fez…?

O demônio assentiu devagar.

— Embora cá ao teu lado, a minha morada, hoje, é o vosso espírito. Através do contrato, fui capaz de retornar à minha Biblioteca. É por isso que lhe concedi uma regalia: como forma de retribuição.

Erik acabou distraído por outra enorme baleia e seu filhote cruzando o céu cinzento. O Eremita retomou a fala:

— Você sentiu, não foi? Àquela hora? Como se todo o conhecimento que reuniu em vida fizesse sentido quando aquele homem tentou lhe dar um soco.

Surpreso, o rapaz escancarou a boca.

— Teve algo a ver com aquilo?

— Eu despertei áreas adormecidas da sua mente. Alinhei tudo o que você já sabia, tornando o seu conhecimento uma ferramenta útil e afiada. Como eu disse: uma regalia.

Erik sorriu ansioso. — Se o que diz é verdade, acho que vai querer algo em troca. É assim que funciona para os demônios, não é?

— Você já pagou o preço, criança. Tornou-se agora um Renegado.

— O quê…?

— Aqueles que assinam um contrato demoníaco: um Renegado, é por isso que nosso acordo basta por agora. A grande questão no momento é: o que você quer, Erik Marconde?

— O que eu quero…? — Ele parou de caminhar, pensando em todos os eventos daquela noite no colégio. Perguntou: — Bianca também está internada?

— Não — respondeu o Eremita. — Ela está bem. Veio te visitar algumas vezes.

— E Vicente…?

— A família dele está custeando o seu tratamento. Inventaram que Vicente o encontrou desmaiado, espancado por criminosos que invadiram sua escola.

A mentira deslavada atravessou o cérebro de Erik como um chicote espinhoso, parecendo ecoar de algum lugar a quilômetros dali. Os olhos travaram sobre o horizonte nebuloso da Biblioteca.

— Está com raiva? — perguntou o demônio.

Não percebeu a princípio, mas apertava o punho com tamanha força que o sangue fugiu dos nós dos dedos.

— Sim. Estou…

A voz de Erik soou mais fria que a névoa ao redor, fazendo jus à fúria gélida que o cortava por dentro. De repente, todos os sentidos pulsavam sob a vontade avassaladora de espancar Vicente até quebrar todos os ossos daquele rosto arrogante. Faria pagá-lo pelo que aconteceu.

— Quero vingança.

— Os problemas dos homens são tão pequenos… — disse o Eremita, seu semblante de manequim criando a leve menção de um sorriso.

Erik não se importou com a indiferença do demônio. Olhou novamente para o céu e um plano começou a se formar em sua cabeça.



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