Sakurai Brasileira

Autor(a): Pedro Suzuki


Volume Único

Capítulo 32: Epifania

 

“Eu entendi o que ele queria dizer, esse sentimento é realmente horrível. Eu quero morrer, eu quero morrer mais do que nunca. Não há maneira de me limpar da desonra tremenda que me atormenta nesse momento. Não importa o que eu faça, não importa o que eu não faço, sempre acaba em fracasso. Essa última tentativa de viver, de abandonar o passado, só me trouxe mais e mais dor, mas ao mesmo tempo, não consigo me imaginar vivendo de outra forma. O que eu deveria fazer? Não há mais esperança para mim, tudo que eu posso fazer com o restante da minha vida miserável é esperar que a desonra me mate por dentro, quanto mais vivo mais desastres acontecem, a culpa é minha, desse mundo miserável, ou o mundo se torna miserável graças a mim? De qualquer forma, minha morte traria mais bem do que mal, minha vida não trás benefício algum a ninguém... Mas de que adianta me culpar agora?”  

Hiroshi então abriu seus olhos, mas não viu nada além da escuridão, ele considerou ter se tornado cego, mas olhando para baixo, seus braços e pés estavam perfeitamente visíveis. 

“O que aconteceu?”  

— Não importa, eu só devo morrer. — Sem esperança, Hiroshi tentou pegar sua wakizashi mas ela não estava em sua cintura. — O que?  

Isso o fez olhar para seus arredores, nesse lugar misterioso, havia uma infinidade de nada, era como o mundo de sombras de Kuro, mas que olhando para baixo não havia nem chão, apenas um abismo enorme de escuridão sem fim.  

— Será que... Já estou morto? 

Hiroshi ficou perplexo por um tempo. Sem mais o que fazer, ele começou a explorar o lugar. Andar era confuso, ao mesmo tempo em que não se sentia cansado, ele parecia não sair do lugar, andar também era indolor, o que o fez considerar que seus ferimentos também haviam se cessado. 

Algum tempo se passou e para surpresa dele mesmo, Hiroshi sentiu sono, então dormiu. Não havia nada para fazer afinal.  

Um dia se passou e Hiroshi acordou desesperado, ele havia sonhado com seu pior pesadelo, ele havia revivido o pior dia de sua vida, onde toda sua desonra, dor e incredulidade com o mundo começaram, o dia em que ele perdeu seu primeiro e único amor.  

Acordar na completa escuridão foi aterrorizante, mas mais ainda era o fato de não haver som algum senão de seu próprio corpo. Qualquer um enlouqueceria nos primeiros minutos, porém, graças a seu poder, ele já estava acostumado com esse silêncio. Apesar disso, ainda era tremendamente desconfortável. 

Dois dias se passaram e tanto a realidade quanto o mundo dos sonhos eram lugares assustadores, cada dia era uma tortura exponencial para a mente de Hiroshi, um sofrimento que ele imaginava como um julgamento dos céus pelas vidas que havia tirado. O peso de ter seu olfato tirado foi pior que com a visão ou a audição.  

Ele percebeu que esse era o ambiente ideal para focar e ver as cores da energia vital, então tentou sentir alguma presença. Tudo que encontrou foi uma sutil faísca saindo se si mesmo, as cores que fugiam de seu peito estavam muito menores que no mundo fora desse breu, mas isso serviu para levantar a questão se estava vivo ou não, novamente. 

No terceiro dia Hiroshi começou a pensar no passado, se lembrando do dia em que o antigo imperador, pai do atual, o salvou, decretou que Hiroshi seria proibido de tocar novamente em uma espada e o convidou para treinar o príncipe. 

“Como ele queria que eu ensinasse sem tocar em uma espada?” 

Hiroshi obviamente quebrou o decreto, foi preso, quase morto, mas salvo por pouco pelo general que o acolheu durante sua primeira guerra. 

— Mas que... — No primeiro mês nesse vazio infinito, Hiroshi começou a sentir uma leve dor quase que imperceptível. — Como posso sentir dor morto? Ou será que estou vivo? Conseguirei sair daqui? Não... Devo estar só alucinando pela falta de sentidos. 

No segundo mês essa esperança aumentou, e Hiroshi começou a treinar esgrima, de início Hiroshi se sentiu feliz, seu progresso agora era maior que nunca.  

Mais dois meses se passaram e Hiroshi atingiu outra barreira em seu treinamento. Era impossível progredir no completo breu, sem ferramenta alguma. Até sua memória estava se tornando turva, de modo em que até os métodos de treinamento estavam se tornando nublados e embaralhados. 

— De que adianta treinar se eu ficar preso aqui para sempre?  

Alguns dias refletindo passaram, e Hiroshi chegou a outra conclusão.  

— Eu devo estar louco, sinto com firmeza que definitivamente eu sairei, mas por que estou treinando a espada? A desgraça que me tirou tudo? ...Agora que me lembrei, eu queria fazer uma padaria, devo voltar a treinar minhas habilidades culinárias.  

Os primeiros meses foram difíceis, era difícil praticar apenas com a imaginação, mas um certo dia, a realidade se misturou com os sonhos, o escuro se tornou claro, o ambiente se tornou vivo, os sonhos se tornaram manipuláveis, eventualmente caindo sobre o completo controle de Hiroshi. Ele conseguia vasculhar em sua própria memória, escolher dentre as infinitas cenas que viveu, manipular os objetos dentro dessas memórias como se fossem físicos, mas conversar com as pessoas de seus sonhos ainda era impossível, eles se moviam como se não o visse, era como assistir uma peça de teatro programada. 

Caso outra pessoa conseguisse ver essa cena, para ela, Hiroshi pareceria um bêbado, conversando com si mesmo, rindo alto sem motivo aparente e manuseando objetos invisíveis com o maior cuidado. 

Até essas alucinações caíram sobre o controle de Hiroshi. No dia em que ele viu a realidade como era, o breu total ao seu redor novamente e recuperou sua consciência, ele não tinha certeza se haviam se passado dias, meses ou anos. O que importava era que ele havia se recuperado e finalmente notado que seus sonhos acordados não passavam de alucinações. 

Ah, é mesmo, eu ia começar a treinar a cozinhar. 

Alguns anos se passaram e Hiroshi se sentiu satisfeito com suas habilidades culinárias. Se antes seus sonhos tinham durações programadas de acordo com suas memórias, agora, Hiroshi conseguia estender ou diminuir essa duração de acordo com sua vontade, acelerando ou diminuindo a passagem do tempo em sua mente ligeiramente.  

Em mais alguns meses, ele conseguiu trazer essa habilidade para a realidade, mudando sua percepção do tempo a vontade. 

— Se eu pudesse voltar... — Sua força no mundo real seria incomparável, mas voltar ainda parecia uma possibilidade tão irreal quanto quando chegou nesse lugar. 

Um mês se passou após concluir suas metas, o tédio começou a corroer Hiroshi por dentro. 

— Me tornarei um pensador. — Foi a conclusão que Hiroshi teve para combater a loucura e definir um objetivo para passar o tempo. Se voltasse ao mundo com sua mente nesse estado ele certamente cometeria sepuku em pouco tempo.  

O vazio obrigou Hiroshi a confrontar seus problemas internos que nunca pensou direito sobre.  

— Eu pensava ter abandonado o buxido, mas agora revendo minha vida, vi que em momento algum isso foi verdade. Eu nunca poderia abandonar o buxido, porque parte da minha própria existência é esse maldito código de condutas. Todos devem ter alguma crença para continuar vivendo, e só tive muito azar. Certas coisas estão apenas fora do controle humano. Tudo deve ter um motivo... Certamente não estou perdendo tempo e nunca vou sair daqui, estou vivo e pensante por um motivo, o destino não seria tão cruel... 

Uma vez que se cansou de pensar, percebendo que aquilo não era para ele, o tédio voltou a o corroer por dentro, mas agora vinha acompanhado de uma dor física considerável.  

— Agora não resta dúvidas de que eu estou verdadeiramente vivo, que informação inútil... — Apesar de ter dito isso, essa informação trouxe esperança de voltar, trouxe ânimo para voltar a treinar. 

Antes havia parado por ter alcançado o objetivo de ser forte o suficiente para derrotar o mago que havia o vencido, mas agora ele não se lembrava mais disso. 

Em pouco tempo, Hiroshi percebeu algo estranho. Sua curva de aprendizado em tudo que tentava era exponencial, mas as barreiras que normalmente enfrentava, não estavam mais lá. Confirmando sua hipótese, dia após dia, por anos, sua habilidade com a espada aumentou de forma que se lutasse com seu eu de ontem, ganharia facilmente.  

Ao invés de desejar sair, Hiroshi quis prolongar sua estadia ali. Não havia garantia de que fora de lá essa evolução assombrosa continuasse assim.  

Para fazer isso, ele voltou a modificar sua percepção de tempo ao máximo, mas ao invés de tentar fazer com que o tempo passasse mais rápido até que ele sentisse sono, ele tentou fazer o tempo passar mais devagar.  

— Só mais um pouco... — Ele exagerou e sobrecarregou sua mente, chegando à beira da morte. 

Sofrendo de uma dor de cabeça insuportável, Hiroshi percebeu algo que não tinha notado antes. Esse tempo todo, ele não estava sozinho, algo estava o observando a todo momento, mas de uma distância maior que da Terra à Lua, até onde Hiroshi estimava que sua habilidade atual de sentir presenças estava. Ter notado isso era assustador. A única forma de ter percebido isso era se ele estivesse se movendo em direção a algo mais forte que ele ou se essa coisa estivesse indo em sua direção. 

— Eu tenho que fugir, mas para onde? ...Será que consigo cortar essa escuridão que me cerca? — Hiroshi golpeou o ar em uma velocidade três vezes mais rápido que uma bala, mas nada aconteceu. — Hah... O que eu estava esperando? 

Em poucos segundos, uma pressão avassaladora dominou o ambiente, seguida de um vento brutal e um som altíssimo que fez os ouvidos de Hiroshi sangrarem. O vazio que pensava ser o breu total, o elemento mais escuro que já havia presenciado, foi coberto por algo mais sombrio ainda, uma cor que destruiu as retinas de Hiroshi e que seu cérebro mal conseguia assimilar.  

Esse ser inimaginável tocou a nuca de Hiroshi, que sentiu como se sua pele estivesse sendo arrancada. 

O terror passou, a presença estranha partiu. Hiroshi sentiu seu corpo se revigorar, sua mente clarear e a dor que vinha sentindo faz anos havia desaparecido por completo. Ele tocou em sua nuca e não havia vestígios de ter sofrido machucado algum. 

Rapidamente ele percebeu que o limite mental que vinha ao exagerar na manipulação mental do tempo desapareceu. Mesmo sem focar, ele conseguia sentir sua energia vital maior que nunca. Se concentrando, as cores explodiam para fora de seu peito e cobriam todo o ambiente ao seu redor. Ele se tornou livre para treinar até perceber que não havia mais sentido em continuar. 

Após tudo isso, ele se curvou em agradecimento ao enorme presente da criatura que o visitou. 

Ele voltou a ver o tempo passar normalmente. Hiroshi, que agora só esperava para que chegasse o dia em que sairia finalmente dali, voltou a se relembrar do mundo, se lembrou da promessa que não conseguiu cumprir. 

— Se eu sair e encontrar Aki, como eu o criaria?  

Vários anos haviam se passado no mundo, ou esse tempo, como havia descoberto, era relativo? Centenas de anos, algumas semanas, não tinha como Hiroshi saber quanto tempo havia passado. Ele poderia sair e ver que só segundos haviam se passado, ele poderia sair em um mundo centenas ou milhares de anos no futuro, mas o que o intrigava era que ele poderia muito bem encontrar Aki ainda criança, e como havia prometido, ter que tomar a responsabilidade de o educá-lo.  

Mas como faria? 

— Como tenho tempo, posso começar do básico. Não devo simplesmente passar os fundamentos que aprendi, que me levaram a uma angústia que quase tiraram minha vida — Hiroshi modificou o tempo para que passasse mais lentamente. — Quem eu sou?  

Chegando à conclusão em poucos dias ele passou para o próximo tópico.  

“O que eu quero ser?”  

Essa pergunta foi mais simples, em poucas horas o desejo de se tornar um padeiro veio à mente.  

— A emoção que eu encontrava lutando até a morte, será possível ser encontrada cozinhando e comendo?   

Hiroshi tinha um profundo rancor em relação a esgrima, mas não havia como negar que o sentimento era viciante. Caso não tomasse cuidado em encontrar na cozinha, algo parecido com o que sentia ao lutar e matar, ele voltaria novamente ao seu conforto.  

Como havia tempo, ele percebeu que só ter técnicas perfeitas não seria o suficiente, então voltou a praticar técnicas novas, que só um guerreiro com habilidades inumanas seria capaz de performar.  

Finalmente, quando conseguiu ser livre para transformar qualquer prato de sua mente a prática, perfeitamente, ele se sentiu satisfeito. 

Dois anos se passaram e a dor física aumentou se tornando um incômodo perceptível e constante, como se jogasse limão em suas feridas o tempo todo. Ele foi obrigado a acelerar o tempo, pois passar por esse sofrimento por mais algumas dezenas de anos, certamente o levaria a loucura. 

— Dinheiro, eu preciso de dinheiro para manter a padaria... Eu não pude fazer karê por não ter os ingredientes, mas e se os buscar... Refeições exóticas... Não, experiências únicas em refeições. — Os primeiros protótipos práticos de como seria sua padaria passaram em sua mente. Esses protótipos foram reformados, trazidos a realidade, evoluídos. 

Anos se passaram e finalmente a paz mental veio a Hiroshi, mas em contrapartida, a dor física já o fazia gritar ocasionalmente.  

— Paz demais chega a ser até doloroso. — Foi outra conclusão que Hiroshi chegou em alguns anos.  

Em um dia em que Hiroshi tossiu sangue, ele se lembrou de quando Smile explicou sobre vampiros.  

— Acho que eu entendi Will... Vampiros vivem muito além do que um humano pode sequer imaginar, eventualmente eles já sentiram de tudo, até mais que eu passei, por isso, para eles buscar sensações para se sentirem vivos é extremamente difícil, por isso eles fazem loucuras para se entreterem. No caso de Will era o sofrimento alheio? — Então pensou mais profundamente. — E a Smile... Acho que ela encontrou felicidade na comida... Seu paladar era sua fuga? Mas como ela se contentava em meus pratos imperfeitos? Ela deve ser uma exceção. Vampiros devem conseguir dinheiro melhor que humanos, portanto devem ter provado de quase tudo... E se eu fizer uma experiência que traga felicidade até para os vampiros? Eles estariam dispostos a pagar o quanto fosse para sentirem algo, esse seria um jeito rápido de conseguir dinheiro se eu voltar. 

 Assim em pensamentos, reflexões, treinamentos, loucura, paz, tedio e lembranças décadas se passaram e a dor finalmente preencheu o pensamento de Hiroshi que gritava de dor constantemente.  

— A dor não para mas a morte não chega! Que tortura...  

Eventualmente Hiroshi superou a dor, sua forma de pensar e sua força. Sua existência não podia mais ser definida em apenas um humano forte, ele estava além disso.  

Talvez décadas, centenas ou milênios de anos se passaram para que Hiroshi finalmente vislumbrasse a luz no fim do túnel que era a morte.  

— Em todo esse tempo eu entendi tudo, tudo que me angustiava foi resolvido, exceto por um arrependimento, Aki Sakurai. 

Hiroshi lamentou por não ter tido a oportunidade de ter voltado, mas no fim de sua vida, se lembrou do ser que uma vez o visitou e perguntou para ele: 

— Em todo esse tempo eu não consegui te superar, o que é você? — O silêncio serviu de resposta — ...Vou reformular minha pergunta, pode me ajudar a voltar? 

— Você já ganhou homem sortudo.

— O que? 

Uma fenda se abriu no vazio. Depois de muito tempo Hiroshi pode presenciar algo além de sua imaginação. Além da fenda, havia uma nevasca que cobria tudo, mas antes de conseguir contemplar a realidade, ele foi arremessado para fora. 

 



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