Volume 4 – Arco 3
Capítulo 23: Propostas e Acordos
— Entendo. Agora tudo faz sentido.
Fuyuki, assim dizendo com um sorriso sábio, girou a bebida na taça devagar, fazendo as pedrinhas de gelo baterem contra o vidro. O olhar que ela voltou para Ryota era estreito.
— Embora, neste momento, minha vontade seja de puxar as suas orelhas até que caiam.
— V-Você já tá fazendo isso...
Ryota torceu os lábios, contendo o grunhido de dor por ter a ponta da orelha esquerda puxada até ficar vermelha.
— E pretende ficar assim até quando?
— Até que minha raiva passe.
— Não sabia que era do tipo rancorosa!
— Chamar de rancor é um pouco fora da curva. Eu diria que se trata mais de um sexto sentido meu mandando... — Ela puxou um pouco mais a orelha dela — ... Repreendê-la.
E, como sempre... O lado mãe dela fala mais alto. Ai.
Ryota fez uma careta quando, após uma última puxada, a duquesa empinou o nariz e finalmente a soltou. Ela deu um gole na própria bebida, como se buscasse disfarçar os sentimentos que provavelmente ainda a mantinham irritada, ignorando a garota que protegeu a orelha vermelha como um morango com as palmas das mãos.
Isso que eu nem falei tudo pra ela... Nem teria como. Não conseguiria detalhar o que aconteceu na cela, nem se quisesse. Ainda... Não.
Mas talvez, mesmo quando ela tinha claramente pulado alguns detalhes enquanto contava o que tinha acontecido até ali, Fuyuki não a interrompeu, como se já soubesse, ou pudesse deduzir por conta os furos. Ela apenas erguia as sobrancelhas, o único sinal de que havia percebido uma interferência na linha temporal do que ouvia. Independentemente da razão dela não ter insistido em saber, Ryota ficou grata por isso — apesar de parte dela saber que assim seria quando conversassem.
E, tirando as questões emocionais dela, que ainda estavam bastante instáveis apesar da cena com Zero poucos minutos antes, Ryota não se aprofundou muito no voto com Edward — apenas mencionou um trato — e comentou sobre seu relacionamento claramente nada agradável com o guardião dos Fiore. Embora tivesse ficado claro, pela expressão desgostosa dela, que claramente desgostava de sua presença.
— Miura é um homem desprezível.
Ela sequer precisou oficialmente xingá-lo para que a duquesa prontamente disparasse aquelas palavras ríspidas, quase revirando os olhos no processo.
— Bom saber que não sou a única a detestá-lo.
— Bem-vinda ao clube, garota.
Fuyuki e Ryota brindaram, risonhas, talvez já meio bêbadas. Os cabelos da duquesa deslizaram por seu ombro quando ela inclinou a cabeça.
— Pode me falar mais sobre ele?
— Pelo seu tom, não parece mera curiosidade.
— Porque não é.
Uma sombra cobriu o brilho que normalmente estava naquelas íris azuis. As sobrancelhas da duquesa se franziram.
— Ryota, você-
— ... Não. Ainda... Não.
O clima ficou pesado entre elas. Não de forma ameaçadora ou por estarem prestes a discutir, mas porque o tópico em questão era complicado. E porque, mais do que tudo, Fuyuki Minami entendia perfeitamente os sentimentos daquela ao seu lado. Porque já tinha se encarado no espelho com aquelas mesmas sombras no olhar. Mas parecia mil vezes pior ao ver o quão assustador podia ser quando não era ela a pessoa a buscar vingança.
Após um silêncio desconfortável, a duquesa baixou os ombros e olhou pro horizonte.
— Miura, como você bem deve ter reparado, é um membro dos Akai. Eles são assassinos treinados desde seu nascimento. Uma família manchada com o próprio sangue, e os daqueles que foram determinados a exterminar, contratados ou não.
— Como assim “o próprio sangue”?
Houve uma pausa. Fuyuki olhou para o líquido em sua taça por mais tempo que o necessário antes de piscar.
— Os Akai são uma família originária do leste. São nobres desde que o mundo é mundo, e, do conhecimento de todos, assassinos sangue-frio. Treinados desde crianças para estripar e torturar. Aprendendo a sobreviver sozinhos com apenas uma faca, a fim de que fossem capazes de cometer atos inimagináveis sem pensar duas vezes. Numa situação de vida ou morte, suas vidas são as únicas que importam. Mas, quando se trata deles mesmos, apenas os mais fortes sobrevivem.
“Os fracos, incapazes de empunhar uma lâmina diante de outro ser vivo, são exterminados antes mesmo de serem capazes de se defender. Com sorte, são despachados da família e se tornam parte da desonra, marcados na pele com a própria falta de capacidade.”
O que veio à mente de Ryota ouvindo aquilo foram, naturalmente, os gêmeos. Os vários momentos em que demonstraram parte de seu lado assassino. Os olhos, antes desinteressados e frios, que se tornavam vorazes e selvagens, brilhando de forma insana. As risadas que por vezes arranhavam suas gargantas naquele estado mental, totalmente fora de si. Sora havia ficado assim, certa vez. E também não havia hesitado em decidir matar aquele gato branco na floresta há mais de um mês, quando desconfiou da possibilidade de ser um inimigo. Ele estava correto, no entanto. Porém, ainda assim, se fosse apenas um animalzinho qualquer, sua morte não lhe traria qualquer remorso ou dor. Provavelmente apenas encontraria alguma desculpa para justificá-la, resultado da influência de sua criação.
Era um lado deles que, apesar de Ryota ter se acostumado com a personalidade séria e deturpada dos dois, ainda a assustava quando lhe vinha à mente.
— ... Eles matavam a própria família.
Fuyuki apenas concordou com a cabeça para a afirmação sussurrada da garota, que refletia suas palavras.
— “Os mais fortes sobrevivem”, é assim que funciona. O termo “família” pra eles significa apenas uma ligação sanguínea que acarreta em capacidades e aparência similares, nada relativo a afeição ou proximidade. E, por serem extremamente fiéis à conduta de tradição e honra, sua maior fragilidade é o pequeno número de membros da família. Por não hesitarem em se livrar dos mais fracos, é natural que sejam considerados uma família de extremo poder com uma fama temerosa. É de fato uma raridade que desenvolvam sentimentos uns pelos outros, quem dirá pelos demais. Sora e Kanami são a exceção da exceção. Na realidade... O mais velho sempre defendeu a mais nova com unhas e dentes do patriarca e de seu pai.
A duquesa apoiou a taça e baixou os ombros.
— Sora não me contou muito à respeito, mas ele nunca abandonou Kanami à mercê dos pais. Ela era covarde, incapaz. Não... Ela era boa demais pra sujar as mãos. E Sora a protegeu como pôde, e prometeu treiná-la ele mesmo, ao invés dos mais velhos, que estavam sujeitos à crueldades. Eram apenas crianças, e ainda assim...
— Aquele Shin Akai... Ele é o patriarca dos Akai, não é?
— Exatamente. O avô de Kanami e Sora — Ela se virou para Ryota — E o pai de Miura.
— ... Foi o que imaginei.
Fuyuki fungou com o nariz, irritada só de pensar no mais velho olhando com orgulho e certa ostentação enquanto os seus sucessores destroçavam os inimigos na frente de todos os nobres. Como se fosse um grande espetáculo a ser aplaudido, e não um genocídio em massa.
— Mas eles não parecem se dar muito bem, não é? Digo... Eles não conversaram um só momento. Ou talvez eles não tivessem tempo pra isso, já que estavam lá como guardiões, e não numa reunião de família.
Ryota estava ciente de que, enquanto você estivesse de pé como guardião, não podia fazer nada além de seguir seu mestre e manter-se à postos para atender suas necessidades e protegê-lo, caso necessário. Esse porte também se aplicava diretamente aos outros, então não havia muito a se duvidar.
— Ah, e tinha aquela guardiã da dona Sofia.
— Amane Akai. E, respondendo à sua pergunta anterior: Sim, eles não interagiram antes porque não se dão bem. Como disse anteriormente, não existe qualquer afeto entre eles, apenas puro desprezo. Principalmente em relação aos gêmeos, como você deve ter percebido.
Para ser honesta, ela não tinha parado para observá-los. Mas tinha sentido uma tensão estranha ao redor deles. Apesar de Miura, em especial, não ter demonstrado qualquer sentimento perceptível à ela — além da sua revolta e frieza natural.
Ryota endireitou o corpo.
— Então, se alguém fosse atrás dele, ninguém iria se importar, não é?
— Se está se referindo aos Akai, não. Nenhum deles provavelmente ligaria caso alguém de sua família seja procurada ou morta. Entretanto, Ryota — Fuyuki, com uma sobrancelha erguida, apoiou o queixo no punho e sorriu preguiçosamente — Devo avisá-la de antemão que enfrentá-lo não será tão fácil.
— Não pretendia fazer isso.
— Ah, não?
Percebendo o pequeno instante de hesitação dela, Fuyuki riu.
— Você é bem fácil de ler.
Ryota grunhiu, insatisfeita com a careta que a entregava perfeitamente.
— Não é isso. É sério. Eu só... — Ryota apertou as sobrancelhas, pensando. — Eu até queria muito poder fazer isso eu mesma, mas... Não acho que seja meu trabalho.
— ... Matar Miura?
Uma hostilidade fora do comum preencheu o brilho afiado dos olhos esmeraldas de Fuyuki, que assim sussurrou apenas para ela de forma quase desafiadora.
— Bom... — Ryota fechou os punhos, fincando as unhas curtas na pele — Eu não diria matar, mas... Você sabe... Eh...
Era difícil definir o que ela estava sentindo no momento. O termo “matar” parecia forte demais, embora uma raiva borbulhante sempre a consumisse toda vez que via Miura diante de si. Antes, era apenas ódio. E então, depois do Debute, quando ele a forçou a matar aquela mulher... Uma parte dela tremia só de pensar no quão assombrada tinha ficado. O quão horrível foi a sensação de ser manipulada, passo a passo, antes de tirar a vida de alguém que poderia ser inocente, enquanto vários olhos acompanhavam seus movimentos e claro medo — não, medo parecia muito leviano. Quando acompanhavam seus atos e expressão de puro pavor.
Ainda conseguia sentir aquelas mãos frias lhe tocando, lentamente a guiando para cometer um ato horrível. Como seu suor escorria, pouco a pouco, antes de ter as mãos manchadas em sangue. E então, agora, toda vez que sentia as palmas molhadas por qualquer que fosse o líquido ou razão, precisava secá-las rapidamente na roupa de agonia. Se olhasse pra elas, veria manchas de sangue fresco e quente.
Os sussurros daquele homem às vezes pareciam ecoar na sua cabeça, como um demônio influenciando suas ações. Como uma personalidade horrível e que era incapaz de deter, independentemente do quanto tentasse. Sentia estar sendo observada, julgada. E continuaria sentindo aquilo concordando ou não com as ações daquele demônio.
O quicar oco da cabeça decepada ainda a assombrava. Seus pelos se arrepiaram só de lembrar. A falta de ar que por vezes a assolava não lhe permitia falar... E, naquele momento, ao lado de Fuyuki, enquanto nervosamente esfregava as mãos na calça, a garota murmurou de forma rouca:
— Vingar Marie não é o meu trabalho, por mais que eu queira.
Admitir aquilo em voz alta não trazia tanto alívio quanto deveria. Um peso como chumbo doeu em seu estômago.
— A Marie merece justiça, não importa quem a aplique.
— E pretende dizer isso à ela?
— Não! Nem teria como. Ela é só uma menina...
— Eu também era só uma menina quando a Insanidade matou minha família e acamou minha mãe — Fuyuki de repente também arrumou a postura e olhou fixamente para Ryota, que era incapaz de encará-la nos olhos de nervoso. A duquesa disparou aquelas palavras sem qualquer remorso ou emoção, expressando apenas a verdade — E nem por isso-
— Isso só vai causar mal à ela.
— Você viu todos morrerem sem poder fazer nada. Assistiu torturarem sua família e quase perdeu Zero e Jaisen, e nem por isso alguém te impediu de seguir com sua vingança.
— Não era vingança.
— Chamar de justiça não torna isso justificável ou bonito. Não muda a raiva que sente, o ódio que você tem total direito de sentir e suprir. Isso se aplica à ela também.
Ryota prendeu a respiração.
— Não vai fazer bem pra ela. Eu sei que não. — repetiu.
Torcendo o rosto como se sentisse uma amargura na garganta, Ryota olhou a duquesa de baixo pra cima, então finalmente a encarou nos olhos quando ela disparou:
— E pra você, vai?
— Pra você, foi?
Houve um minuto de silêncio antes de Fuyuki virar o rosto torcido, sem responder.
— Só estou dizendo — prosseguiu a duquesa, devagar — Que deveria deixá-la decidir.
— Eu sei. Mas eu não quero que ela perca... O que nós duas... O que nós todos perdemos.
Por mais que Fuyuki estivesse praticamente de costas pra ela, e um vento frio as abraçasse naquele momento, ambas entendiam. Sabiam perfeitamente qual era a sensação de perder a sua infância. De abandonar a sua antiga vida e precisar carregar um fardo terrível nas costas — fossem seus, ou dos outros. Geralmente, eram frutos de suas próprias decisões imaturas que geravam aquele cansaço, aquelas sombras que ainda permaneciam nos olhos das duas.
Não só delas, como Ryota bem havia apontado. De todos eles.
— É um pouco tarde pra isso.
As palavras de Fuyuki foram como uma navalha fria.
— Talvez. Mas ainda posso impedir ela de se perder. Quero proteger o que restou daquela Marie... Da Marie que eu um dia conheci. Da menina que tinha roubado maçãs pra agradar alguém importante pra ela, que tinha um orgulho impenetrável e um coração jovem. Alguém que podia ter um futuro brilhante pela frente, uma criança que poderia amadurecer e virar uma grande mulher. E para que ela possa trilhar esse caminho de luz ao nosso lado, não vou permitir que siga sozinha pras trevas. Não se eu puder impedir.
— A partir do momento... A partir do momento que se perde a inocência, Ryota, as coisas desandam. Ela não vai ser a mesma. Nunca mais. — Elas se olharam de novo, e uma tristeza profunda preenchia o rosto da duquesa. — Não importa o quanto tente esconder, ninguém continua igual depois que se passa por um trauma. Fingir que está tudo bem ou tentar ignorar essa dor só vai ser pior.
Algo dizia para Ryota que as palavras de Fuyuki se direcionavam diretamente à ela. O que a fez torcer o rosto também.
— Eu sei. Mas, se eu ainda puder-
— Por que continua falando isso?
— Porque ela ainda tem esperança, Fuyuki.
— Não! — Fuyuki, para a surpresa de Ryota, agarrou seu colarinho — Por que continua falando como se a culpa de tudo sempre fosse sua?!
Ryota engasgou, travando. Um suor frio escorreu por sua testa quando se encararam de perto, uma fúria dolorosa no olhar da duquesa. A mão que segurava sua camiseta tremia, oculta pelo tecido, mas ela percebeu o lábio e a respiração descontrolada dela. E, quando ergueu o tom de voz, ficou claro que tinha chegado a um limite.
Mas, por mais que assim fosse... Por mais que Fuyuki pudesse ter um pingo de razão no que tivesse indagado, Ryota apenas segurou o punho da outra e a fez soltá-la devagar, sem desgrudar os olhos dos dela.
— Porque é minha culpa.
— Isso não é verdade — vociferou ela de volta, agora mais baixinho.
— É sim. E eu preciso arcar com as consequências dos meus atos e das minhas falhas com a Marie ajudando ela. É o mínimo que posso fazer.
Não havia como voltar atrás. As escolhas que foram tomadas resultariam em um futuro incerto, e a falta de capacidade de Ryota desencadeou aquela situação. Era culpa dela. E precisava arcar com as consequências disso. Ajudar Marie a sair daquela cela, impedir que ficasse cega por negatividade e a levasse de volta para Luccas até a manhã seguinte era apenas parte de sua obrigação.
O acordo com Edward foi, acima de tudo, para fazer isso acontecer. Mas, pelo visto, ela não sairia tão cedo dali até que alguém fosse até lá tirá-la com as próprias mãos. E se o príncipe não o faria, Ryota tomaria a frente.
Percebendo que ela não cederia tão fácil, a duquesa baixou os ombros, ainda irritada, e se virou para a paisagem. Encheu a taça de bebida e a tomou num gole só, quase quebrando o vidro ao bater a base contra o corrimão plano da sacada. E bufou.
— Você é um caso perdido.
Ryota riu, achando graça no mal humor dela.
— Eu sei.
Fuyuki acenou com a mão.
— Faça o que quiser.
— Da última vez que você disse isso, na hora do “vamos ver” não foi bem assim que as coisas terminaram.
Após dar de ombros para a conclusão e Ryota apontar-lhe com um sorriso no rosto, a duquesa olhou-a por cima do ombro com uma expressão desgostosa.
— Não tô pedindo pra me ajudar nisso porque é algo que preciso resolver sozinha — Então, ela ergueu a sobrancelha, alargando o sorriso de forma esperta — Mas podemos fazer um acordo.
— Um acordo?
— Um acordo para que nós duas saiamos no lucro.
— E o que pretende me oferecer?
Fuyuki, voltando a se apoiar de forma elegante, girou outra vez o gelo na taça. Ela parecia fazer bico. Ryota, então, ergueu o dedo indicador e o pressionou suavemente sobre os próprios lábios.
— Que tal a oportunidade de fechar a boca desses nobres nojentos?
Um riso, quase um rugido, escapou da garganta da duquesa, que encheu as taças outra vez.
— E, de brinde, criar uma situação humilhante pro nosso inimigo em comum?
Os olhos esmeraldas acompanharam quando Ryota tomou sua taça nas mãos e a inclinou na direção da duquesa. Fuyuki, após um suspiro pesado, brindou com ela e bebeu num gole só. E, para a surpresa da garota confiante à sua frente, gargalhou de forma maléfica.
— Por onde começamos?
***
Encostado contra a parede do corredor, Edward pressionou as têmporas com os dedos e as acariciou, sentindo uma pontada que doía.
Ele abriu os olhos e então, relembrando perfeitamente do que haviam conversado na sala, soltou um suspiro, que veio acompanhado da voz de seu pai, alta como dificilmente escutava:
— Isso é tudo culpa sua.
Fanes Fiore não estava gritando, nem nada do tipo. Ele jamais erguia o tom de voz além do necessário, principalmente quando se tratava de dar um esporro no filho. Não havia qualquer sinal de irritação em seu rosto ou voz, por mais que o tom soasse mais grave que o comum. Geralmente, o rei falava de forma clara e suave, alegre. Agora, parecia murmurar com certa intensidade.
Ele colocou a taça de ouro sobre a mesa e apoiou o cotovelo no braço da cadeira alta, segurando a testa com uma das mãos. Então, bufou ao silêncio.
— Se você pudesse evitar esse tipo de demonstração desnecessária, as coisas não sairiam do controle desse jeito.
— Não sei a que se refere.
Fanes o olhou por baixo dos dedos. A resposta disparada pelo príncipe foi bastante rude.
— Está me culpando pelo ocorrido de há pouco? Peço desculpas, mas não tenho nada a ver com-
— Não é esse o problema... Não é sobre isso, Edward — Fanes soltou um suspiro ao chamá-lo pelo nome, parecendo cansado — Mas seus atos... Impensados estão causando situações complicadas. E é apenas o Debute.
— Estou bem ciente de meus atos, pai. Não me arrependo de nada.
— Nem de erguer a voz para mim durante o jantar?
— ... Não.
Embora Edward tenha hesitado ao ser perguntado tão diretamente, o príncipe respondeu. E aquilo foi o suficiente para o monarca baixar os ombros, como se um peso invisível o movesse.
— A essa altura, meu filho, achei que já tivesse passado da fase de criar situações constrangedoras pra chamar a atenção dos outros.
Edward pigarreou com raiva, tapando a boca com o punho.
— Eu não precisaria chegar a tal ponto se tentasse me escutar uma única vez.
— E não estou fazendo isso agora?
Fanes abriu os braços, as vestes farfalhando quando fez o gesto. A expressão séria de Edward não se alterou nem um pouco com o rumo da conversa, embora Fanes parecesse um pouco frustrado naquele momento. Bem, sua pequena piadinha, mas que também continha uma pequena verdade, não tinha gerado efeito nele.
O rei lentamente voltou a uma posição confortável, batucando as unhas na taça de ouro, o tilintar sendo o único som no cômodo em que estavam. Fanes tinha retirado a coroa real e a guardado num lugar seguro. Seus cabelos estavam inteiramente soltos, espalhados pela poltrona. Eles eram lisos e hidratados. Tão bem cuidados que era quase surpreendente. Edward não teria tal capacidade, nem se tentasse — afinal, era o próprio rei que cuidava do cabelo, e jamais permitia que algum empregado o tocasse sem sua permissão.
Talvez fosse, de longe, a única coisa que seu orgulho não lhe permitia ceder. E orgulho era algo que, em geral, Fanes Fiore não possuía.
Mas ele tinha um coração. E por isso uma expressão de dor se mostrou em sua face quando ele se forçou a encarar o filho nos olhos ao perguntar:
— Por que escolheu uma guardiã sem me consultar?
— Você nunca disse que eu não poderia.
— Por favor, não me faça repetir, Edward. É um assunto sério.
O príncipe arqueou uma sobrancelha, como que zombando ao ver ele falar aquilo.
— Não sabia que levava alguma coisa à sério.
— Quando o assunto é o seu futuro e o do reino, sim, eu levo à sério. E nesse momento preciso saber a razão de ter escolhido aquela garota ao invés daqueles que lhe encaminhei.
— Ah... Desses aqui?
O príncipe fez cara de quem havia se lembrado de algo, então enfiou a mão num dos bolsos da calça antes de retirar um papel dobrado... E o jogar na cara do rei, se desfazendo em vários pedacinhos. Ele tinha rasgado o papel sem qualquer remorso.
Fanes observou os pedaços planarem, alguns caindo no chão, outros pousando suavemente sobre a planície da mesa.
— É assim que responde aos meus recomendados?
— É assim que decidi responder quando ignorou aqueles que eu achei adequados.
O rei juntou as sobrancelhas, cruzando as pernas.
— Certo, não direi que não são pessoas bastante adequadas para o papel de guardião do futuro rei. Li todos os currículos e históricos que me enviou, e não posso discordar que são pessoas promissoras. Mas me recuso a recebê-los por três razões.
Quando o príncipe ergueu três dedos na mão direita e começou a andar de um lado para o outro, Fanes percebeu que não seria fácil barganhar com ele. Uma gota de suor escorreu por seu rosto. Há quanto tempo aquele menininho que costumava correr para seu colo, feliz em vê-lo após um dia inteiro de trabalho, havia crescido tanto e se tornado aquele homem confiante e distante à sua frente?
— Primeiro: Por mais que seja ótimo receber recomendações, não é você quem escolhe a pessoa que ficará ao meu lado. Sou eu.
O duplo sentido na frase era evidente, e o príncipe não tentou esconder a irritação, nem a vergonha por confessar estar frustrado com a insistência do pai em buscar noivas para ele. Não era a primeira vez que Fanes fazia aquele tipo de coisa um pouco insensível em mandar listas de nomes e mais nomes de pessoas que pareciam adequadas, mas talvez ele tivesse passado dos limites daquela vez. Ao menos foi o que pareceu quando um rubor fraco preencheu o rosto dele por um curto instante.
— Segundo — Edward voltou a andar e ergueu o outro dedo — Essa lista claramente foi feita com base no tipo “ideal” de guardiões... E, é claro, que quase metade dos listados são da família Akai. Nesse sentido, me recuso a contratar outro deles.
— Ah? É a primeira vez que ouço falar sobre seu desgosto em relação aos Akai.
— Não é nada particular — Edward cruzou os braços — O jeito com que eles trabalham ou agem não tem relação comigo. Entretanto, me desagrada. Depois de hoje... Não.
— Eles são competentes, responsáveis e leais.
— E assassinos que matariam a sangue frio qualquer um sem pensar duas vezes — rebateu o príncipe, com claro desgosto na voz — Não sei se confio o suficiente neles, ou em Shin, para acarretar numa decisão dessas.
Fanes deu de ombros.
Era a única justificativa que ambos deveriam concordar. Afinal, Shin Akai era um homem bastante astuto, e deveria estar ciente de que seus sucessores eram dignos e muito procurados para receberem contratos de nobres da região que buscavam segurança e lealdade acima de tudo. Entretanto, havia um suposto questionamento bastante desagradável que sempre surgia quando alguém optava por um Akai como guardião: Até onde ia sua lealdade?
Quais as chances do enviado não ser um espião? De tomar informações de seu mestre e levar até o patriarca a fim de ganhos próprios? As possibilidades eram infinitas, e desconfiança entre a nobreza não faltava — principalmente quando falamos sobre um grupo de pessoas elitistas que estavam o tempo todo tentando subir uns por cima dos outros a todo custo. Em partes, porque, anteriormente à Era Sombria, mais da metade dos líderes eram inimigos. A outra razão era a forte ansiedade e pressão que todos os que estavam no topo se encontravam — afinal, o mundo estava com os dias contados.
Após o breve pensamento, Fanes logo inclinou a cabeça para o filho em silêncio.
— Ookay. — O tom debochado não diminuiu a tensão. — E quanto aos outros?
— ... Um contrato entre um mestre e seu guardião é marcado pela união da confiança e respeito entre ambas as partes. Não se trata só de escolher alguém forte ou competente. Se não houver uma ligação minimamente estável, não adianta.
Edward se encolheu quando os olhos do pai dispararam para seu rosto, então desceram para seu pescoço. Ninguém havia visto a marca do acordo, ainda. Mas, pelo jeito, Fanes também não parecia desconfiar, e apenas o analisava de cima a baixo.
Era quase engraçado ele estar dizendo aquilo àquela altura do campeonato, uma vez que um voto era totalmente o oposto do que estava falando.
— Isso é verdade.
A concordância de Fanes foi bastante surpreendente, de certa forma. Era curioso de pensar como deveria ter sido o chamado e a ligação que deveria haver entre ele e Miura Akai, um homem de personalidade e ideais totalmente opostas aos do mestre. No entanto, estavam sempre juntos, e havia claramente uma boa dinâmica entre eles — por mais que o guardião jamais admitisse isso em voz alta.
— E qual a terceira razão?
Edward ergueu o último dedo.
— Eu já tinha explicado ela antes, não? Nenhum deles atende aos meus requisitos.
— Quanto egoísmo.
— Pai, quando se trata das minhas coisas, eu decido como são. Vou repetir: Agradeço todas as sugestões, mas até que se prove o contrário, nenhum deles é digno de estar ao meu lado.
— E o que é necessário pra isso acontecer? Ser uma garota bonitinha?
O príncipe imediatamente fechou a cara com essa brincadeira, nada envergonhado ou incomodado com a direta do pai. Fanes, percebendo a reação oposta que esperava, deu um suspiro e balançou os ombros, como que se desculpando.
Edward não recuaria tão fácil. Fanes percebeu isso só de olhá-lo mais uma vez, principalmente depois das piadinhas que fizera para tentar descontrair o ambiente — piadas essas que mais o irritaram que o tranquilizaram.
O monarca se recostou contra a poltrona outra vez, relaxando os braços e corpo. A cabeça pendeu para trás, permitindo que olhasse sem problema para todo o perfil do príncipe. Ele parecia confiante, sério. Destemido. Talvez um pouco mais tenso do que antes, graças ao ocorrido depois da Cerimônia de Benesse. Dava pra ver que estava trocando de pé, e mantinha os passos para evitar que demonstrasse qualquer tique nervoso. Mas não podia disfarçar o enrijecimento do maxilar, ou o tremular das íris violetas com um belo aro dourado.
Após um longo silêncio, o rei finalmente inspirou fundo.
— Mas me diga, Edward...
E foi naquele momento. Quando os olhos dos dois finalmente se cruzaram de novo, um brilho afiado como a morte despontou das íris alaranjadas de Fanes.
— De onde tirou a ideia de ajudar uma prisioneira?
Lentamente, o mais calmamente que o príncipe conseguiu disfarçar o arrepio de medo que o percorreu, ele respondeu:
— Do que está falando?
— Não se faça de idiota.
— Não estou.
— Então não sabe de nada relacionado a uma certa garotinha chamada Marie?
Edward piscou.
— Não sei — Então apoiou uma das mãos na cintura — Acha mesmo que eu libertaria alguém das celas sem seu consentimento ou razão?
— É uma pergunta bastante estúpida de se fazer depois do dia de hoje.
— ... Está certo. Mas, neste caso, estou sendo sincero. Não sei do que está falando. Por acaso alguma coisa aconteceu lá embaixo?
Fanes encarou Edward pelo o que pareceu uma eternidade antes de apertar os olhos para o filho, analisando-o. Procurando por qualquer traço de suor, mentira, tensão ou tique corporal que indicasse nervosismo ou mentira.
— O palácio pode ser grande, mas as paredes tem ouvidos. Rumores andam circulando. Achei que tivesse escutado algo a respeito.
— Não... Não ouvi nada. O que-
— Não importa. De toda forma, já está ficando tarde. Volte para seu quarto. Conversamos mais durante a manhã. Não podemos nos atrasar para recebê-los durante o café.
Após assim dizer, o soberano ergueu-se da cadeira e deu as costas para o príncipe, caminhando até a janela, os braços atrás do corpo. Os cabelos longos balançaram ao movimento. Era curioso vê-lo dizer aquilo depois das coisas que haviam dito sobre eles antes do jantar, e, internamente, Edward estava perfeitamente ciente que, em partes, era uma desculpa, mas uma muito bem escolhida — até porque, logo após o jantar, Miura havia puxado a orelha do rei por conta do seu atraso.
Edward sentiu vontade de dizer algo e protestar, mas apenas suspirou, baixando os ombros e arrumando a postura.
— Está bem, meu pai. Boa noite.
O príncipe fez uma reverência e foi em direção à porta.
— Edward.
E parou ao chamado, a mão pendendo na maçaneta da porta.
— Conversaremos com mais calma depois.
— Depois quando?
— ... Depois.
Podia parecer estúpido, e até a convencional situação onde o pai nunca dava o tempo necessário para o filho, o que gerava uma revolta interna dentro dele a fim de receber a atenção necessária. Então, em prol dessa mesma simulação comum, a criança faria de tudo para ter um momento com os pais, nem que seja somente para receber um sermão.
Talvez fosse o caso de Edward. Porque, naquele instante, uma raiva incondicional ferveu em seu corpo. Mas, na verdade, as circunstâncias daqueles dois iam muito além do que se via através de seus poucos diálogos em público, ou do que faziam atualmente.
Eu odeio esse tom despreocupado dele.
— Certo. Entendi. Então é isso o que você chama de apoio, não é? — Edward fungou o nariz e girou a maçaneta, ainda sussurrando com cinismo — Muito obrigado, pai.
E bateu a porta.
Foi um esforço enorme para ele controlar a respiração que nem percebeu estar pesada até notar seus ombros subindo e descendo rapidamente. Seu rosto tinha se contorcido numa careta que era desagradável de olhar pelo reflexo da janela. O príncipe tinha andando um pouco, parando num corredor distante antes de finalmente se permitir respirar um pouco e olhar para longe.
A noite estava bonita. Apesar do ocorrido no jantar, que ainda fazia seu estômago se contorcer só de lembrar — foi uma sorte imensa não ter despejado tudo na frente de todos os nobres enquanto lutava para manter a máscara de confiança no trono. No céu escuro, os pequenos pontos de luz piscavam vez ou outra. Estava razoavelmente frio naquele momento. E já devia ser bem tarde se os corredores estavam tão silenciosos e vazios, iluminados apenas pela luz da lua e das lamparinas.
Edward esfregou os olhos que estavam semicerrados para parecer mais apresentável quando ouviu passos se aproximando, então cruzou com dois guardas ao seguir em direção aos seus aposentos.
Mas tinha algo estranho.
O corredor que direcionava até as portas de seu quarto estava... Vazio. Os guardas, que normalmente permaneciam em seus respectivos postos ao lado e em fila nas paredes não estavam mais lá. Um silêncio pairava no ambiente, mas não de um jeito normal.
Com um arrepio atípico lhe subindo nas costas, a tensão de há pouco se dissipou quando Edward caminhou lentamente, os passos ecoando por seus ouvidos, e segurou a maçaneta prateada. Por fim, após um instante de hesitação, abriu a porta com tudo.
A primeira coisa que o príncipe percebeu foi que o cômodo estava escuro. A luz das lamparinas haviam sido apagadas, deixando que apenas a iluminação do corredor e a luz da lua cheia do lado de fora, através da janela, chegassem até o quarto.
Mas, ainda mais curioso foi que, mesmo sabendo o quão estranho isso era, ele apenas fechou a porta atrás de si e se concentrou no que estava adiante. A sua mesa de trabalho cheia de papéis de estudos, pastas, canetas e um quadro era parcialmente iluminada pela luz púrpura azulada do céu e suas estrelas.
— Está atrasado.
Como se a lua finalmente tivesse percebido a presença da segunda figura no quarto, a luz se estendeu lentamente até a poltrona. Primeiro, alcançou o par de pés apoiados cruelmente sobre os papéis, as pernas cruzadas de forma relaxada. Então, o corpo feminino, e o rosto da moça, cujo sorriso corajoso era tão surpreendente quanto o brilho de determinação em seus olhos azuis.
— É uma pena que os anfitriões deste palácio sejam tão mal-educados. No entanto...
Ryota inclinou a cabeça e mostrou os dentes.
— ... Parece que finalmente teremos nossa prometida conversa, hein, principezinho?