Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 11 – Arco 4

Capítulo 43: O Segredo está na Informação

— Olha só quem resolveu aparecer! Já tava preocupada pensando se cê já não tinha virado um fantasma dentro daquele prédio, mas parece que tá tudo certo, né Amanezinha?

Não houve resposta por parte da acompanhante, e por isso a mulher de cabelos cor de fogo soltou um suspiro exasperado à mesa. Em paralelo à interação unilateral, a garota se aproximou da dupla chamativa e adentrou no bar com passos cautelosos.

O ambiente era relativamente silencioso, e poucos clientes frequentavam o comércio. Apesar de estarem no centro da cidade, as vozes soavam baixas o bastante para mal serem ouvidas, e apesar de Scarlet estar fazendo um escândalo desnecessário, era perceptível que ninguém ao redor se incomodou de verdade. Se era porque estavam acostumados ou porque a conheciam de longa data, Ryota não sabia dizer.

— Há quanto tempo.

— Ora, ora? Você parece bem mais fortinha desde a última vez que conversamos, hm? Fala também, Amane!

O cumprimento foi recebido com uma cotovelada amigável na altura da cintura, mas Ryota permaneceu no lugar como uma pedra e desviou sua atenção do rosto vermelho de Scarlet para a assassina de olhos vermelhos. Olhar para Amane era como um espelho dos gêmeos que tão bem conhecia, mas não via há quase meio ano, trazendo-lhe um misto de sentimentos confusos.

Dentre eles, a saudade e o amargor de recordar do estado remanescente da irmã mais nova e da visível culpa e amargor do mais velho a fizeram sentir azia. Então, desviando-se das memórias do que ocorreu em Hera, a garota acenou educadamente com a cabeça para as duas mulheres.

Duas das guardiãs de Sofia, dois elementos tão intrinsecamente estranhos quanto o próprio Sasaki, aquele ao qual era mais próxima. Se mesmo o curandeiro ainda não era digno de receber sua total confiança, aquelas duas eram ainda menos verossímeis de serem ouvidas. Dado o caráter duvidoso de sua mestre, Ryota duvidou por uma longa parcela de tempo que Scarlet ou Amane fossem confiáveis.

Entretanto, havia conflitos demais em sua mente para que se desse ao trabalho de mensurar os prós e contras, e a informação era mais do que valiosa. Se parasse para refletir, o conhecimento ao qual veio buscando durava quase um ano. Desde os ocorridos em Aurora, seu vilarejo natal, Ryota nunca parou de buscar por respostas, de correr por um caminho que parecia se repetir infinitamente, onde cada explicação apenas a levava a um caminho ainda maior de perguntas.

Pessoas morreram sem dar as devidas motivações, outras desapareceram misteriosamente e algumas se recusavam até agora a abrir a boca. Era certamente frustrante, mas não estava disposta a desistir agora. 

Coisas demais estavam em jogo para abandonar tudo o que tinha em mãos. E se para conseguir o que queria era necessário ouvir de quem não podia confiar, assim faria.

Devia ter aprendido a distinguir mentiras e devolvê-las na mesma moeda como ninguém.

— Preciso conversar com vocês. Tem um momento?

Apesar de não sorrir, Ryota endireitou a postura e assim pediu educadamente. O sorriso de Scarlet apenas aumentou quando deslizou para o lado, puxando ruidosamente um assento para que se juntasse à elas, e Amane permaneceu impassível como se sequer a tivesse ouvido.

— Claro, claro! Venha, querida! Sente e beba conosco!

Havia demandado algum tempo para que Ryota percebesse que o bom humor da guardiã não era apenas parte de sua personalidade, mas também devido à alta quantidade de álcool ingerida. Por um momento, a preocupação da garota com a veracidade do que conseguiria durante a conversa aumentou, mas para sua surpresa, a sombra ao seu lado murmurou.

— Ignore-a. Scarlet sempre se excede.

— Poxa, não conte essas coisas pra ela! Vou parecer uma má influência tão ruim quanto Sasaki, sabe?

— Ambos são igualmente de índole questionável.

— Amaneeeee!

Ryota poderia ter rido com a troca de palavras bruscas entre uma mulher cheia de energia e a outra que era como uma presença meramente distinguível. Entretanto, a energia que vinha das duas era bastante agradável, e assim como Sasaki, as guardiãs eram estranhamente confortáveis de se ter por perto.

A íris vermelha como sangue voltou-se para Ryota, e as duas se encararam por alguns segundos. Queria ser capaz de desbravar os pensamentos que haviam por trás daquela inexpressividade. Diferentemente de Sora ou Kanami, Amane era como uma muralha instranparecível. Os gêmeos lentamente se abriram com ela conforme passou mais tempo ao lado de cada um, embora no começo um fosse rude e a outra educa demais.

Enquanto isso, a guardiã de Sofia, que Ryota se recordava ser também seu braço direito, era um poço de mistérios. Demonstrava respeito, mas nenhuma emoção. De todos os Akai que conheceu, ela certamente era a mais distante e fria — não com hostilidade, mas em emoções. Como se fosse uma carcaça sem alma, mesmo com os comentários diretos e duros característicos.

Ryota também reparou tardiamente que a intromissão de Amane na conversa foi uma forma quase gentil da assassina garantir que Scarlet não mudaria suas palavras com a falta de discernimento com o álcool. Isso a deixou tentada a agradecê-la, mas tão rápido quanto trocaram olhares, a guardiã fechou o único olho visível e se calou.

— E então, sobre o que quer falar? Pode desabafar tudinho pra tia aqui.

Scarlet eventualmente ignorou sua colega e olhou para Ryota com uma expressão brilhante de energia, batendo no peito com a mão. As palavras a deixaram atordoada por um instante, e então se viu respondendo com outro comentário:

— Achei que tivesse a mesma idade de Sasaki.

— Hm? Bem, nós nascemos na mesma década, mas não me compare com aquele moleque. Ele ainda está a anos luz de minha experiência de vida.

— … Entendo.

Ryota quase sorriu. Scarlet era uma mulher de personalidade forte e que tinha uma amizade de longo prazo com Sasaki — algo visível mesmo sem a necessidade de perguntar. Apesar da curiosidade, não sentiu que era o momento certo para discutirem sobre o passado, apesar da guardiã certamente parecer se comportar como uma “tia” nesse quesito.

— Mas não vamos discutir sobre aquele idiota agora enquanto estamos com tempo livre. Me conte como estão as coisas em Gnosis, sim? Fazem uns dois ou três meses que você adentrou no percurso regular, e estou curiosa com qual curso está interessada em adentrar.

— Na verdade, não pretendo continuar estudando após o percurso.

— Ué, e por que não? 

— Há… Outros assuntos que preciso resolver.

Ryota desviou sua atenção para o atendente do bar, que estava distraído cuidando dos copos, e recordou-se de alguém que outrora fazia o mesmo diariamente. Sua mente vagou para as pessoas que contavam com ela, que perderam suas esperanças e outras que cortaram laços bruscamente.

Independentemente do que cada uma pensava agora, a própria Ryota não conseguia se permitir abandonar aquelas que contavam com sua promessa: Voltar para Thaleia com a cura prometida e mais informações conseguidas com Sofia.

Havia se limitado a não entrar em contato com Edward desde então por diversos motivos, e um deles era a falta de palavras com as quais usaria para comunicar as descobertas. Além disso, mesmo sabendo que o rapaz — agora rei — confiaria quase plenamente nela, a responsabilidade das informações que seriam repassadas pesava em seus ombros.

Ryota não queria voltar de mãos abanando, muito menos com informações imprecisas. Queria provas, mas mais do que isso, desejava a verdade. E para ter a verdade, era necessário atravessar as provações. 

Sofia ainda era um ser que lhe custava acreditar em boa parte do tempo, e colocando de lado suas explosões emocionais com as omissões e manipulações, uma precisava da outra por razões pessoais. Dado que a Entidade não mentiu sobre a localização da Maga Veridian, se pôs a crer que as demais informações também não seriam apenas uma isca.

Era uma corda bamba onde brincavam como gato e rato, e confiança mútua era nada mais que outra carta naquele jogo das Entidades. Enquanto os humanos priorizavam a verdade e o coração, elas usavam aquelas prioridades através da manipulação pelas próprias vontades.

Mas, de toda forma, Ryota ainda tinha razões para permanecer em Celestia, mas não por tempo o bastante para adentrar voluntariamente no Instituto Gnosis.

— Para uma garota de dezoito anos, parece que está carregando uma grande bagagem nas costas.

— … Talvez.

Ryota não gostava de pensar muito sobre como sua idade afetava as responsabilidades que estavam em suas mãos, especialmente quando quase todos os demais ao seu redor eram tão jovens quanto e pareciam ter pesos ainda maiores nos ombros.

— Parece que a idade não determina o tempo de alguém.

Scarlet complementou um pouco mais baixo, o dedo indicador passando na borda do copo com gotículas geladas escorrendo pelo vidro. 

Ryota permaneceu em silêncio, e aguardou pelas palavras que viriam a seguir quando os olhos violetas suavizaram.

— Não importa quantos anos se vive, onde se nasce ou quando se adquire a maturidade: O tempo nunca espera por você. Às vezes demoramos muito mais do que devíamos para entender o que e quem espera por nós.

O ruído do ambiente ficou distante, e a voz da guardiã de cabelos como fogo pareceu distante, quase melancólica, como um sussurro ao vento.

— Demorei muito, e por isso perdi tanto quanto desperdicei. 

Scarlet ergueu o queixo para Ryota após um momento de reflexão e emoções que desconhecia se passaram naquelas íris que pareciam jóias.

— Gostaria de ser uma mulher no auge dos trinta anos que possa te guiar para o caminho certo. Mas, até agora, nem mesmo eu sei para onde estou indo.

Por alguma razão, Ryota sentiu que a guardiã entrou no tópico principal ao qual desejou começar aquela conversa — e se perguntou se desde o começo as duas mulheres ali sabiam de suas intenções.

— Mas se tem algo que posso lhe dizer… É que tudo tem um preço.

A garganta de Ryota se fechou, e respirar tornou-se difícil por um momento quando respondeu, murmurando tão baixo quanto a outra:

— Eu sei.

Houve um longo silêncio, e Amane ergueu a pálpebra para observar Scarlet, parecendo igualmente pensativa.

— O valor a ser pago por aquilo que procura sempre será de sua escolha, mas nem sempre estará de acordo com o requisitado.

Duas íris azuis e uma vermelha se cruzaram outra vez.

— Quando se falta com o requisitado, os juros pagos sempre serão altos.

— Como saberei quanto pagar?

Scarlet continuou a alegação de Amane.

— Às vezes, haverá negociações fáceis, e os valores serão expostos na mesa. Outras, serão bem mais complicadas, e você precisará permutar para que ambas as partes saiam satisfeitas.

Ryota queria respostas concretas para suas perguntas, mas não parecia que nenhuma das duas guardiãs queriam — quiçá sequer podiam — respondê-la conforme desejava. 

Mas se havia algo ao qual aprendeu e que acabou de ser reafirmado era que nem sempre suas vontades seriam atendidas pelos outros como desejava. Sendo assim, ela apenas precisaria contornar os problemas através da barganha.

— O segredo está na informação.

Scarlet abriu um sorriso experiente e tocou abaixo do olho com o dedo indicador.

— Observe e escute. Aprenda e use isso ao seu favor. Assim, saberá qual valor a outra parte deseja, e mostre isso como uma isca disfarçada para apresentar seu próprio preço.

— O guie e prenda para que não possa escapar. 

A sincronização de pensamentos entre as duas guardiãs era surpreendente e Ryota quase se desconcentrou da conversa. Entretanto, apesar das mensagens transmitidas pelas metáforas, sua mente lentamente trabalhou para transformar o que Scarlet e Amane lhe diziam em métodos para encontrar as respostas.

— Por onde começo?

A pergunta de Ryota fez Amane baixar os ombros e Scarlet rir com o nariz, como se ambas estivessem aguardando aquela questão há muito tempo.

— A origem do conhecimento está aqui.

O punho da mulher com cabelos de fogo tocou em seu peito, e Ryota sentiu o baque acima do coração com um estremecimento na espinha.

Foi um toque gentil, um soco amigável que não transmitiu dor, mas uma quantidade tão grande de significados que Ryota quase ficou sem ar.

E assim, após os olhos se arregalar levemente, abriu um pequeno sorriso de compreensão.

***

Quando Ryota se despediu das guardiãs, o sol manchou a cidade em uma luz laranja tão forte que parecia transformar o mundo em uma grande pintura.

Acho que entendo agora.

Ainda não estava completamente claro, mas após debater e frustrar-se profundamente, lentamente o significado fazia sentido. 

Não apenas a conversa com Scarlet e Amane a fez refletir sobre diversos pontos importantes, como todas as memórias geradas ao lado das pessoas em Urânia fizeram-na enxergar com um novo ponto de vista.

A origem do conhecimento.

Havia diversas interpretações para o que as palavras significavam, mas o toque gentil de Scarlet na altura do coração a fez considerar a primeira de todas as possibilidades.

Auto-conhecimento também é informação.

Descobrir sobre suas próprias origens, motivações e sentimentos também fazia parte do jogo. E, acima de tudo, deveria ser sua prioridade para que pudesse passar não apenas por aquela provação, mas pelas demais que viriam a seguir.

Sempre soubera que uma fonte de sabedoria era preciosa, mas no fundo todas as pessoas ao seu redor eram tão importantes para este fim quanto Sofia.

“Conhecimento reflete ao estudo e a experiências. Em suma, é viver, ouvir, aprender… E ensinar.”

Sofia dissera aquilo bem no começo, em uma de suas conversas no Empíreo. No fundo, a chave para as respostas que queria estava diante de seus olhos.

“Demorei muito, e por isso perdi tanto quanto desperdicei.”

Ainda que não soubesse por quais dificuldades havia passado, Ryota se identificou com Scarlet. Talvez a guardiã não falasse apenas dela, mas de Amane e todos os outros com quem conviveu, também.

Era um arrependimento que carregaria pelo resto de sua vida, uma marca ao qual nunca se esqueceria. Apesar de ser um conhecimento obtido através da experiência, havia outros que não precisavam dela para serem adquiridos.

Os sentidos também a presentearam com o dom da informação — olhos para observar, ler e estudar; nariz para cheirar e distinguir; tato para manusear e encontrar; boca para expressar e se comunicar; ouvidos para escutar e compreender através de outras pessoas.

Obviamente, as metáforas das guardiãs eram guias que pareciam apenas óbvios de serem usados no mundo real, mas não trouxeram nenhuma grande revelação para a provação.

Ryota estava ciente de que precisava ouvir os outros para conseguir as informações necessárias, mas temia envolvê-los com a ciência do que as Entidades poderiam lhe causar. O pavor da traição e a dor da morte ainda eram táteis, e podia sentir o suor frio escorrer por sua nuca apenas de relembrar aquelas sensações.

Mas… Tudo tem um preço.

Cada provação ao qual passou exigiu um grande esforço emocional de Ryota para encontrar e expressar aquelas emoções conturbadas de seu coração. Talvez o que Sofia buscasse nela estivesse exatamente ali — em seu peito, no coração.

“O valor a ser pago por aquilo que procura sempre será de sua escolha, mas nem sempre estará de acordo com o requisitado.”

As condições de vitória para aquela provação eram desconhecidas, mas estava começando a compreender. No fundo, a presença daquelas pessoas não era meramente por acaso, e Sofia sabia com quais peças estava jogando. 

Eram dicas. 

Sem elas, o mistério não poderia ser solucionado. As metáforas eram necessárias para que a resposta fosse encontrada.

Ryota refletiu que o conhecimento era relativamente fácil de ser obtido, mas difícil de ser absorvido. Colocar em prática um aprendizado era mais fácil falar do que fazer, mas tendo a teoria consigo, encontrar o caminho para as respostas seria um passo a mais que daria para vencer a provação. 

Respirando fundo, voltou a pensar. Era necessário juntar as peças do quebra-cabeça.

Onde está a origem?

Encontrá-la era a chave, mas desconhecer o que era e o que fazer com ela eram espaços vazios. Para saber, precisaria descobrir. E, para descobrir, era necessário informação. E a origem da informação… 

Ryota segurou o tecido acima do coração, sentindo o coração bater. 

Se eu não encontrar a Origem, vou retornar outra vez. Isso significa que tenho um tempo limite por rodada, e as informações podem ficar mais escassas e até mais difíceis de serem encontradas.

Havia a possibilidade dela sequer ganhar mais chances, e temia que as Entidades perdessem o interesse nela conforme o tempo passasse. 

Um pedaço de Ryota orou para que elas continuassem o jogo. Se não conseguisse vencer a provação, talvez perdesse a chance de receber uma das respostas prometidas pela Sabedoria.

“Quando se falta com o requisitado, os juros pagos sempre serão altos.”

Além disso, se fosse forçada a mais um retorno, o percalço a cada volta poderia ser pior do que o anterior. Quanto mais tempo passasse dentro da provação, mais difícil seria.

Não posso desperdiçar o que aprendi. 

Colocaria em prática a experiência adquirida pelo conhecimento, e encontraria a Origem. 

Quando sua determinação foi realçada e Ryota apressou o passo para dentro do beco, cortando caminho pela cidade que gradualmente escurecia, cruzou caminhos com outra pessoa.

Era uma menina de pele escura com cabelos laranja chamativos, que sorria portando uma faca familiar em uma das mãos.

***

Os lábios de Ryota tremeram nervosamente ao perceber a situação em que se encontrava.

Isso não é nada bom.

Pouco menos de uma hora havia se passado desde sua ida e volta até o centro da cidade de Celestia — bem menos considerando o último retorno, o que apenas comprovou sua teoria de que aquele mundo era uma grande bomba relógio onde todos ao seu redor se voltariam para matá-la em algum momento.

Seus olhos não conseguiam desviar da lâmina que era portada por Bellatrix, parecendo tão destoante de sua aparência geral. Ryota engoliu em seco e sentiu suas mãos ficarem úmidas de suor com o passo que a ruiva deu em sua direção, lentamente encurtando a distância de alguns metros entre elas dentro do beco.

Acalme-se.

Respirou fundo uma vez para conter todo o pavor e choque que ameaçavam deixá-la paralisada. Não poderia permitir que o mesmo se repetisse, muito menos que Bellatrix se tornasse uma assassina. 

A expressão no rosto de Bellatrix era a mesma de sua primeira morte, um sorriso feliz para alguém que pretendia esfaquear outro corpo até a morte. 

Mas após longos segundos tomando fôlego para se acalmar, Ryota relembrou algo bastante óbvio que até então havia se esquecido. 

Diferente da estudante, ela tinha experiências reais em batalha. O que tornou possível para Bellatrix tomar sua vida, bem como todos os outros, foi o recurso do choque emocional e do quão repentino eram seus movimentos. Mas em se tratando de uma luta em um espaço aberto, as vantagens mudaram.

Foi por isso que tentou me pegar desprevenida aqui? Bem inteligente.

Com a consciência retomada, moveu vagarosamente seus dedos, exercitando-os em preparação para o avanço que viria. E tão logo quando ergueu o braço diante do corpo, fintando uma proteção no peito, Bellatrix deu um passo largo e desferiu um corte em seu abdômen.

Ryota inclinou o corpo e desviou bem a tempo, deixando a lâmina passar rapidamente pelo espaço onde anteriormente sua barriga estava, e segurou o antebraço da estudante de imediato. Seus reflexos e movimentos eram infinitamente melhores do que as de Bellatrix, e apesar da força física anormal, Ryota ainda era superior naquele quesito, também.

— Largue a arma.

Ryota ergueu a voz e ordenou com tom firme, seu rosto mudando para uma expressão de seriedade. A ruiva percebeu que sua aparição surpresa falhou e pareceu um pouco desanimada.

— Largue a faca, Bella.

Quando Bellatrix não soltou a faca mesmo tendo o braço segurado, Ryota repetiu sua exigência, mas os dedos continuavam segurando o cabo da arma branca. Um pouco frustrada, a garota fez menção de exigir novamente, mas um punho voou na direção de seu rosto.

A mão livre de Ryota defendeu o soco bem a tempo, firmando o aperto no outro braço quando Bellatrix tentou pegá-la desprevenida com um novo golpe. Apesar de estar impressionada com a insistência, isso fez a garota perceber que dentro daquele estado mental conturbado, suas ordens não teriam qualquer efeito.

Então, Ryota contorceu o braço ao qual recebeu o soco e prendeu Bellatrix contra a parede do beco, um braço às costas enquanto a desarmava com a outra mão, tomando sua faca habilidosamente. A estudante se contorceu para tentar se soltar, mas com o aprendizado recebido no palácio de Hera, Ryota não seria pega de surpresa tão cedo.

— Desista. Não vai conseguir fazer nada contra mim com esses movimentos descuidados.

Para uma novata no ramo do combate como ela, ainda era digno de nota suas tentativas de bater de frente usando pequenas estratégias, mas nada daquilo a faria recuar. Especialmente após tomar a faca e imobilizar seus braços, Bellatrix não tinha escolha a não ser abandonar suas tentativas de matá-la.

A expressão de Ryota suavizou um pouco quando ambas se encararam, e mesmo com a face pressionada na parede, os olhos verdes da amiga tinham um ar estranhamente sombrio.

— Por que está fazendo isso?

Houve apenas uma pequena risada como resposta, e um sorriso tão largo que se assemelhava à uma meia-lua no céu. Era um rosto que vira duas vezes antes, e certamente não remeteram memórias agradáveis.

Diferente da primeira vez, não parecia que Bellatrix queria conversar, muito menos justificar suas ações. Ryota não sabia se era proposital ou não, mas temia que fosse parte da provação tornar a sanidade daquelas pessoas de bom coração em algo tão frio ao ponto de tentarem tomar a vida de outra pessoa sem qualquer remorso.

— A Bellatrix que conheço nunca faria isso.

E, mais uma vez, apenas outra risada veio em resposta, acompanhada de outro movimento que causou uma pequena dor na região da perna quando Bellatrix chutou o joelho de Ryota. Apesar de ter sido uma pequena reação que a fez ligeiramente diminuir o aperto, foi o bastante para a estudante tentar usar toda a sua força para empurrar suas costas contra o peito dela, criando espaço o bastante na parede para que escapasse de suas mãos.

Se fosse qualquer pessoa, Ryota a teria chutado de volta, talvez golpeado seu estômago em retorno para fazê-la cuspir bile. E, mesmo que fosse um conhecido, caso fosse um guardião treinado, ao menos poderia dar-se ao luxo de nocauteá-la com um golpe nada educado e que poderia lhe causar bastante dor no pescoço. 

Mas Bellatrix não era nada disso. Era apenas uma garota da cidade grande cujos conhecimentos se focaram na arte e tinha um coração grande e bondoso demais para matar. Mesmo que seu corpo tenha ganhado uma força maior do que o comum, Ryota não conseguia deixar de pensar que uma manobra como aquela não teria o risco de machucá-la seriamente.

Não haviam curandeiros em Urânia para recuperar ferimentos graves, e se em alguma possibilidade milagrosa a ruiva fosse capaz de recuperar a consciência de suas ações, quão má se sentiria ao perceber o que havia lhe causado?

Era com aquelas preocupações em mente que Ryota relutava em machucar a amiga, segurando suas tentativas fracassadas de chutar e socar com deslocamentos visivelmente amadores. Não queria lançar a faca no chão e correr o risco de deixar Bellatrix tomá-la outra vez, e um braço era o bastante para se defender das investidas.

Ainda assim, aquilo demandou mais tempo que o necessário, e Ryota eventualmente envolveu os braços ao redor do pescoço da estudante, tentando dar o mata-leão mais rápido e indolor possível. Não havia outra escolha senão deixá-la inconsciente.

Mas os dentes de Bellatrix encontraram a pele de seu antebraço em uma reação para sobreviver, aprofundando-se na carne ao ponto de um pouco de sangue surgir do ferimento. Ryota grunhiu com a dor, mas não afrouxou o aperto — na verdade, fez o oposto.

Ouvir o engasgo de Bellatrix foi um dos sons mais horríveis que teve o desprazer de presenciar, e seus olhos lacrimejaram com o aperto no peito. As unhas da estudante arranharam seu braço para escapar, usando suas últimas forças para sobreviver, contorcendo-se como um animal feroz.

E foi com um movimento daqueles que aconteceu.

Ryota não soube dizer o momento exato em que seu antebraço foi golpeado ao ponto de fazê-la se inclinar ainda mais contra o corpo de Bellatrix, nem quando os engasgos com a falta de ar se tornaram o som de afogamento. 

Muito menos quando a lâmina da faca perfurou o pescoço da garota tão bruscamente ao ponto de o sangue lhe manchar a face.

Seu rosto empalideceu de imediato e a voz escapou de sua garganta. O que saiu de seus lábios trêmulos foi um gemido, que lentamente se tornou um choramingo baixo conforme o corpo que segurava parava de relutar, finalmente endurecendo e perdendo as forças em seus braços.

Ryota observou Bellatrix engasgar com o próprio sangue e morrer em seus braços quando o sol no horizonte começou a se pôr.



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