Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 9: Está Tudo Bem

O clima estava quente naquela noite. Apesar da janela estar meio aberta e as cortinas puxadas, temendo que mosquitos pudessem entrar, a jovem curandeira de longos cabelos azuis claros olhou com uma expressão engraçada para a noite afora. Ela não podia ver nada além do que meras sombras e o céu meio aberto que revelava uma lua relativamente brilhante no céu. Não haviam estrelas para serem vistas. Na verdade, nessa época do ano em que o calor prevalescia, Eliza se sentia bastante desconfortável. 

Apesar de sua preferência ao frio estar refletida no jeito com que se portava de forma desconfortável, sentada em sua poltrona com um livro no colo, a garota não podia deixar de adorar aqueles momentos de calmaria.

Isso é, quando uma pessoa aleatória sangrando horrores não entrava de repente em sua ala. 

Eliza praticamente gritou quando viu o estado da outra garota que abria a porta, deixando cair o livro que estava lendo no chão impiedosamente.

— O que aconteceu com você?! Seu olho...! A-Ah! Seu braço!

— Ah, umas paradas aí. Nada demais. — rindo forçadamente, Ryota acompanhou Eliza para dentro da ala médica.

— Não se mexa.

Colocando-a para sentar numa cadeira confortável, a curandeira prontamente sacou todos os medicamentos e ferramentas necessárias para iniciar o tratamento. Começou desamarrando o tapa-olho improvisado que estava encharcado de sangue e analisou o grotesco ferimento com uma careta.

— Me dê um minuto, está bem? Feche o olho direito para evitar qualquer tipo de transtorno na operação.

Ryota a obedeceu. No escuro, ela escutou algo tilintar e, em seguida, alguma coisa ser quebrada, até que uma luz fosca azul começou a aquecer o lado esquerdo de seu rosto. Em silêncio, Eliza começou a cuidar do pior ferimento com uma delicadeza que poderia fazer Ryota chorar. Mas ela não o fez, não quando percebeu que parecia uma completa idiota. Não quando parecia que sua primeira impressão sobre a jovem visitante tinha sido completamente destruída em poucas horas de estadia. 

Engolindo em seco com esse amargo sentimento, a garota completamente machucada, enfim, começou a falar baixinho:

— Desculpa, Eliza. Eu só fico te dando trabalho, né?

— ... Fique um momento em silêncio, por favor.

Foi cortada rapidamente. Ryota, ouvindo isso, riu internamente. Tinha sido uma completa idiota. O que estava pensando quando desafiou Sora daquele jeito? Fazendo as coisas de forma impulsiva, acabou entrando num conflito maior do que esperava com ele, e, estando com a cabeça cheia depois das conversas que tivera noite passada - unidas do peso da maldição -, acabou se deixando levar por sentimentos que normalmente não deixaria subirem à cabeça.

Não era a primeira vez que fazia isso, mas, dessa vez, o calor da emoção acabou trazendo resultados quase que instantâneos à ela. E, provavelmente, bem piores. Afinal, falar coisas para si mesma e prometer imbecilidades enquanto chora no colo de alguém é uma coisa. Mas desafiar alguém e demonstrar falta de respeito era outra. 

Ah, acho que foi uma boa lição pra mim pensar duas vezes antes de sair no soco com qualquer um... Se eu tivesse perdido a cabeça na frente da Mania antes, ou até quando a ver de novo, será que algo parecido teria acontecido comigo? Será que eu... Teria realmente morrido? 

Não precisou pensar muito para chegar àquela conclusão. Deu um sorriso melancólico. Quase que como desejando esse futuro impossível.

— Agora, tente abrir os olhos devagar.

Ouvindo a voz de Eliza, Ryota deixou de lado os próprios pensamentos e tentou realizar o movimento. A pálpebra que deveria estar furada e ensanguentada, tremeu e lentamente se ergueu. E, para sua surpresa, a visão, que antes tinha sido completamente obliterada, lentamente ganhou foco e parecia funcionar perfeitamente. Estava enxergando normalmente de novo. Embora um pouco de sangue ainda sujasse seu rosto, Ryota tocou o lugar onde antes havia um grande buraco, fazendo uma expressão de puro choque.

— ... Quê?

— A-Ainda bem que v-veio aqui assim que se feriu... Eu pude... Tratar do seu fe-ferimento, assim. — Com um sorriso caloroso, o rosto de Eliza ficou vermelho quando os olhos da outra se encheram de lágrimas — A-A-Ah!

— ... Desculpa, Eliza. Desculpa, mesmo. Ah, há, há, eu não devia ficar desse jeito na sua frente... Foi mal. — Correndo para limpar as lágrimas, Ryota desviou o olhar e esfregou as mãos sujas no rosto — Você é realmente incrível no que faz, né? Como esperado de alguém que trabalha para a duquesa...

Não é à toa que a Fuyuki te escolheu como curandeira particular. Além de serem pessoas muito raras de se conhecer e contratar atualmente, ter um poder tão absurdo como esse é… Invejável.

— I-Isso n-não... Ah, bem, talvez s-seja, sim. — Sorrindo nervosamente, Eliza se concentrou no corte feito perto do ombro de Ryota, enrusbecida. — E-Embora não seja algo que eu goste de me gabar, tenho muito orgulho do que faço. 

Ryota fez uma careta de dor quando Eliza provavelmente tocou em um ponto sensível do ferimento, mas logo desfez a expressão tensa para uma pensativa. Havia aí o mesmo sorriso triste que tinha feito alguns instantes antes.

— Deve ser bem legal. Digo, encontrar algo que você realmente se identifique e queira fazer pra sempre, e tal. Algo que faça as pessoas gostarem de você, e te faça útil pra elas, também... 

Ainda sentindo uma certa dormência no rosto, Ryota fechou os olhos. Sentiu uma pontada no peito ao refletir melhor o papel de Eliza ali, como uma garota tão jovem e dedicada, mas talentosa. É claro que sentia inveja, não podia negar - há quanto tempo esteve procurando por isso? Por quanto tempo esteve buscando o seu lugar? Quantas vezes tentou encontrar um motivo pra continuar vivendo que não fosse por sua sigilosa culpa? Buscava saber o que faria dali pra frente, mesmo agora, depois de ter tido seu futuro monótono e pacífico no vilarejo tirado de si.

O que é... Que eu tô fazendo, afinal? Por que eu tô aqui? Por que eu tô fazendo isso? Pra quê?

Era por Jaisen, e pelos outros que se foram, não era? Já não sabia direito. Sua cabeça estava confusa demais para pensar. As palavras que trocou com Jaisen no quarto há algumas horas ainda rodopiavam em sua mente, a fazendo hesitar. Mais uma vez, estava se perguntando o motivo daquilo tudo. O porquê estava ali. Qual o sentido...

— A senhorita está enganada. Não é bem assim. — Interrompendo seus pensamentos, Eliza começou a falar devagar, concentrada no trabalho. O ferimento no braço havia sido fechado e limpo, a pele parecia renovada como nova — Eu não me tornei quem sou porque queria. Não tinha esse trabalho como um sonho, ou aprendi tudo o que sei pelos outros... As coisas aconteceram sozinhas. Eu precisei encarar a minha realidade e mudei aos poucos. Foi algo natural.

— ... Natural? 

Um pequeno sorriso brotou no rosto da curandeira. Ryota se surpreendeu um pouco pela dicção de Eliza ter melhorado de repente.

— Não sei o que está acontecendo com a senhorita no momento, mas imagino que não deva estar sendo fácil. Mas eu admiro muito pessoas como você. 

— Hã?

— Encarar a dor tantas vezes, e ainda assim manter a cabeça erguida e um sorriso no rosto. Perder as pessoas que ama, mas nunca deixar de ajudar os outros por rancores do passado. Mesmo que não tenha mais forças pra continuar andando, mesmo que queira muito abandonar tudo, ainda tem algo que te mantém em pé, e essa pequena força é o que te motiva a seguir em frente. — Após parecer pensar em algo por um bom tempo, Eliza encarou Ryota nos olhos pela primeira vez. — Eu acredito que pessoas assim são as mais fortes e inspiradoras que existem. 

Um riso triste escapou dos lábios de Ryota.

— Parece tudo muito bonito do jeito que você fala.

— "O sofrimento não é algo para ser admirado, mas a persistência, sim". Foi algo que meu mentor disse uma vez, enquanto me ensinava.

Eliza parou para refletir um momento naquelas palavras, como se elas lhe trouxessem boas memórias. Após sorrir calorosamente por alguns instantes, seu rosto enrubesceu completamente e ela balançou as mãos no ar.

— A-Ah! O-O-O que q-quero dizer com isso é... É que está tudo bem. Você não precisa forçar a mudança, porque ela vai vir de dentro pra fora naturalmente. E, quando isso acontecer, você vai encontrar o seu lugar e o que quer fazer, Ryota.

— ... "Está tudo bem", né?

Foram palavras repetidas para ela enquanto chorava de frustração e desespero. Foi envolvida por um abraço gentil, e as lágrimas foram cuidadosamente limpas. Zero aceitou até aquele seu lado mais terrível - o egoísta, que queria ser protegido e elogiado pelas suas ações, mas também que a fazia se odiar quando não fazia nada e nem conseguia fazer nada. 

— Pelo seu sorriso, acho que já sabe por onde começar, não é?

— H-Hã?! — Desta vez, foi Ryota quem enrubesceu — A-Ah, sim... Eu acho. 

Meneando a cabeça como se ficasse feliz por ela, Eliza se ergueu , guardou suas ferramentas de trabalho e limpou bem as mãos com água e um produto desconhecido. Ryota baixou os olhos e percebeu que os cortes e arranhões sumiram. O ferimento próximo ao ombro havia deixado uma pequena marca ainda, mas parecia que iria sumir dali algum tempo. 

— Muito obrigada, Eliza.

— N-Não foi nada.

Arqueando as sobrancelhas para o jeito tímido dela, que havia voltado após a conversa, Ryota se colocou de pé e quase caiu de joelhos. Essa ação foi o suficiente para a curandeira correr até ela, pronta para segurá-la antes que realmente caísse. Estava exausta demais até para andar. Suas pernas doíam, e notou que precisaria de um bom banho depois de toda aquela correria.

— V-V-Você está bem?! Precisa de á-água? Q-Quer se s-sentar?!

Ryota riu da preocupação dela.

— Eu estou bem, Eliza. Acho... Que só um pouco cansada. Mas não consigo relaxar o bastante para descansar.

Percebendo que a voz da garota de cabelos negros soava arrastada, Eliza a olhou com preocupação, mas nada disse. Após Ryota se colocar de pé, com a certeza de que poderia andar sozinha até o quarto, ela olhou então para a curandeira que tinha dado alguns passos para trás, ainda mantendo as íris amarelas como ouro nela. Percebeu, então, na poltrona perto da janela e no livro caído de forma dolorosa no chão. Isso a fez considerar algo, mas ela logo deixou a ideia de lado.

Ryota passou os olhos para Eliza, que tinha ido até a sua bancada particular de repente para anotar algo em seu bloco de notas. Vendo isso, a garota, sentindo que poderia incomodar se permanecesse mais tempo ali, foi até a porta.

Então, parou ao segurar a maçaneta.

— Ei, Eliza. 

— ... Sim? — ela se virou ao ser chamada.

— O que acha de tomarmos um café juntas uma hora dessas? Eu… Quero muito conversar com você de novo. Talvez... Possamos falar sobre livros?

Eliza virou o rosto o suficiente para que Ryota soubesse que ela estava prestando atenção. E, então, deu um doce sorriso.

— É claro.

Ryota devolveu o sorriso com outro. Mas, dessa vez, com um pequeno e genuíno.

Naturalmente, né…?

Eliza estava certa. Não precisava fazer as coisas com pressa. Tinha que pensar com calma no que queria fazer dali pra frente, e decidir o que era mais importante. Principalmente depois do que havia descoberto e feito naquela noite.

Está tudo bem. Eu vou fazer isso do meu jeito, e no meu tempo.

Só esperava que o tempo desse tempo ao seu tempo.



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