Volume 2 – Arco 2
Capítulo 15: Orgulho
Um forte clarão a cegou por um momento antes que pudesse, lentamente, voltar a abrir os olhos. Com a cabeça doendo depois de ter olhado diretamente para uma luz tão forte, Eliza lentamente começou a recobrar a consciência. Ao finalmente levantar as pálpebras, ela piscou uma, duas vezes antes de tentar entender o que via.
— … M-Mas o quê…?
O que Eliza viu era um espaço completamente branco. Por onde seus olhos passavam havia um território infinito. Não havia diferença entre o céu e o chão. Era como um quadro prestes a ser pintado. Quando se colocou de pé, quase sentiu tontura ao perceber que, de fato, não havia distinção de espaço, ali. Se olhasse para baixo, poderia ter a impressão de que estava caindo, embora estivesse perfeitamente estável no "solo".
— Isso é coisa daquela névoa?
Assim refletiu, com a voz e passos ecoando lentamente. A sensação era de estar em um grande salão, mas que não havia fim. A curandeira ainda se lembrava perfeitamente de ter sido surpreendida por uma onda de névoa que a levou para longe de Kanami. Havia perdido a consciência pelo impacto repentino, mas não houve dor.
Olhando seu corpo, não havia qualquer ferimento ou alteração visível. Naquele espaço, não tinha sombra. O cajado, antes conjurado, havia voltado a ser somente uma pulseira prateada comum em seu pulso.
— … Talvez uma espécie de ilusão?
Pelos relatos de Zero, o guardião não tinha experimentado uma alteração tão absurda na realidade a ponto de ser deslocado de lugar. Ou ter a sensação, imaginou.
Eliza fechou os olhos e os abriu de novo. Então, se beliscou. Não era um sonho, e, se fosse, não era um tão comum.
— E, pelo visto, não consigo concentrar chi e usar meus kiais aqui. A Lótus também não consegue se transformar.
“Lótus” era o nome de seu cajado, e, ao falar sobre ele, Eliza olhou novamente para o pulso. Então, estreitou os olhos.
— Pelo jeito Castor, Pollux e Alhena serão inúteis contra isto. Espero que Sora e Kanami fiquem bem… — Eliza pensou nas armas dos gêmeos, sendo, respectivamente, as duas facas kukri de Sora e a katana de Kanami — Zero está na mansão, então poderá auxiliar a senhorita Fuyuki, mas…
Ryota não era alguém que pudesse confiar plenamente tendo tão poucas capacidades. No entanto, ela não conseguia pensar mal da garota, já que havia sido sempre muito simpática. A imagem dela lhe veio à mente, e Eliza apenas sorriu.
— … Eles vão se virar sem mim. Espero. Por enquanto, preciso dar um jeito de sair daqui.
Suspirando, Eliza assim concluiu seu raciocínio. Foi dessa forma que olhou para os lados e se surpreendeu com as cores rosa e azul que começaram a preencher os seus arredores. Eram tons suaves que revelavam e traziam certa tranquilidade, como nuvens coloridas quase dispersas no ar.
Em reflexo às sensações de leveza e harmonia que sentia, ela respirou lenta e profundamente.
— Hmm. Seus sentimentos parecem estar aflorando bem, Liza.
Eliza, ao ouvir uma voz conhecida, mas que há tempos não escutava, resfolegou alto e se virou lentamente. Lágrimas brotaram em seus olhos quando a silhueta começou a se revelar naquele cenário. A figura, mesmo sendo humana, tinha cores fracas e tremia um pouco. Era uma memória. Uma memória desenhada pela sua mente que ganhou forma.
Por ser uma pessoa querida, haviam traços claros e quentes em seu - se é que poderia dizer assim - design. A aura ao redor dela era de um azul claro… A cor favorita dela.
Mas o que mais fez seu coração apertar foi o tom pelo qual seu apelido foi chamado.
— Mana Iara…
— Hmm — concordou com a cabeça a mulher chamada Iara. Ou melhor, a pessoa de quem Eliza lembrava que ela era. — Você cresceu muuuito, Liza. Está cada vez mais parecida com a mamãe.
Os cabelos azuis escuros e ondulados dela caíram para o lado quando inclinou a cabeça, fazendo um comentário. Um sorriso suave foi desenhado em sua face. Eliza não podia ver seus olhos, mas não importava. Sentiu seus pés começarem a andar sozinhos em direção à ela.
Percebendo sua intenção, Iara ergueu a palma da mão e a fez parar com o movimento.
— Não acho que seja uma boa ideia… Hmm.
Até mesmo o jeitinho de erguer os ombros e soltar o grunhido agudo para pensar em voz alta era idêntico.
— Ora, Liza, não me olhe desse jeitinho. Não vou conseguir me conter em puxar suas bochechas… — riu ela, mas logo recompôs a postura. — No entanto, você já não é mais uma criança há muito tempo, não é?
Havia melancolia na voz de Iara, que relembrava em voz alta um passado não muito distante.
— E-Eu…
— Hmm?
As lágrimas escorriam rapidamente pelo pequeno rosto de Eliza, que as enxugava com as mãos já molhadas.
— … S-Sempre… Quis te reencontrar… Mana Iara. P-Por quê… N-Nos deixou...?
Iara fez uma expressão de dor para a irmã mais nova, que tremia como uma criança solitária. Eliza expirou profundamente, tentando suportar a dor no peito.
— … V-Você odiava… A gente? O-Odiava que f-fôssemos… Tão pobres? Que… Nós dependíamos de você?
Silêncio. Iara não respondeu. Os soluços de Eliza foram diminuindo conforme ela pensava em todas as coisas que queria ter perguntado para a irmã mais velha. Que queria ter ouvido dela quando mais nova.
Ainda se lembrava perfeitamente bem da pequena e pobre casinha em que cresceram juntas. Ela, a caçula; Iara, a mais velha e que mais auxiliava a manter as despesas da família; e os pais, que trabalhavam como podiam no pesado para sobreviverem.
Era difícil, embora Eliza não se lembrasse muito bem da época por ser muito nova. Mas pequenos detalhes ainda ficavam em sua mente, como as goteiras que precisavam improvisar para lidar durante as chuvas, a divisão de refeições, o quão difícil era pela falta de eletricidade… E por estarem vivendo em um vilarejo abandonado após ser saqueado anos atrás durante uma guerra civil. As coisas eram complicadas, e teriam morrido de fome se não fosse por Iara.
A irmã mais velha que Eliza tanto admirava era uma guardiã que trabalhava para alguém da cidade grande. Ela viajava e passava dias fora, voltando somente algumas vezes ao ano para visitá-los e trazia dinheiro para sustentar a família.
“Não precisa nos dar tanto, Iara. Sabemos bem que não deve ser fácil para você também.”
“Hmm, está tudo bem. Vocês cuidaram e fizeram tanto por mim, então o mínimo que eu deveria fazer é retribuir tudo isso. E tem a Liza também, que está crescendo e quero ser um bom exemplo pra ela. Quero que ela possa estudar e garantir um bom futuro.”
Assim foi uma das conversas - que se repetiam ao menos uma vez ao ano, quando se viam - entre os pais e Iara. Ela sempre sacudia a cabeça com um sorriso gentil no rosto e pegava a irmãzinha de somente três anos no colo para fazer cócegas.
As coisas se desenrolaram dessa forma durante sete anos. Eliza ainda se lembrava do dia em que viu sua irmã partir e nunca mais voltar.
Os lábios da mais nova se contraíram.
— … Me perdoa. A-Acho que acabei falando umas coisas que não devia…
Após fungar mais uma vez e limpar o rosto, Eliza olhou fixamente para a figura à sua frente e levou uma das mãos ao peito.
— … Mana Iara, eu te amo.
E assim ela declarou uma das coisas que mais queria ter dito à ela naquela época. Um sentimento guardado dentro de si que pesava tanto quanto a culpa por nunca ter feito nada para evitar seu desaparecimento, e doía tanto quanto a saudade de tê-la em seus braços.
Algo dentro dela dizia que precisava falar. Sentia que, antes de fazer qualquer pergunta que não poderia ser respondida por uma imagem, deveria dizer tudo aquilo que estava em seu coração.
Havia pouco tempo, agora.
A figura se manteve em silêncio. Então, com as mãos trêmulas e um sorriso fraco no rosto, Eliza continuou:
— Eu sempre quis te falar isso. E também… Eu sempre te admirei muito, e agora estou indo no mesmo caminho que você. Nossos pais… Mesmo meio sozinhos, estão muuito orgulhosos de nós duas!
Eliza elevou a voz e declarou, fungando de novo.
— … Eu me tornei uma guardiã como você! Alguém que as pessoas possam contar… Fiquei mais forte… P-Pra poder ficar ao seu lado.
Mais lágrimas começaram a brotar em seus olhos, e ela lutava contra elas enquanto falava. Sua voz se distorceu um pouco ao final da frase.
— E… E… Eu vou me tornar alguém que possa te dar orgulho também, mana Iara. E quando esse dia chegar, quando eu for capaz de… De cuidar da nossa família… De cumprir o seu desejo… Vou te trazer de volta! Vou garantir um bom futuro para nós duas! Por isso, até lá… Fica me esperando!
Os arredores se deformavam. As cores derretiam no espaço em branco, e pouco a pouco o lugar se transformou. Eliza, já chorando novamente, esperou uma reação da figura de Iara após dar um grito final. Então a viu dar um sorriso largo antes de abrir os braços.
Só teve tempo de tentar correr em sua direção antes que outro clarão as tomasse por completo e tudo desaparecesse.
***
Quando Eliza acordou, sentada debaixo de uma árvore, envolta em névoa, ela grunhiu alto. Então direcionou seu olhar para as manchas escuras que cobriam parte de seu corpo. A dor de ser queimada viva era terrível, e nem mesmo ela enquanto conjurava Lótus para realizar uma cura instantânea conseguiu suportá-la.
Grossas gotas de suor escorriam pela sua testa. Mesmo naquele ambiente frio, estava se sentindo absurdamente quente. Havia uma fonte de calor tão absurda que até mesmo havia queimado a sua pele. Era quase como uma febre interna.
Seria um dos efeitos da névoa? Ou talvez uma habilidade capaz de causar danos internos a uma pessoa inconsciente?
— Ugh. O quê…?
Quando piscou, outra dor a fez parar. Ao tocar com a mão livre, percebeu as linhas de cortes feitas pelas suas próprias unhas em seu rosto e parte do pescoço.
— … O Zero disse algo sobre… As vítimas enlouquecerem de dor e causarem danos a si mesmas…
Eliza se lembrou, também, dos ferimentos que o homem chamado Jaisen teve. Embora tivessem sido mais profundos e houveram efeitos até mesmo em seu círculo de chi, os cortes eram semelhantes.
A curandeira deu um riso seco depois de se colocar de pé com os ferimentos desaparecendo. Um flash do que havia sonhado surgiu em sua mente, e uma lágrima escorreu. Não sabia o motivo de ter se encontrado com Iara - ou melhor, com a versão dela de quatro anos atrás que ainda se lembrava - e ter tido aquele diálogo repentino.
No entanto, foi por pura sorte que conseguiu escapar daquilo.
Ativar um selo em seu corpo físico, estando inconsciente, era extremamente difícil. Ainda mais em um estado onde não era capaz de usar chi naquele espaço de seu subconsciente. Porém, foi necessário para se forçar a acordar. Olhando para baixo, um símbolo pequeno piscava perto do seu peito esquerdo, próximo ao coração.
Causar uma interferência assim podia ter me matado na hora… Mas deu certo. Ainda bem.
A imagem de Iara sorrindo lhe veio à mente e seus olhos âmbar cintilaram. Foi por pouco tempo, e provavelmente havia dito todas aquelas coisas à uma pessoa inexistente, mas a conversa no mundo dos sonhos a deixou um pouco mais leve.
Obrigada, mana Iara. Obrigada por ter me ajudado e confiado em mim até o final… Não importa onde esteja. Eu já não tenho mais medo de ficar sozinha. Eu me orgulho de quem sou hoje.
Após pensar, bateu a base do cajado contra o solo.
— Yang. Yin.
Uma faísca brilhou no cristal e saltitou de onde estava, criando uma onda de chi que percoreu toda a floresta. O brilho azul de Lótus fez com que todos os símbolos do brasão Minami reagissem ao mesmo tempo. E isso incluía, também, aqueles gravados nas armas dos seus portadores - dos guardiões dentro da barreira.
— Com isso, eles devem saber que está tudo bem… Não adianta se esconder.
Assim que a curandeira declarou em voz alta, um farfalhar de folhas ao longe pôde ser ouvido. E, tão rápida quanto o piscar dos símbolos nas árvores, Eliza surgiu na frente da silhueta que se deslocava a passos lentos na escuridão da floresta.
— Sinto muito, mas enquanto estiver dentro desta barreira, não poderá escapar de mim — disse Eliza com uma entonação forte, e apontou o cristal na direção da figura escondida.
Houve um pequeno intervalo de tempo até que Eliza piscasse e percebesse que a sombra se distorceu, se misturando ao cenário. O som de seu escudo feito de chi, com desenhos de selos, se chocando com algo atrás de si soou, e ela se virou rapidamente. O selo girava e piscava quando a curandeira encarou os olhos escuros da pessoa coberta por sombras que recém tentou atacá-la.
Ao perceber, Eliza resfolegou e deu um passo para trás. Uma pessoa coberta… Por sombras?
— Q-Quem é você?! Revele-se!
Uma pessoa capaz de usar chi de sombra… Capaz de usar um yin tão puro assim não deveria existir! Não… Além daquela outra coisa...
Um suspiro fraco chegou aos ouvidos dela.
O jovem que se revelou era tão sombrio quanto o poder que conjurava. Olhos negros profundos a encararam de volta. Seus cabelos pretos, amarrados em um pequeno rabo-de-cavalo, batiam nos ombros. A gola alta cobria parte da sua boca, como se tentasse ocultar sua pele clara. Lembrava o tom de Fuyuki - no entanto, o rapaz parecia quase doente pela expressão e corpo tão magro.
Mas, o que mais a surpreendeu, foi o quão novo ele parecia. Devia ter por volta de quinze anos no máximo - apenas um a mais que ela.
— … Satisfeita? — murmurou ele com a voz arrastada, erguendo as mãos enluvadas com os dedos à mostra.
— Então é você o responsável por trazer todos os outros para cá, não é? Com um kiai de teleporte de sombras seria fácil passar pela barreira sem fazer alarde, mas parece que seus colegas não estavam com vontade de serem discretos.
Assim adivinhou Eliza, e o garoto apenas se manteve em silêncio com as mãos preguiçosamente erguidas. Por um bom tempo, ela manteve contato visual com ele, analisando seu rosto…
… Hein? Por que eu… Tô achando esse rosto dele tão bonito?! Se acalma, Eliza! Seria terrível para a história se a heroína se apaixonasse pelo vilão, não é? Não é só porque um cara bonito aparece que você tem que se apaixonar à primeira vista!
Mas, mesmo tentando manter a expressão séria por fora, os pensamentos completamente histéricos e paranóicos dela continuavam a saltar de um lado para o outro, admirando a aparência dele. Embora os gêmeos Akai tivessem um jeito introvertido semelhante, talvez o fato do garoto à frente ser tão… Tranquilo a atraísse. Havia algo no jeito que seus olhos lentamente piscavam - com seus longos cílios - que fazia seu coração bater mais rápido.
NÃO! NÃO! NÃO! Não é hora de sonhar acordada, Eliza!
— … Já cumpri com meu papel. — Ela se arrepiou quando a voz surgiu tão perto de seu ouvido, por trás, num sussurro. — Portanto…
As íris âmbar dela fitaram as negras dele.
— … Estou livre.
Livre?! Livre para quê? Solteiro?! Não, não, não, não, nããããã-
— O que quer dizer? — Ignorando os gritos em sua mente, assim perguntou ela de volta.
No entanto, ele apenas piscou lentamente uma vez antes de virar o rosto. E praticamente desapareceu dando um passo para trás na grande sombra que o engoliu.
Após aguardar um instante em silêncio, a curandeira suspirou.
O chi dele não é detectado pela barreira quando ele se locomove assim… Mas parece que ele realmente foi embora.
— … E meu coração ainda está disparado. Droga…
Eliza se lamentou pela situação nada prevista enquanto torcia o rosto de vergonha, puxando as próprias bochechas.