Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 13: Brincadeira

— Você tem cinco segundos para largar essa criatura e se afastar.

— Ugh…!

A lâmina ainda estava profundamente cravada no antebraço dela, e sangrava. Deuses, como sangrava. O líquido vermelho escorria até seu cotovelo e pingava no chão. Sora segurava o cabo com força.

— Sora, você… Ia mesmo matar um filhote desses?

Mesmo com a dor insuportável e o suor que escorria por sua testa, ela ainda olhava o guardião de volta com intensidade. Sentia as garras do pequeno gatinho se prenderem na sua blusa e seu corpo tremer. Pequenos miados puderam ser ouvidos.

— Se for o corpo original do responsável pela névoa, sim.

Ryota arregalou os olhos, e berrou com indignação:

— Você é imbecil?! Não tá vendo que é só um animal normal, seu idiota?! 

— Não importa. — A faca virou um pouco, e Ryota grunhiu de dor. — Largue-o. Agora.

Vendo a expressão amarga dela e o jeito de falar, podia dizer que era mesmo Ryota. Não podia ser uma ilusão, a menos que a coisa repentinamente tivesse começado a criar coisas táteis e reproduzisse fielmente outras pessoas, o que era improvável. Diante disso, o fato do gato ser só um filhote qualquer também era válido.

Porém, a coisa havia falado algo sobre mímica um tempo antes de desaparecer. Havia a possibilidade dela ter se transformado em algo. Sora se lembrava dos grandes olhos azuis o vigiando… E tanto Ryota quanto o gatinho tinham um tom semelhante na íris.

O que fazia até ela mesma ser bastante suspeita.

Abafando outro grito de dor, a garota acabou apertando ainda mais o pequeno filhote contra o corpo, que choramingou. 

— Foi mal aí, pequeno. Aguenta aí que eu vou te salvar de novo, tá legal?

Num sorriso amarelo e entrecortado por arfos, Ryota continuou a suportar a pressão da lâmina. Depois de vê-lo de perto, pôde ter certeza. Era o mesmo gato que havia ajudado no vilarejo há alguns dias atrás. O tamanho, tom de miado e as cores de seu pêlo branco - agora meio sujo de terra e sangue - denunciavam isso.

Não tinha ideia de como ele tinha ido parar ali, mas não era algo importante. Animais aparecendo de repente era algo bastante comum em Aurora, então não havia motivos para ser diferente ali. Com isso em mente, e sentindo a criaturinha fraca e indefesa nos braços, decidiu que o protegeria.

Ainda mais considerando que a névoa talvez estivesse influenciando a visão de Sora sobre as coisas. Ele poderia facilmente estar pressupondo que um simples filhote fosse uma besta. Se isso fosse verdade, faria de tudo ao seu alcance para fazê-lo acordar.

— Solta.

Não.

As íris de Sora pareceram brilhar por um momento, queimando de raiva. E Ryota correspondeu a esses sentimentos enquanto tentava se pôr de pé. 

O guardião estalou a língua e deu um mortal para trás quando a grande garra rasgou em linha reta onde estava segundos antes. A garota se jogou para trás, abraçando o próprio corpo. Em seguida, uma risada ecoou novamente pela floresta.

— Hihihihihihi.

— … Hã? Que isso?

O guardião estreitou os olhos.

— Brincar de mímica é tããão divertido… Será que vão conseguir descobrir quem eu sou?

— … Mímica? 

A voz riu da dúvida dela. 

Será que é como o Sora diz? Será que ele realmente… Não. Essa coisa deve estar só brincando com a gente e se transformou em algo diferente. Mas o quê?

Com o braço direito inutilizável e sentindo uma dor quase alucinante, Ryota se colocou de pé e afagou o gato preso na roupa. Então, percebendo que o pequeno não tentava fugir, fechou a jaqueta e garantiu que ele não iria cair enquanto se movimentava.

Ok, agora eu preciso sair daqui o mais rápido possível. Mas com essa névoa toda…

A floresta parecia sombria e assustadora agora que o sol mal podia alcançá-los. Ryota piscou, tentando se concentrar em uma saída, mas podia jurar que estava vendo dobrado. Sua cabeça parecia leve demais, mas se esforçou para se concentrar. Não podia desmaiar agora.

Com o braço direito esticado e sangrando, ela saltou para longe e desviou de outra garra, que vinha a toda velocidade e cortou, por sorte, só as pontas de seu cabelo. Estava mais rápida. Foi quando uma ventania quase a derrubou para a frente, e, ao olhar para trás, percebeu uma enorme onda de névoa indo em sua direção.

Com bastante dificuldade, saltou e agarrou um galho com a mão esquerda, subindo um pouco na árvore e se salvando por pouco de ser levada para longe. Estava arfando muito. Mal conseguia respirar direito. Ela tossiu um pouco.

Do outro lado, agachado numa árvore, Sora virou sua faca kukri e analisou o sangue na lâmina.

Se o filhote fosse mesmo o corpo original, por que continuaria a atacá-la, sabendo que seria atingido pelos próprios golpes? Ou será que ele não pode ser atingido, e por isso continua atacando? 

Ele estreitou os olhos, pensativo, para a garota exausta na árvore. Dava pra ver que Ryota estava seriamente ferida. Sora praguejou baixinho a situação em que estavam antes de saltar para outra árvore.

Ouviu o som de algo girando. Então, o brilho da lâmina azulada reluziu na direção dela, e Ryota prendeu a respiração. 

— Nhaaaaaaa!

O filhote chorou após ser arranhado no rosto, e um pouco de sangue começou a manchar seus pêlos.

— Há… Relaxa. Tá tudo bem.

Também com um corte horizontal, mas no pescoço, Ryota tinha encolhido onde estava e desviou por pouco do ataque da faca giratória. Sora podia ter decapitado o animal com aquilo. 

Ele sangra normalmente também. Será que é realmente só um gato normal? Não faz sentido nenhum… Então o que era aquela presença que sentimos, capaz de desequilibrar a barreira…? E o que é essa voz…?

Sora analisou a situação rapidamente após um teste, mas não conseguiu chegar a lugar algum. Não pretendia matar o filhote, e sabia que Ryota iria protegê-lo, então foi apenas uma forma de tentar descobrir outra informação útil. Mas de nada adiantou. Novamente, estalou a língua, levando os dedos a segurar o próprio queixo.

Ryota puxou pelo cabo a faca kukri afundada na madeira da árvore ao lado e soltou-a imediatamente quando ela tremeu. Magicamente, a arma rodopiou no ar e voltou até o guardião, que a pegou sem dificuldades pelo cabo. Reparando que ele havia parado para refletir algo, ela suspirou pesadamente.

— Ele tá tentando resolver essa situação… E eu só tô atrapalhando?

Respondendo com um lambido em seu rosto, o filhote se voltou para ela com seus grandes olhos azuis. Foi um ato carinhoso que a fez sorrir. Ele parecia tão inocente ali, mesmo machucado.

— Por favor, me diz que você não é o causador disso tudo.

Não obteve uma resposta, obviamente. Ryota riu com o nariz. Embora quisesse protegê-lo, havia certa racionalidade nos atos nada pacíficos de Sora, e, do ponto de vista dele, ela só estava em seu caminho. No entanto, mesmo não tendo certeza de que a criatura em seu colo era mesmo só o que demonstrava ser, algo dentro de si dizia que precisava protegê-lo. Matá-lo não era certo.

— Precisamos descobrir a resposta pra esse joguinho imbecil… Ah. Talvez…

Com uma ideia um tanto estúpida em mente, um sorriso bobo brotou em seu rosto e seu corpo escorregou da árvore indo em direção ao chão.

***

— … Hã?

Deixando escapar um grunhido de confusão, Sora estreitou os olhos para a cena estranha à sua frente: A garota de cabelos negros caiu de lado em direção ao solo.

Ela desmaiou? Não, parece que ainda está consciente… O que pretende fazer?

— Hihihihihihihi.

A risadinha ecoou novamente pela floresta, como que zombando da atitude imbecil dela. Quase que instantaneamente, uma mão enorme de névoa se formou e engoliu completamente o corpo da garota, batendo contra o solo. O impacto fez com que pequenas ondas de névoa se espalhassem para longe.

Até que um corpo surgiu rolando um pouco mais para ao lado, numa cambalhota. Sangue respingou quando Ryota se ergueu com certa dificuldade e correu para longe.

Ela desviou?!

Sacudindo a cabeça, Sora saltou pelos os galhos atrás da garota que fugia e desviava constantemente das investidas da névoa para derrubá-la. Garras ferozes voavam de um lado para o outro.

Curiosamente, o guardião, após o ato dela de há pouco, não se tornou mais o alvo da coisa. Uma vez que a garota se lançou ao chão e se colocou em território inimigo, ele pareceu decidir derrotá-la primeiro já que possuía vantagem. Mesmo bastante ferida e cansada, Ryota ainda conseguia dar um jeito na corrida, mas não parecia estar indo a nenhum lugar em específico. Era como se só estivesse fugindo.

Suor escorria pelo seu rosto. Seus ouvidos zumbiam. O frio ali embaixo era intenso a ponto de ser difícil respirar. O ferimento em seu braço direito já não doía tanto - talvez por conta da temperatura -, mas o sangramento não parou. Quase não sentia seus dedos. Ou melhor, mal conseguia sentir direito o próprio corpo. Mesmo sua visão estava levemente embaçada, precisava piscar com frequência para se manter acordada e não correr o risco de tropeçar no caminho.

— Hihihihihihi… Legal! Pega-pega! Aháháháhá! Se prepareeeeeem!

O que veio a seguir foi quase um espetáculo. Inúmeras mãos - menores, porém, mais sólidas e rápidas - surgiram da névoa e voaram na direção da garota. Ela, fazendo o máximo de esforço que podia, saltou e se jogou no chão antes de se erguer rapidamente de novo, desviando delas. 

No ar, a risadinha ficava cada vez mais alta e frequente conforme o tempo passava. Parecia se divertir com a cena.

Seria possível que ela tivesse descoberto algo? Sora não sabia dizer. Do ponto de vista dele, foi praticamente uma aposta valendo a própria vida. Pelas expressões amargas de Ryota, dava pra ver que estava sendo alvo, também, dos efeitos da névoa. No entanto, de alguma forma, estava dando um jeito de se concentrar somente nos ataques que buscavam derrubá-la.

Num grunhido irritado, o guardião juntou as sobrancelhas.

— Parece que não tenho outra escolha.

Assim que suas íris ganharam o brilho afiado novamente, o assassino voou em direção ao solo.

***

A teoria dela estava certa. Se fizesse aquilo que a voz queria, muito provavelmente a névoa viria ferozmente atrás da pessoa que mais estivesse ao seu alcance. Sendo assim, era provável que o corpo físico da coisa se mostrasse. Ou, ao menos, a mímica feita por ela fosse desfeita, uma vez que a “brincadeira” havia mudado.

O filhote continuava firmemente agarrado ao seu colo.

Seria possível lidar com aqueles ataques, ao menos por enquanto. Ou foi o que ela achou, pois, logo à frente, uma onda de névoa se formava para engoli-la completamente. E, logo atrás desta névoa… Havia um par de olhos redondos e azuis.

— Achei você… Seu puto! Pára de se esconder… E vem logo tentar me pegar, ô covarde...!

Era difícil gritar enquanto corria, mas a provocação aparentemente funcionou. Os olhos da coisa se estreitaram, e a voz rugiu. O tom pareceu mudar de repente para algo monstruoso. Como um verdadeiro animal feroz.

A parede branca que estava prestes a cair sob ela se abriu no meio e dissipou com o corte. Ryota bufou com um meio sorriso a tempo de ver Sora saltar para o lado e avançar na direção dos olhos.

Só mais um pouquinho… Só…

Ela resfolegou, e interrompeu os passos. Um arrepio a percorreu, e Ryota olhou para o lado quando o som se repetiu. Era um tilintar familiar que lhe trazia um misto de sentimentos. Um deles era, sem dúvidas, o medo. O medo da morte.

O som de correntes. O barulho de serpentes de aço que espreitavam na mata a paralisou. Expirou o ar trêmulo entredentes. E sentiu tudo tremer quando uma mão apertou seu ombro, e a sacudiu.

— Acorda! É uma ilusão dele! Não caia tão fácil nisso!

Sora, com uma expressão confiante, assim a fez acordar para a realidade. Ainda podia ouvi-la. As correntes sendo arrastadas era um som perturbador. Ela hesitou por um momento, mas parou de tremer após inspirar fundo. Então assentiu.

Mas foi rápido demais. O espaço onde estavam foi completamente rasgado, desde o chão até o alto das árvores, e uma cratera linear se formou quando uma gigantesca boca, com enormes presas de névoa, surgiu.

— … Ah.

O que acordou Sora após ser empurrado por alguém, evitando que fosse atingido, foi o alto miado do filhote ao seu lado, que pareceu ter ferido a pata após voar de onde estava. 

Quando ouviu o estrondo, seus olhos se voltaram para a direita, e foi quando viu a enorme destruição causada. Pedaços de madeira voaram. Sangue se espalhou. Um pouco de poeira se ergueu, o que tornava meio difícil de enxergar a cena, mas Sora sabia que dezenas de árvores foram estraçalhadas.

Ele olhou para o gato ao lado. Estava fraco, quase inconsciente depois do impacto. Poderia matá-lo agora mesmo e ter certeza absoluta. Poderia, finalmente, garantir que o animal não era o responsável por tudo aquilo. Ergueu a faca kukri com uma das mãos… E subitamente correu até onde as afiadas presas invisíveis estavam tentando perfurar completamente o corpo de uma Ryota ensanguentada e ferida da cabeça aos pés.

— Aguenta aí, cabeça de vento! — gritou Sora quando começou a empurrar a boca sólida para trás, com certa dificuldade. — Não desmaia agora… Ryota!

Porque se ela ficasse inconsciente, não teria força o suficiente para salvá-la.



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