Volume 1
Capítulo 74: As Runas de Ronan (4)
Acompanhados pelas vizinhas de bancada, Ronan e Dario ocupavam uma das longas mesas do refeitório. Anna havia sugerido em sala para Ronan os ensinar criação de runas, mas ele se mostrou inseguro quanto ao seu talento, mas foi durante o almoço que Anna teve uma ideia.
— Deveríamos fazer uma votação — ela sugeriu erguendo o indicador.
— Nada mais justo. — Nathalia deu de ombros. — Afinal, Ronan, você nos deve uma.
Dario apenas assentiu e permaneceu calado, comendo as batatas em seu prato.
— Eu sei disso, mas será que consigo mesmo ajudá-los?
— Duvido que seja pior que o professor, ou melhor, o ex-professor Ronaldo — Dario respondeu ao perfurar uma das batatas com a faca.
— Concordo com o Zeppeli, por mais que isso me doa — Nathalia confessou após um demorado suspiro.
Ronan sentiu-se encurralado na parede, sob os olhares dos arqueiros prestes a dispararem suas setas. Não tinha como escapar do cerco que se fechava. Com uma bufada derrotada, concordou:
— Está bem, mas alguém precisa pedir permissão para usarmos a oficina.
— Eu voto em você Ronan — Anna o acusou categoricamente, seguido da amiga.
— Eu também.
Ronan encarou Dario com um olhar esperançoso, os talheres dele repousavam no prato vazio, sujo por restos de comida. O voto dele poderia poupá-lo de uma tediosa viagem até o bloco administrativo. Tentou decifrar as pretensões no olhar dele, mas o amigo permaneceu impassível até se manifestar.
— Não tem jeito. A aula começa em quinze minutos e se eu não votar em você, é bem capaz que nos atrasemos se essa discussão se alongar.
Juntos os três levantaram da mesa como se tivessem planejado. Cada um recolheu seu prato e foram devolvê-los na cozinha do refeitório, deixando Ronan para trás, sozinho, encarando as batatas assadas em seu prato.
Decido a não ficar para trás, ele devorou o resto da comida em fartas garfadas e vorazes mastigadas. Assim que terminou, largou o prato vazio na mesa e disparou num trote acelerado, torcendo para dar tempo.
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Seu conhecimento sobre o bloco administrativo era limitado, Ronan viera ali pouquíssimas vezes. Não sabia em que sala ir para pedir autorização de uso da oficina fora do horário de aula. Para seu alivio, logo na entrada havia um recepcionista pronto para ajudá-lo.
O funcionário o encarou com se já soubesse que ele precisava de orientação. O rapaz se assemelhava muito a Ronan, compartilhava a mesma cor negra dos olhos, cabelo e até o corte um tanto arrepiado, porém divergiam em alguns quesitos: o funcionário era menor por alguns centímetros e não demonstrava a mesma constituição avantajada do estudante, que se aproximou e requisitou sua ajuda:
— Com licença — Ronan começou apoiando seus cotovelos na bancada curva como um arco. — Onde devo ir para reservar uma sala da oficina ou campo de treinamento? — Relembrou que os amigos decidiram ajudá-lo em sua manipulação antes de ele ensiná-los criação de runas, por isso necessitava também da outra reserva.
— Na Secretaria Universitária, fica no corredor da esquerda, primeira sala à direta.
— Muito obrigado.
Ronan seguiu as instruções do rapaz e percorreu o corredor que se alongava até o final do prédio. As inúmeras janelas à sua esquerda revelaram o exterior onde os alunos voltavam para as salas de aula, prontos para o inicio do segundo período.
Ele voltou sua atenção para o interior, leu a placa indicativa fixada na parede à sua direita e descobriu que a secretaria ficava na segunda porta à direita, e não na primeira, como lhe foi instruído.
Rilhando os dentes, amaldiçoou o rapaz do atendimento.
— Ronan! — chamou uma voz vinda do fundo do corredor.
— Professor Ronaldo? — perguntou baixinho ao avistá-lo.
— Sou eu mesmo, mas não significa que voltei, vim apenas pegar as minhas coisas. — O rapaz notou que ele tinha apenas um livro em mãos. — Que bom te encontrar, me poupou o trabalho de procurá-lo.
Ronan não gostou do rumo da conversa.
— Você precisa de alguma coisa, professor?
— Muito pelo contrário, tenho uma oferta para você, gostaria de ouvi-la?
— Para mim? Mas por quê?
— Porque você não é um peso morto como o resto da sua turma. — Ronaldo abanou o livro em mãos. — Não sei se você sabe, mas é bem provável que sua turma fique sem aula durante o mês inteiro, talvez até mais.
— Ou mais? — repetiu intrigado.
— Mas é claro garoto — o ex-professor gargalhou. — Criadores de runas são importantíssimos em nossa sociedade.
— Isso é novidade pra mim, mas por quê?
— Olha você já me fez perguntas que chega por hoje. Eu quero lhe fazer uma oferta, mas preciso saber se você tem interesse, tudo bem para você?
Não custa nada ouvir o que o velhote tem a dizer.
— Tá bom, o que é?
— Gostaria de ser meu aprendiz por um mês? Podemos utilizar o laboratório onde eu dava minhas aulas. Já acertei tudo com a diretoria, eles me deixarão continuar as aulas para os poucos interessados.
— Por mim tudo bem, somos em quantos?
— Somos? — Ronaldo surpreendeu-se. — Gostei da atitude, mas a turma é só você.
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Depois das aulas do mês de setembro, Ronan praticou sua manipulação sob a supervisão de Anna, Dario e Nathalia, mas em troca, precisou lhes ajudar na disciplina que mais tinham dificuldade: Criação de Runas. Entretanto, nos seus poucos dias livres, Ronan passou os fins de tarde na oficina da universidade sendo tutelado por Ronaldo Rodrigues, o professor exonerado.
Para o rapaz, ganhar a simpatia de alguém tão detestado deveria ser o equivalente a fazer amizade com o próprio demônio. Mas foi apenas no último dia de treinamento com o ex-professor, que Ronan aprendeu um pouco sobre suas opiniões mais pessoais.
— Os conjuradores são a escória da humanidade, e a manipulação é o que nos torna inumanos. E não me olha com essa cara! Foi você quem pediu o porquê de eu não gostar da sua turma… quer saber mais? Fico feliz em sair dessa porcaria de universidade. Quem sabe agora eu posso finalmente contribuir para o glorioso Império de Leon.
— Mas o senhor é um manipulador, não é esquisito nos amaldiçoar justamente pelo que somos?
— Não! — Ronaldo exclamou levantando a voz, mas ele soube que não estava sendo repreendido. — Pelo contrário — continuou abaixando a voz. — É justamente por sermos essas criaturas amaldiçoadas que nós devemos nos criticar.
Criaturas? Ele está louco, só pode. Ronan decidiu guardar suas dúvidas para si, exceto uma:
— O que quis dizer com ajudar o glorioso império?
— Você não lê o jornal? Não é por nada que essa juventude está perdida. Nós já estamos em guerra garoto, só não anunciaram ao público ainda. Ou vai dizer que a tomada da Cidade Livre e o assassinado do rei de Belfort vão ficar por isso mesmo?
— Eu ainda não entendi porque invadiram Avska, não era para ser uma Cidade Livre?
— Era, mas já divagamos de mais do que importa, vai terminar essa runa ainda hoje?
Ronan não respondeu. Não valeria a pena querer estender ainda mais a conversa. Era sua última aula com o ex-professor, então precisava se dedicar ao máximo. Na semana passada havia aprendido uma runa de nível avançado, o desenho a ser talhado não era dos mais complicados, mas exigia muito cuidado de qualquer forma. Aquele seria o presente do professor ao seu melhor aluno daquele semestre. Ronan sabia como talhar em metal, fora ensinado por Ronaldo fez pouco tempo, mas ainda precisava praticar o desenho nos clássicos cubos de madeira para não desperdiçar o precioso aço.
— Está melhorando, mas tem muito a ser corrigido. Você precisa analisar um pouco mais antes de fazer cada gravura.
— Sim professor, na próxima terei mais cuidado.
Ronaldo retirou o cubo dele, girou em sua palma e o devolveu com uma face imaculada virada para cima.
— Pode começar, mas lembre-se do que ensinei.
Nessa bizarra relação mestre-aluno o último dia de aprendizado se estendeu até tarde da noite. Ronaldo não aceitaria deixar para o aprendiz uma runa medíocre em seu repertório.
Quando o mestre demonstrou satisfação com o que viu, o garoto quase chorou. Não sabia como agradecer aquele monstro intitulado por seus amigos. Aquela única disciplina o fez ter a força necessária para não desistir da carreira.
Os dois saíram da oficina, Ronaldo trancou a porta da sala e Ronan o agradeceu curvando sua coluna num gesto quase submisso.
— Tive minhas dúvidas sobre você garoto, mas fico feliz em ter investido em seu futuro… adeus.
— Adeus mestre.
E na semana seguinte, o mês de outubro chegou.