Ribeira dos Desejos Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 3

Capítulo 29

Dia 12 | Ano 1***

16:40 PM


Morar em uma floresta nem sempre era o refúgio idílico que as pessoas imaginavam. Para aqueles que ansiavam por isolamento, era, sem dúvida, um paraíso — um casulo de silêncio interrompido apenas pelos sussurros do vento e os cânticos distantes das aves. Mas o mesmo ambiente que acalentava alguns podia tornar-se opressivo para outros.

Ainda assim, Rose nunca se incomodou com essa solidão. Do degrau mais baixo da escadaria que conduzia à entrada da casa, ela observava as copas das árvores balançarem sob o céu ameaçador. Nuvens negras se aglomeravam como um exército em formação, e pássaros cortavam o ar em voos rápidos, fugindo da tempestade iminente.

As tardes na vila eram marcadas por chuvas violentas. Os moradores se apressavam em suas tarefas, ajustando carroças carregadas de provisões para o inverno que se aproximava. As rodas pesadas deixavam sulcos profundos no barro, e o cheiro fresco da terra molhada se espalhava pelo ar. Mesmo com o céu sombrio, alguns aldeões erguiam as mãos em um gesto breve de saudação para Rose, que devolvia um sorriso discreto enquanto apertava a xícara de café entre os dedos ásperos.

Porém, a paz daquele instante foi interrompida quando uma voz firme surgiu da porta entreaberta.

— Você fez o que pedi? — perguntou Vivian, ajustando a capa pesada sobre o braço direito.

— Sim, mãe — respondeu, sem emoção, levando a xícara aos lábios.

— Ótimo. — Vivian guardou as chaves em uma cesta de vime. — Não me espere para jantar.

A mulher já se preparava para partir quando Rose, com um toque de provocação, perguntou:

— Muitos clientes hoje?

Vivian parou abruptamente, os olhos cintilando em exasperação, e algo mais difícil de definir.

— Se está curiosa, por que não me acompanha?

— Você me mataria se eu tentasse — disse Rose, voltando o olhar para a estrada que desaparecia na floresta adiante.

— Ainda bem que sabe. — Vivian ergueu o queixo, altiva. — E lembre-se: conserte aquele buraco na cerca e leve seu marido junto. Essa casa ainda é minha.

— Como se você me deixasse esquecer… — debochou, pousando a xícara no chão. — Mas não se preocupe. Vou aproveitar que Timothy levou Edy para a aula de balé e dar uma olhada na velha cabana.

Vivian estreitou os olhos, como se considerasse algo importante antes de finalmente falar:

— Permitirá que Edwynna fique comigo?

Rose se levantou, limpando a parte de trás da saia. Seus olhos buscaram os da mãe, firmes e contidos.

— Ela é sua filha — expressou, seu tom seco.

— Você também.

— Não — disse, o sorriso amargo curvando-se em seus lábios. — Deixei de ser sua filha quando me obrigou a cuidar dela.

— Você aceitou o serviço.

— Aceitei porque você implorou! — Sua voz subiu em frustração. — Eu a amo, mãe, mas… eu não posso mais sustentar essa mentira. Eu quero ter minha família com Timothy. Poucos ainda acreditam que Edy é minha filha.

Rose se aproximou, o tom sincero agora tingido por um leve desespero.

— Se a senhora me permitir, posso ajudá-la com as despesas. Não precisará mais trabalhar naquele lugar! Eu quero que tenha de volta a vida que perdeu.

Vivian enrugou a testa, como se as palavras da filha fossem espinhos cravando-se em sua pele.

— Você nunca me tirou nada, Rose. Minhas escolhas me trouxeram até aqui. Todos no bordel conhecem meu rosto, e logo reconhecerão o seu. Você não será conhecida como Rose Danner, a esposa do soldado Timothy. — Respirou fundo. — Por um descuido, permiti que Edy nascesse, mas nunca me arrependerei de tê-las criado. 

Rose ficou em silêncio, pois, como refutá-la? Ela não sabia como.

— Quando chegar a hora certa, direi a verdade a ela — continuou Vivian, puxando o capuz sobre a cabeça. — E você poderá viver a vida como quiser. Mas, por agora, cuide de sua irmã como sua filha.

Vivian partiu pela estrada lamacenta, o vento agitando a capa ao redor de seu corpo. 

E Rose permaneceu ali, imóvel, seus dedos inquietos.

— E quando chegará esse dia? — murmurou para si, a pergunta pairando como um sussurro no ar denso.

Sete anos esperando o momento em que poderia olhar no espelho e admitir que desejava uma criança que fosse realmente sua.

E puxando o ar para o peito, ela se dirigiu à casa. Pendurada na parede, uma chave esperava por ela. Rose a pegou, ajustou a capa nos ombros e saiu pela porta, trancando-a antes de esconder a chave sob um arranjo de flores ao lado da entrada.

Com passos decididos, suas botas afundaram na terra úmida enquanto ela seguia em direção a um lugar repleto de memórias. Era um refúgio esquecido da infância. Um lugar onde ela talvez pudesse encontrar suas melhores lembranças.

As horas avançaram e, quando as crianças já deveriam estar recolhidas em suas casas e os pássaros acomodados em seus ninhos, o sol despediu-se em tons dourados, abraçando a chegada tímida da lua. No centro da cidade, moradores ainda perambulavam entre os comércios que se preparavam para encerrar o dia. Padarias fechavam suas portas, e os açougues retiravam os últimos cortes das vitrines. 

Nas áreas mais agitadas, a noite apenas começava. Bares e tabernas fervilhavam de vida, enquanto bordéis ofereciam uma mescla inebriante de risos, bebida e tentação.

Numa taberna repleta de vozes roucas e aroma de carne assada, mulheres com braços firmes equilibravam bandejas repletas de petiscos, desviando habilmente dos cotovelos dos fregueses exaltados. Homens, com risadas arranhadas, brindavam ao som da música improvisada de um velho alaúde.

No balcão, dois amigos partilhavam uma bebida. Uma mulher com cabelos presos em um coque desajeitado apoiava-se sobre a madeira refinada, oferecendo-lhes mais uma rodada.

— Por conta da casa — disse ela com uma voz aveludada, deslizando duas canecas espumantes.

— Tem certeza? — provocou Lukas, arqueando uma sobrancelha.

— Se não quer, devolva! — Ela estendeu a mão para recuperar a bebida.

Mas Lukas foi ágil, como um falcão. Com um sorriso travesso, levou a caneca aos lábios e tomou um gole generoso.

— Haaaa! — exclamou, satisfeito. — É disso que eu tô falando! — Virou-se para Asher, com os olhos brilhando. — E você, como está se sentindo?

Asher lançou-lhe um olhar enviesado, os lábios retraídos em um gesto seco.

— Por que pergunta?

Lukas olhou de relance para Kristy, que preparava bebidas com destreza.

— Você não contou a ela que vai embora, não é?

— Conto outro dia. Preciso voltar à cabana para pegar uns instrumentos de caça. Deixei meu facão lá.

Lukas franziu o cenho, avaliando o amigo com cuidado.

— Tem certeza disso? Já faz tempo desde a guerra. Estamos em paz, não precisa voltar para aquele lugar…

Asher compreendia a insinuação não dita. Voltar à cabana era revisitar lembranças que preferia enterrar.

— Rose me ofereceu a cabana, mas… não consigo aceitar.

Levantando-se do banco, os olhos fixos na espuma dourada que ainda restava em sua caneca, Asher murmurou:

— Foi uma ideia idiota. Só queria me livrar daquilo. Daquelas memórias…

Ele respirou fundo antes de continuar:

— Eu só quero ser livre. Mas talvez precise encarar meus medos.

Lukas, com um bigode de espuma ainda no rosto, inclinou a cabeça.

— E qual é essa realidade?

Uma muito difícil de encarar.

— Que não consigo deixar de amá-la — confessou.

Asher jogou duas moedas sobre o balcão e fitou Kristy ao longe, com seu semblante sereno enquanto distribuía cervejas.

— Preciso ter uma última conversa com meu pai e depois partir.

— Pegará um barco?

— Se possível, sim. 

— Para onde?

— Longe. Talvez outra província; um lugar onde ninguém me conheça. Para além dos limites de Vraaset e Olpheia.

— Você vai mesmo deixá-la?

— Não será para sempre.

Ele observou o amigo ajustar a bolsa ao ombro.

Era o certo a ser feito, apesar de Lukas, terminando a última gota de cerveja, não enxergava os olhos castanhos claros da mesma forma que Asher os via.

— O pessoal tá esperando por você para jantar. 

— Claro. — Asher sorriu de leve, tocando o ombro do amigo antes de partir.

Enquanto caminhava pelas ruas pavimentadas com tijolos, agora tingidos pelos últimos raios do sol, Asher se aproximou de um rancho. Seu corcel robusto levantou a cabeça ao vê-lo, bufando suavemente.

— E aí, garoto? Vamos voltar para casa? — Asher afagou a crina do animal, desatando a guia presa ao poste. — Será rápido, prometo.

Montando com um movimento preciso, conduziu o cavalo por entre árvores familiares.

E, em outro lugar, na cabana, Rose a fitava de longe. Em sua mão direita, havia uma chave, uma chave que não a pertencia, de fato. Ela encarou o pedaço de ferro ornamentado, pensativa. 

Ela pôs as mãos na cintura, ao tempo que inspecionava as laterais da construção. Embora desgastada, ainda era sólida. Vinhas cresciam pelas paredes, e o mato se alastrava como se quisesse reivindicar o espaço.

Ainda assim, determinada, Rose firmou a chave em sua mão, os dedos cerrados ao redor do metal frio, como se buscassem coragem em seu toque. Em um giro, a fechadura cedeu, emitindo um rangido grave que reverberou pelo ambiente vazio. A porta, pesada, moveu-se lentamente, revelando um espaço envolto em sombras impenetráveis.

O céu lá fora ainda brilhava com a luz suave da tarde, que logo seria tomado pela escuridão noturna. Mas ali dentro, nenhuma centelha atravessava as janelas empoeiradas, carregado com o cheiro estagnado de madeira velha e esquecimento.

Rose afastou as persianas com um gesto irredutível, fazendo uma nuvem de pó dançar diante de seus olhos.

— Cof, cof! Que nojo! — resmungou, tapando o nariz com a mão para conter o espirro.

Seus passos reverberaram pelas tábuas rangentes enquanto explorava os outros cômodos da casa. No banheiro, a banheira já havia sido tomada pelo descaso. Teias de aranha se estendiam como véus delicados sobre a cerâmica fria, transformando o espaço em um domínio abandonado. 

Rose desviou o olhar, recusando-se a encarar aquela visão agora.

Ao retornar à sala principal, seus olhos pousaram brevemente sobre o fogão a lenha coberto de fuligem e, depois, na despensa. Como suspeitava, estava quase vazia — apenas alguns sacos fechados repousavam lá, inúteis por enquanto.

Ela seguiu até uma porta à direita. Sua madeira lascada levava a um quarto abandonado, sem dono. Com um empurrão suave, a porta rangeu, revelando o interior intacto.

 A cama permanecia resistente, intocada, esperando um retorno que nunca veio.

Rose desfez o nó que prendia sua capa, permitindo que seus cabelos caíssem livremente sobre os ombros. Ela olhou para o teto, onde os últimos raios de brilho fatigado tentavam penetrar pelas frestas das telhas. 

No armário, encontrou uma coroa de flores, completamente empoeirada, os tons desbotados, reflexos de um tempo quase perfeito, que há muito tempo se desfez entre tantas memórias calorosas.

Rose a ergueu delicadamente, o coração oscilando entre a memória e a indiferença. Mas contemplá-la não fazia parte de seus planos. 

Com um suspiro resignado, devolveu-a ao lugar.

Puxando o lençol sobre a cama, liberou uma nova nuvem de poeira que subiu pelo ar pesado. Ignorando o cheiro de mofo, ela se deixou cair sobre o colchão. A madeira reagiu sob seu peso, mas por um momento, o mundo pareceu mais leve.

O tecido áspero tocava seu rosto, mas existia um sentimento reconfortante naquela sensação imperfeita. Apenas alguns segundos, talvez minutos — quem sabe horas — seriam suficientes. Suficientes para recordar.

Lembranças do cheiro amadeirado que impregnava o verão. Do calor envolvente que transformava os dias em promessas. Do som quase musical da chuva tempestuosa golpeando as telhas antigas.

Mesmo que aquele “nada” que ela desejava fosse, na verdade, tudo — um vasto oceano de mágoas e saudades, cada gota d'água escorrendo pelas solas de suas botas, tingindo o chão de madeira.

E na entrada do quarto, em meio ao crepúsculo, ele conseguia vê-la, com seus olhos azuis, semelhantes ao céu da noite.


Acompanhe também…

Príncipe de Olpheia.

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