Volume 3 – Parte I

Capítulo 43: Sonho de treinamento: Magic Moreno I

                       

Uma bala de arroz sendo disparada contra um kaiju é a descrição mais precisa que eu posso dar ao ver a cena. Um fio de fogo sendo disparado dos céus e o centro da monstruosidade onírica é o alvo.

— Ele vai se jogar contra aquela coisa? — pergunto mais para mim mesmo do que esperando uma resposta de alguém.

— E como vai.

Nymph aparece do meu lado, já na forma de seu persona, a menina gato com grandes orelhas felpudas, vestido branco com um corpete justo e saia, e vários cintos enroscados à cintura e à coxa esquerda como cobras. Suas duas caudas, entrelaçadas como um par de dançarinos, balançam em excitação.

— Ah, criatura! Que susto!

— Só observem, crianças — diz a assessora, cruzando os braços. — O treinamento de vocês começa agora.

O Executivo desce veloz e então colide contra o peito do pesadelo, uma montanha de músculos disformes. O monstro solta um grunhido gutural seguido de um rugido que parece trincar a realidade cinzenta do Mundo Espelhado. A pressão exercida pela potência de seu urro de derrota é o bastante para quase nos arremessar da cobertura do prédio como folhas varridas pelo vento.

Nymph é a única que se mantém firme e parada no canto como um pilar robusto preso ao chão.

— Caramba! — Jamal exclama.

— Ele acertou o pesadelo em cheio! — comenta o Rei de Latão, sua mandíbula enlatada quase caindo.

Nymph ri. Um estalo de língua vem detrás da máscara do Yatsu e o único olho de Zeppelin parece que vai se atirar para fora da cara.

Ao trespassar o peito do monstro, Magic Moreno se afunda no solo, destruindo um prédio inteiro em sua descida. Uma grande nuvem de poeira se ergue desde o solo ao passo que o pesadelo gigante começa a desmoronar com um buraco giga no meio do peito.

Um buraco tão grande que um trem passaria por ele facilmente. O excedente de energia se dissipa e as milhares de correntes que se ligavam ao pesadelo se quebram simultaneamente, como uma chuva de pó negro onírico.

Ele quebrou todos aqueles elos oníricos ao mesmo tempo?! Sashi diz da minha mente, a voz quase sem fôlego.

— Esse cara é mesmo um monstro.

— Quem é um monstro aqui, caba safado?

O susto é tão grande que meu coração para por alguns segundos antes de voltar a bater. Pelos que eu nem sabia que tinha — ou que a Sashi tinha — em lugares estranhos se arrepiam. Ao nos virarmos, o colosso de músculos bronzeados esculturais que é Magic Moreno está atrás de nós, nos encarando com o olhar afiado.

— Não pode ser! — Zeppelin recua em um salto.

— Impossível! — Rei de Latão dá dois passos para trás.

— Quando foi que ele...?! — Os olhos de Jamal se projetam em pânico.

—  Miserável! — Yatsufusa fica em posição de luta. O trauma da última e humilhante derrota ainda doía como uma ferida aberta em seu ego.

— Merda! — grunhi ao passo que saco minha própria arma.

Seus potentes braços estão cruzados e seu rosto demonstra serenidade, até um certo tédio, mesmo depois de tudo que vimos. Ele nem mesmo fez esforço para derrotar aquela aberração e vir até nós como se tivesse se teletransportado.

E agora? Sashi questiona. O que será que ele tem em mente?

— É o seguinte, cambada. As ordens que vieram dos cabeças foi que eu treinasse vocês, mas vou dizer que eu não tenho jeito e nem saco pra ensinar — Magic suspira com irritação ao coçar a careca, as sobrancelhas franzidas. O maxilar robusto se contrai e ele continua: — Então, o bagulho vai ser um pouco diferente.

Nymph caminha até ficar ao lado dele. Ela coloca as mãos para trás e seu rosto se ilumina em uma expressão brincalhona... como se ela já soubesse o que ele fosse dizer.

Como claramente sabia.

— Vocês já conhecem minha assessora, Nymph — Ele toca o ombro da menina gato. — Meu braço direito, a mulher mais arretada e sigma abaixo de mim. O objetivo de vocês será sobreviver a um minuto de peia contra ela. Se conseguirem fazer isso, vou considerar treiná-los.

— Quê?! Mas que palhaçada é essa? — Zeppelin é a primeira a se opor, como sempre. — Viemos de muito longe, sobrevivemos ao inferno que é essa porra de estado, na iminência de uma guerra, e está nos dizendo que não vai nos treinar?

Magic enfia o dedo mindinho no ouvido, dando voltas ao passo que responde com um simples e seco:

— Sim. Isso mesmo.

— Ah, vai pro inferno! Quem você acha que é?!

— Sou o cara mais forte que existe na Mandala hoje e que existirá no futuro — rebate, apontando com o polegar para o seu peitoral estufado. — E não treino betazinhos fracotes que vão se partir como gravetinhos quando eu realmente acochar o nó. É pegar ou largar, cumade.

— Quanta arrogância! — reprova o homem de lata, batendo o pé.

— Não é arrogância. É só a verdade, meu chapa. Essa é minha condição. Vocês têm um mês para conseguir isso, então imagino que em vez de ficarem falando miolo de pote aqui e questionando minhas decisões, melhor começarem a pensar em como vão livrar os couros da minha assessora.

Ele se vira para ir embora, deixando Nymph para trás conosco. Ele dá umas tapinhas nas costas dela, dizendo:

— Deixo o resto para você, Alicia — diz Magic. — Vou de academia. Fui!

— Pode deixar! — responde ela com uma continência.  

— Ei! Para onde você tá indo? — Zeppelin se esgoela com o punho cerrado para ele. — Volta aqui! Não pode se simplesmente...

— Minha nobre — Jamal a interrompe. — Ele já foi embora.

— Sério isso? Ele não vai nos treinar?

— A menos que cumpram o desafio, não — Nymph puxa as luvas para ficarem bem justas aos dedos graciosos. Ela abre e fecha a mão em movimentos vigorosos. Batendo um punho no outro, seus olhos ferais cor de âmbar a brilhar, ela pergunta: — Estão prontos?

Zeppelin olha furiosamente para a mulher gato e vira o rosto como uma criança birrenta a quem foi negada um doce.

— Me recuso a participar dessa palhaçada! Que coisa ridícula! Esse cara não está levando nada disso a sério!

Nymph balança as orelhas, os punhos cerrados na cintura em chateação.

— Olha, pode reclamar e badalar o quanto quiser, mas se não passar nesse treinamento ou se recusar a fazê-lo, está fora.

O silêncio desconfortável paira entre nós. O lugar onde estamos parece ficar mais frio depois daquelas palavras.

— Fo-fora? — Zeppelin repete, as sílabas capotando em sua boca.

— O torneio foi apenas uma parte do processo seletivo e o treinamento é a segunda parte. Então, eu reconsideraria se fosse você.

Zeppelin estala a língua e solta um suspiro furioso, antes de concordar. Suas lâminas escorregam das mangas de seu vestido, as correntes a tilintar enquanto envolvem os pulsos.

— É só lutar contra você por um minuto que passamos? — A empregada caolha pergunta com o olhar sério.

— Isso aí, minha nêga.

— Então aquele brutamontes vai ter que engolir o orgulho de merda dele e nos treinar com um sorriso no rosto! — Ela brande as lâminas em direção à menina gato.

Nymph ri, balançando as caudas.

Essa mulher..., Sashi fala na minha cabeça, tem alguma coisa de errado com ela.

— Também tô com um frio na barriga — respondo baixo, a mão sobre a empunhadura da katana.     

— Certo. Já conversamos demais! — Nymph cobre o punho direito com a mão esquerda os pelos em suas orelhas se atiçam. — Vamos começar!

Uma quantidade enorme de Gnosis explode, envolvendo o corpo da menina gato como uma armadura energética. O chão abaixo dela cede e o vento dá uma rajada em nossas caras. Ao sentir o mesmo que eu, a reação natural foi ficar em alerta máximo.

Um descuido e morremos, esse é o pensamento que me vem. O que sinto vindo daquela assessora... a densidade e agressividade de sua Gnosis acendem todos os alertas vermelhos possíveis. Um sentimento que até há pouco não sentia de que, se eu ou qualquer um de nós vacilar perto dela, já éramos.

A visão que tenho é da forma de uma besta feroz a se moldar a partir de sua energia, como uma sombra a pairar sobre ela, nos ameaçando.

— Que foi? Vocês lutaram entre si naquele torneio, tão confiantes e cheios de si e agora estão apreensivos? O que aconteceu?

Nenhum de nós se atreve a responder. Ela suspira.

— Então vou dizer. É porque nenhum de vocês lá tinha uma noção real das capacidades dos outros — Nymph fecha os punhos e uma postura de combate. As caudas se eriçam e erguem-se como duas lanças. — Agora, vou lhes ensinar o quão grande é esse mundo em que mergulharam.

Calebe! A Zeppelin!

VUUSH!

A reação é instantânea. Posso dizer que é instintiva. Ao ouvir a voz da Sashi, meu corpo se move sozinho por um ímpeto de uma mescla de medo com urgência. Minha visão focaliza unicamente na pessoa que a Sashi indicou.

Zeppelin! Me movo e me jogo contra ela, a tirando do caminho.

A salvando de Nymph.

— Urgh!

— Argh!

Um tufão dispersa os demais fictors presentes para os cantos da cobertura. Yatsufusa se choca contra a grade de proteção; o Rei de Latão rola no chão com ruídos ensurdecedores de seu corpo metálico riscando contra pedra e Jamal sai voando e capotando até o lado oposto onde estávamos, usando suas manoplas para se fixar ao chão.

Já eu e Zeppelin estamos no chão, a alguns metros de onde uma carreta iria passar por cima dela. E de mim também. Estou arfando, assim como ela, me perguntando o que demônios acabou de acontecer.

— Que foi... isso?

— Consegue se levantar? — pergunto, quase sem voz.

Ela apenas responde que sim com a cabeça e nós nos levantamos. Zeppelin fica ainda mais pálida do que eu imaginei ser possível quando percebe o estrago que Nymph fez com seu ataque.

Simplesmente dizimou aquela área do prédio inteira e parte do prédio mais próximo. As nuvens imperturbáveis daquele céu monocromático desaparecem, deixando um vácuo no espaço.

Suor frio desce entre as madeixas do corpo da Sashi, enquanto me esforço para controlar a respiração nervosa. Por um segundo... por um breve segundo, nós quase fomos pegos por aquele soco.

Isso... foi mesmo um soco? Ela podia ter matado você com isso! Sashi reclama na minha cabeça. Calebe. Por favor, troca comigo. Podemos...

— Sashi... agora não é hora!

Ela se cala.

— Hmm? Olha aí! Gostei dos reflexos! Não imaginei que você conseguiria ler o que eu iria fazer e agir a tempo. Pelo visto, você está um nível acima dos outros.

O olho assombrado de Zeppelin oscila entre mim e a menina gato, girando o braço como um aquecimento. Ignorando o medo latente que eu sentia, ouso sacar a espada. Se eu puder fazer o que fiz, mesmo se for quase impossível... talvez eu consiga... talvez eu possa sobreviver a um minuto com esse monstro em forma de garota gato fofinha.

— Só um minuto... certo?

Nymph sorri com o cenho franzido. Agora está mais animada ainda.

— Muito bem. Como você está mais atento e é mais rápido, então vou começar com você! — Ela aponta para mim. — Prepare-se!

A assessora avança em uma velocidade esmagadora para me atacar. Seu punho vem sedento pela minha cara em um direto destruidor. Por muito pouco consigo bloquear com a espada, mas ainda pega de raspão na minha testa e me joga a vários metros contra a grade de proteção do outro lado.

A estrutura de metal se amassa com o peso do meu impacto contra ela. Deixo escapar grunhidos de dor e minha visão gira 360 graus, mesmo depois que eu paro de capotar.

— Merda!

Antes de conseguir me recuperar, Nymph já está na minha frente, pronta para mais um soco. Desvio por pouco e tento um revide, mas ela já não está mais lá.

— Muito lento.

Olho para trás e só dá tempo de ver o punho vindo no rosto. Droga! Não dá tempo de...!

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHH!

Acordo aos berros na cama onde deitei antes de surgir na cobertura do prédio. Olho para os lados e todos estão dormindo tranquilamente com seus SDM nos ouvidos. O mundo está colorido e em sua velocidade normal de novo, o que significa que estou no mundo real.

— Que... que merda... aconteceu? Eu... acordei?

Poucos instantes depois é a vez de Ingrid levantar gritando, sobressaltada. Sua testa brilha em suor frio, e ela arfa e geme com a mão cravada sobre o centro do peito, sem fôlego. Seus olhos estão fixos nas pernas, petrificados em terror e... dor?

O que houve? O que aconteceu nesse curto espaço de tempo? E a Sashi?! O que houv...?

— Ca-Calebe?!

Ela olha para mim, como se estivesse vendo um fantasma.

— O que houve, Ingrid? O que aconteceu?

Quase sem conseguir dizer, a voz sufocada entre tosses e grunhidos enquanto ela pressionava sua mão sobre o coração, ela responde:

— Eu... morri.



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