Volume 2

Capítulo 39: Sonho de treinamento: Nádia II

                           

Os dias passam e os treinos ficam mais intensos. A conversa que tive com Nádia não tornou nada mais fácil, obviamente. Eu continuo emperrado. Sashi continua com seus ataques normais e diretos, cuspindo suas chamas a torto e a direito sem o menor controle delas ou novas formas de manifestá-la, como os outros conseguiram fazer.

Mas ao menos consigo um norte. As palavras da Nádia ao confessar seu passado terrível para mim me dão um puta gás para continuar tentando.

Não se compare com os outros. Você tem seu tempo, tem seu ritmo. Você tem sua história. Seu processo é diferente.

— Vamos lá. Faça com que as chamas o obedeçam. Consiga o controle e o mantenha! — Nádia grita comandos de longe.

Sashi está parada em uma postura relaxada, quase meditativa. Segura a espada com as duas mãos. Uma pegada firme e decidida, mas também solta e leve. Tanto meus olhos como os dela estão fechados. Nossa concentração é suficiente para perfurar uma pedra.

Consigo sentir a Sashi. Não só isso. É uma sensação estranha de consciência completa que creio nunca ter tido na vida. Saber quantas vezes estar respirando e expirando, quais áreas do seu corpo estão recebendo vento e quais estão formigando, latejando, coçando, ardendo ou reclamando da posição imóvel em que fiquei.

Bizarro.

E sentir isso em dobro? Duas vezes mais bizarro. A Sashi também faz parte de meu campo sensorial. Posso sentir sua respiração como se fosse minha. O pulsar de seus braços, o balançar de seus cabelos. Cada movimento de suas pernas e braços, o peso da katana e de suas roupas, mesmo que nos mínimos acessórios, consigo sentir plenamente agora.

E tem também os pensamentos.

 


Pode não ter todas as suas memórias, mas se não ficar em paz com o que existe dentro de você, com aquilo que se lembra e as emoções que elas trazem, nunca vai progredir.


 

As parcas e desencontradas memórias que recuperei fluem como um rio pela minha cabeça. Elas passam, algumas se demorando, outras passando mais rápido..., mas todas passam. Como um rio. O que vocês têm que ainda não descobri? Que não aceitei?

Deixe que os pensamentos venham e passem. Você pode se deter em alguns em específico, mas não pode ficar preso a eles. Observe-os, sinta suas emoções e aceite aquilo que vier, então deixe-as ir.

Nádia tinha me dito isso antes do treinamento e agora é hora do vamos ver. Sinto os olhos curiosos dos meus companheiros ao longe, me observando atentamente. Nádia também está assistindo. Sashi está assistindo.

Todos estão esperando, Calebe.

As memórias continuam a vir. Carla, Enrico e nossa promessa. Aqueles dias felizes e calmos onde éramos só sorrisos e pulos e sorvetes e brincadeiras. Felicidade. Um quentinho no coração.

E então lacunas dolorosas como travas. E pontadas de dor começam a vir, parecendo agulhas a castigar meu cérebro por ousar forçar lembranças.

Aceite o que vier. Aceite o que vier.

A lembrança de Enrico em nosso último encontro se mistura ao vórtice estilhaçado de memórias nebulosas e sons estranhos se projetam no vazio entre os cacos de memórias flutuantes. O que devia ser um rio calmo em minha mente se transforma em uma correnteza incontrolável aos poucos.

Memórias e sentimentos vertiam, transbordavam e isso se traduz com o som das chamas de Sashi a se revolver ao nosso redor com ferocidade.

Aceite o que vier. Aceite o que vier.

Havia mesmo coisas que eu não queria ver, que eu não queria aceitar. Eu tenho medo de ver a verdade que Enrico esfregou na minha cara e agora vejo isso. Eu nem sequer lembrava dele e quando lembrei, não consegui aceitar o fato de que tudo o que aconteceu com ele... toda aquela situação, tão absurda para mim, era culpa minha.

Aceite o que vier. Aceite o que vier.

Meus punhos tremem, minhas pernas bambeiam. O coração acelera à medida que me aventuro nas regiões enevoadas da minha mente. Os fragmentos que faltam. E essa insolência me recompensa com mais pontadas dolorosas nas têmporas e na parte de trás da cabeça.

Aceite... o que vier. Aceite... o que... vier.

E então sons violentos de frenagem assombram meus ouvidos, parecendo que um carro freou com tudo na minha frente. O que é isso? Será que são delírios? Sonhos? Pensamentos?

Ou lembranças? Mais delas?

Aceite... o que... o que... vier.

A Carla morreu! A culpa é sua, Calebe! Sua culpa, sua culpa, sua culpa, sua culpa!

Mais sons de asfalto sendo queimado. Lataria amassada. Metal contra pedra. Risadas malévolas. Choros. Uma promessa, um encontro.

Eu vou te encontrar, Calebe! Posso ir te ver?

A voz da... Carla?

Claro! Tô com tanta saudade! O Enrico vem também?

Não. Ele disse que vai ficar porque tem coisas para fazer, mas que da __________, ele promete que vai.

Ah! Eu vou te buscar junto com o ______.

Com quem? Me deixe ver. Por favor, me deixe ver.

———, você acha que a gente vai chegar na ______________ que horas?

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Droga! Por que não posso ver?

Calebe! Calebe! Uma voz distante me chama. Uma voz familiar.

Não... eu tenho que ver mais! Eu preciso ir... mais fundo.

Aquele som queimado de novo. Minha visão se projeta em uma estrada vermelha, como se eu visse todo o mundo por uma lente de filtro avermelhado. Observo as marcas de pneu ziguezaguearem no asfalto, indicando que alguém freou com tudo que tinha, mas falhou em manter o controle do carro.

Mas quem? O que isso significa? E então as marcas desaparecem.

O que é isso? O que isso tem a ver? Me mostre.

Eu sigo as marcas, ouvindo a voz desesperada de Enrico reverberando no espaço infinito que é aquela estrada. A voz dele vem do escuro e do desconhecido adiante, vem das profundezas atrás, vem dos matos escuros que margeiam a pista... a voz dele está em todo lugar.

A culpa é sua! A culpa é sua! Ele repete sem parar.

Não! Não fui eu! Eu nunca faria... nunca faria nada de mal a ela!

E quando chego ao carro virado do avesso, uma criança está rastejando em direção à outra. Uma se mexe e outra não. Ambos estão terrivelmente feridos. Sangue por todo o lado. Há mais alguém dentro do carro, mas não consigo ver quem é.

Quem... quem são esses que não reconheço?

Havia muito sangue espalhado em meio aos cacos de vidro. A criança que rastejava era... era eu? E a que estava no meio das ferragens, semimorta era a... não. Não.

Isso foi culpa minha? Como?

Calebe! Calebe!

Essa voz... essa voz me chamando é da...

 

— Calebe! Acorda!

—...!

Eu abro os olhos me ergo de uma vez com uma pontada forte na cabeça que quase me derruba de novo. Sashi está do meu lado, preocupada. A forma que ela está olhando para mim é como se eu tivesse morrido e ela estivesse vendo um fantasma.

Então a voz que me chamava vinha dela.

— Ei, o que houve?

— Você desmaiou. — Nádia responde pela Sashi ao entrar no quarto com uma bandeja na mão. — Espero que não se importe com omelete de sardinha.

— Ai, merda... que horas, que dias...?

— Relaxa. Você só passou uma hora fora — tranquilizou Nádia. Ela coloca a bandeja sobre minhas pernas e me olha com suavidade. — Parecia até que estava dormindo.

Sashi solta o ar com alívio e se levanta.

— O que aconteceu lá? — A Executiva pergunta, um tanto receosa em estar me pressionando.

Para falar a verdade, nem eu mesmo sei e sei menos ainda se saberia como descrever. Só de pensar em tudo isso me causava espasmos no cérebro. Mas as imagens, os sons... foram tão reais que é como se eu tivesse vivido tudo aquilo de novo. Um déjà-vu alucinante.

Seriam novas memórias? Consegui recuperar mais alguma coisa?

— Eu vi coisas. Vi e ouvi, na verdade. Acho que foram memórias — respondo com uma mão na testa, encarando os lençóis encharcados de suor.

— Memórias? Você conseguiu se lembrar da sua antiga vida? — Sashi parece ansiosa com a informação. Bem mais do que eu esperaria dela e estranho.

No fim eu deixo pra lá. Como uma parte minha, é natural que isso vá impactar nas condições dela também, então é justificável.

— Não tudo e não direito, mas... — Me interrompo para catalogar os eventos em ordem. —, consegui ver como a Carla morreu.

Sashi franze o cenho e abre a boca para mais perguntas, mas resolve se calar. Algo dentro de mim aprecia a consideração delas de não me submeter a um interrogatório após um desmaio. Nádia também não diz nada e se levanta, espreguiçando-se.

— Certo. Coma e descanse. Quando estiver melhor...

— Nádia.

Ela se vira.

— Pode pedir para os tragedianos abrirem outro campo lúdico?

Uma sobrancelha de curiosidade é erguida pelas duas.

— Posso sim, mas... o que está pensando?

Um insight vem na minha mente detonada pela dor e o sono. É como ligar os pontos ou montar os bloquinhos. Uma criança forma um pensamento cognitivo ao ligar os dois primeiros pontos e esse mesmo pensamento o leva até o terceiro. Os blocos já empilhados o levam a deduzir o próximo.

E dessa forma, uma ponte de se ergue para mim. Uma luz, uma direção.

— Eu quero tentar de novo.

VUUUSH!

Concentra, concentra! Mesmo que doa, mesmo que eu sinta que vou vomitar ou desmaiar, mantenha o rio de memórias fluindo!

— Está indo bem, Calebe! — grita Nádia, já vestindo seu persona. — Continue.

É mais fácil falar do que fazer, né? As memórias recuperadas do último encontro se unem aos outros fragmentos e geram juntas uma nova onda de sensações extasiantes. Além disso, memórias de minha mãe e o do velho Charles também surge de alguma forma.

Aceite o que vier. Aceite o que vier.

Sinto uma profunda angústia e ansiedade. Uma tristeza também. É como uma mão gélida apertando meu peito. Sinto toda a região dos pulmões arder e formigar. Quero chorar, quero parar com aquilo agora. Quero voltar para a cama e nunca mais fazer isso.

Aceite! Aceite o que vier e continue!

A katana de Sashi responde aos meus sentimentos e pensamentos. As chamas violetas reagem às novas lembranças e ficam mais agressivas e malucas. As línguas de fogo criam novas e as novas se ramificam e mais e mais até que uma arvore flamejante inteira se molda atrás de nós.

Ouço Nádia engasgando em algum lugar.

Não fique preso... às memórias.

Me sinto agora em uma montanha de sentimentos, bons e ruins, conforme as memórias vão fluindo por esse rio mental. Vejo as cenas dos meus primeiros dias na faculdade, da minha mãe me dando seu colar.

Também assisto a cenas aleatórias e desencontradas dos meus dias na faculdade, Bernardo e Mica rindo comigo. Nós três estudando, rindo. E então tudo se desmanchando completamente. Mica morta, Bernardo desaparecido. Vejo o velho morto em meus braços, balbuciando palavras.

Abrace esses sentimentos. Aceite o que vier.

Vejo Enrico com olhar de ódio e então da nossa promessa. Carla, ele e eu. Nós prometendo um ao outro com nossos sinos. E é essa lembrança que me conduz de volta ao clímax. Ao acidente das últimas memórias. Todas as outras passaram, e só me restou essas. Procuro me ater a elas, observando-as, sentindo-as. Eu queria ver tudo. Não ia mais fugir de nada.

Aceite o que vier.

Nesse cenário eu via uma larga pista no meio da floresta. Uma autoestrada. A floresta é muito familiar e já a vi outras vezes nas visões que tinha com Jane, o persona de Enrico. Mas agora é diferente.

Antes era tudo preto e indistinguível. Quando tinha essas visões, elas não me revelavam nada de cenário. Apenas uma negritude infinita, não importa o quanto eu corresse. Me sentia sufocado, esmagado por uma escuridão que nunca acabaria. E então Jane me alcançava e então Sashi me protegia, resultando em sua morte.

Todas as malditas noites eu “sonhava” com isso.

Mas essa floresta agora tem cores. Luz, sombra, profundidade. Tem formas, cheiros e sensações térmicas. Como um lugar vivo. Um lugar onde já estive. Por que estou nela de novo? Se já superei essas visões, porque minhas memórias estão me trazendo aqui de novo?

Aceite o que vier. Não questione, não tente interpretar nada.

Me doutrino para continuar sem qualquer julgamento. Ali sou apenas um espectador.

Continuo até onde me lembro ter encontrado o carro, seguindo as marcas de pneu no asfalto. Quando avisto o veículo abarroado, amassado como uma latinha de refri contra uma arvore, consigo ter uma visão mais ampla que minha visão tunelada da primeira vez.

E consigo ver. A criança que rasteja e que não identifiquei da primeira vez era a Carla! Estava ferida e miserável, rastejando no chão até a segunda criança debaixo das ferragens retorcidas.

Eu. Praticamente morto.

Tapei a boca e segurei o horror e as lágrimas. Carla gemia e chorava de dor, mas ela continuava a rastejar até mim.

Aceite... droga... aceite.

E a terceira pessoa é um senhor de quase meia idade, com cabelos ralos e barba bem feita. Vestia uma camisa polo suja de sangue e uns óculos destruídos pela batida. Eu tinha sido arremessado por esse acidente e estava morto a poucos metros de onde o carro parou.

Carla chegou perto de mim e abraçou meu corpo, chorando. As imagens voltam a ficar borradas e o som começava a se distanciar. O cenário ia se desfazendo como pó ao meu redor.

Não! Ainda não!

— Calebe — Carla murmurava palavras fracas e quase sem som. — Sobre...viva... por favor... Eu... vou te proteger. Porque... porque...

Aceite... snif... o que... vier!

Um paralelo doloroso se forma na minha mente ao me recordar da última vez que vi aquela visão. Sashi me olhava com os mesmos olhos e disse aquelas mesmas palavras. Ambas tinham o mesmo rosto, os mesmos olhos, só que de cores diferentes. A voz das duas eram praticamente a mesma em entonação.

E as duas disseram ao mesmo tempo:

 


Porque eu te amo, Calebe.


 

As chamas se estabilizam de repente e formam um anel flamejante ao redor de mim e de Sashi. Sem se extinguirem, sem ramificarem. Uma única corrente uniforme de puro fogo violeta brilhante.

— Conseguiu. Calebe, você conseguiu! — Nádia comemora, largando até seu cachimbo da mão.

Abracei todos aqueles sentimentos e os enfrentei. Abracei as lembranças ruins, as boas. O medo, a tristeza, a raiva, a impotência, o horror, a descrença... tudo isso são parte de mim. São o que sou, do primeiro ao último. Mesmo que doa, mesmo que agora eu entendesse mais coisas, não amenizava em nada essa dor lacerante que estou sentindo.

— IUUUPII!! Conseguimos, Calebe! Deu certo! Consegui... — Sashi vibra e se vira para mim. Em segundos, sua alegria se torna uma amarga surpresa.

Meus olhos ardem, meus lábios tremem e sinto meu rosto inchado. Coriza escorre do meu nariz e meus músculos se retraem. Lágrimas enchem meus olhos.

Simplesmente não consigo parar de chorar.

— Ca-Calebe?

Mas agora eu tenho o controle. Vi tudo, senti tudo. Aceitei tudo o que veio.

E deixei ir.



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