Volume 2

Capítulo 33: Meu boneco de lata... I

                           

CLAP, CLAP, CLAP, CLAP, CLAP!!

Concluo que estamos em uma arena e com várias pessoinhas estranhas nos assistindo. Em um camarote elevado e central, uma criança — e eu só deduzo isso pelo tamanho e a voz —, vestindo nada além de um manto branco com uma faixa cinza com detalhes e inscrições douradas e um pano com três olhos desenhados em cores diferentes que cobre totalmente seu rosto, está parada de pé com os braços abertos.

Seria ele a pessoa responsável por toda essa realidade em que estamos?

— E essa edição é mais que especial, pois contaremos com a presença de todos os nossos Executivos. Por favor, apresentem-se... né?

Assim que ele termina de falar, algumas pessoas aparecem no anel central no mesmo nível que o camarote com uma salva de palmas da multidão. Uma presença esmagadora recai sobre toda a arena.

Alguns rostos são conhecidos, como Nádia e Magic, e os outros não. Os outros personas tinham aparências até bem comuns se eu fosse comparar com as bizarrices que são os pesadelos.

Um deles se veste como um mordomo de terno preto bem passado, porte rígido e elegante, seus olhos azuis e afiados a nos observar através dos óculos quadrados. Bem assustador.

Ao seu lado está uma menininha de pele escura, usando um vestido preto de princesa, joias e decorações frufrus como se fosse uma bonequinha, com um aspecto brincalhão e infantil. Ela saltita com excitação, um sorriso largo no rosto, fazendo balançar suas maria-chiquinha. Totalmente o oposto do mordomo ao lado.

Em seguida, um cara, mais ou menos da minha idade — e o mais comum de todos ali — que veste nada além de uma blusa branca com uma estampa ridícula e calças pretas. O cabelo dele é mais bagunçado que o meu e seu olhar me lembra um assalariado que não dorme a pelo menos uma semana.

Ao lado desse, um rapaz albino — pele branca, cabelo branco, roupa branca — tudo nele é branco. A única coisa que se sobressai em seu visual é uma coroa dourada e brilhante no topo de sua cabeça, além do olhar marrento. Bom, sua roupa, a roupa de um rei inglês de dois séculos atrás, chama atenção assim como sua postura imperiosa, lembrando a própria Nádia.

E por fim, Magic, a pilha de músculos monstruosamente bronzeada e careca, com sua icônica blusa regata, calça esportiva e jeito largado. Ao lado dele está Nymph, suas roupas lembrando um oficial de exército e, ao mesmo tempo, uma sacerdotisa de algum templo xintoísta.

E Nádia, com seu estilo, elegância e poder, tão destoantes de qualquer outro persona. Eles estão lá, todos sentados em cadeiras que lembram tronos, e esperam para o começo do evento.

Mas... o que é o evento mesmo?

— Então, como todos os presentes aqui, comecemos com os primeiros que irão se enfrentar... né?

Mas já?! Sem nenhuma explicação? Sem regras, sem instruções? E como assim, “se enfrentar”?!

Em um painel, vários nomes são roletados, passando rapidamente e, entre eles, o meu nome e o da Sashi. Os nomes vão desacelerando até que para na seguinte composição:

 


CALEBE E SASHI

X

REI DE LATÃO


 

Droga! Eu fui sorteado primeiro?!

De repente, todos os outros que não fossem eu, Sashi e o nosso oponente, desaparecem da arena em um estalar de dedos. Agora estão juntos nas arquibancadas, inclusive Yatsufusa, que fica irado ao perceber que não tinha sido sorteado para lutar contra nós.

Só resta nós e... Roberto.

— Muito bem. Tomem seus lugares para anunciarmos a primeira luta... né? — Ele faz um gesto e os homens de preto vibram. — A primeira luta será entre Calebe e Sashi e o Roberto, o rei de Latão, né?!

Mais gritos.

— Então esse o menino no qual tem se falado tanto ultimamente? — O mordomo mal-encarado comenta de braços cruzados.

— Ele parece ser um fictor comum de segunda geração — observa a menina de vestido preto, torcendo os lábios fininhos.

— É, mas a realidade é que Calebe de comum não tem nada — rebate Nádia com uma baforada de fumaça, a segurar o cachimbo.

— Cuida, viu menino?! Nem pense em envergonhar seu melhor amigo perdendo para esse cara! Um verdadeiro Sigma, cabra macho, não leva peia de ninguém! — Magic bradou de seu lugar com a voz a ecoar como um trovão.

Ah, agora lascou! Com esse cara me cobrando, eu fico nervoso.

— Estou ansioso para ver se ele é tudo isso mesmo ou só conversa — diz o menino com roupa de rei.

— Estão prontos? — O menino de rosto coberto levanta os braços e bate palmas. — Comecem!

Agora não há mais volta. Jogando no centro daquela situação absurda, a única coisa que posso fazer é seguir o roteiro e tenho certeza de que aquele cara está pensando o mesmo.

Começo dando uma boa olhada no que é seu persona: um homem feito de ferro. Seu dorso é um latão enorme, os braços cilíndricos e finos, assim como o pescoço e as pernas, estão grudados nas laterais. Na parte da frente há uma porta de uma fornalha com traços luminosos escapando das bordas, contendo uma luz forte que emana de dentro.

Algo como um funil ou um escapamento de carro feito de ferro brilhante enfeita o topo de sua cabeça no lugar de cabelos. No lugar dos olhos, duas engrenagens giram e, no centro dela, uma luz azul forte e robótica. Seu nariz é longo e cilíndrico e suas orelhas são porcas brotando das laterais da cabeça.

Até agora não tinha trombado com um persona tão... elaborado. Sashi franze as sobrancelhas de leve.

— Vocês podem sentir? — Ele pergunta repentinamente.

Franzi o cenho, sem saber o que ele quer dizer. Mas eu não sei como o poder dele funciona, então preciso me manter para trás. Não posso arriscar ser derrubado em um só movimento.

— Do que você tá falando?

— Tô perguntando se você pode sentir. Todos podem sentir as coisas, não é?

— Tá chapado, meu filho? — pergunto, sem entender nada. — Não fazem teste de drogas nessa empresa, não?

O rei de latão dá de ombros.

— Ah, desculpa. Acho que você não deve conhecer a história, né? Do bonequinho que queria sentir, sem saber que já sentia. Você e seu persona devem ser a mesma coisa.

Do que esse doido tá falando?! Ele tá brincando com a gente?

— Sashi. — Ela vira o rosto para mim. — Vamos terminar isso rápido, certo? Sem dar a chance desse cara fazer qualquer coisa.

Ela sorri.

— Tá certo, Calebe! — Ela leva a mão até o cabo e saca sua katana, libertando as chamas violeta dançantes que se espalham pela arena. — Vamos lá!

Os homens de preto que assistem vibram em espanto. O cabelo de Sashi agora está completamente tomado por suas chamas, adquirindo um tom violáceo pálido e seus olhos são duas labaredas violetas vivas e incandescentes. As chamas se enroscam no fio da espada como serpentes, se espalhando pelo seu corpo e ao seu redor.

— Uou! Quanta Gnosis! — assombrou-se a menininha de vestido preto. — Hihiihihi! Isso vai ser divertido!

— Interessante — murmura o mordomo.

O menino de blusa branca esfarrapada apenas boceja. Já a expressão de Magic fica radiante com a quantidade de fogo liberada da Sashi. O rapaz vestido de rei e Nádia ficam em silêncio com expressões neutras.

— Que presença — diz o Rei de Latão. — Dá pra sentir de longe. Sentir muito bem todo esse fogo.

— Tá na hora de derreter ferro, Sashi! — Faço um gesto de mão, algo que tenho praticado com ela esse tempo que estivemos em São Paulo. — Em um só golpe.

Ela leva as duas mãos até o cabo da empunhadura e avança em velocidade sobrenatural. As duas engrenagens que são os olhos dele se alargam em surpresa quando — imagino — ele perde Sashi de vista.

E então ela surge bem na frente dele, brandindo sua katana com um turbilhão de chamas a acompanhando.

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal!

O Rei de Latão só tem tempo de colocar os dois braços na frente antes de sofrer um golpe devastador de Sashi, que o joga longe contra a parede circular da arena e levanta poeira e pedras. O golpe foi de uma precisão e potência sobrenaturais e é muito difícil aquele rei enlatado ter escapado inteiro disso.

Mas... por que eu não estou certo disso?

— Uou, uou! Isso foi dramático — A voz do Rei de Latão, Roberto, surge da poeira balançando os braços amassados. — Eu não estava esperando por isso, garota samurai. Não, não!

Sashi ignora o comentário e volta a atacar, dessa vez acertando as pernas com um golpe em varredura, que o lança no ar.

— Ourg!

— Vai, Sashi!

Ela chuta forte o que seria as costas do homem de lata e o joga para o ar. Ainda no chão, de cócoras, ela está segurando firme sua katana, concentrando suas chamas no alvo voando acima.

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão!

Ela se transforma naquele fio de pura energia e calor luminoso, uma linha violeta espectral que corta o espaço. Vários golpes e cortes são desferidos em meio ao ar de uma vez com rastros de labaredas e chamas explodindo a cada investida.

Ao cair na arena, Roberto parece uma latinha amassada no meio da rua. Sashi pousa a alguns metros na minha frente, sua katana já na bainha.

Ela... conseguiu?

— Que velocidade incrível! — exclamou a Executiva infantil de vestido, aos pulos na arquibancada.

— Hunf! Nada demais — diz o menino rei.

— Ela está... bem mais rápida que antes — Nádia resmungou para si.

— E então? Acabou? Já posso sair daqui?

Sashi dá de ombros.

— Será que peguei muito pesado com ele? — Ela questiona.

— Rapaz... ele não desapareceu, então...

— Meu...

— ...?!

— Boneco de lata...♪ bateu com a cabeça no chão...♪

BOOONK!

E algo absurdo acaba de acontecer na frente dos meus olhos: a cabeça da Sashi é lançada para trás em um sopapo, como se ela tivesse sido atingida por um soco de algum punho invisível... assim como eu.

— Guaah!!

Nós dois caímos ao mesmo tempo no chão, semiapagados. A pancada é... muito forte! A plateia enlouquece, assim como os outros personas.

Não! Não, Calebe! Não apaga! Não apaga! Se mantenha... consciente!

Pisco várias vezes em tentativas vãs de me livrar da dor, mas é um esforço inútil. Sinto como se um martelo bem pesado tivesse acabado de acerta meu crânio com força e me esforço para conseguir ao menos ficar sentado.

Meus olhos estão ardendo muito, minha visão cambaleia assim como o corpo. Sashi está a alguns metros, ainda nocauteada no chão.

Que... foi que aconteceu?

—Sashi... levanta — resmunguei, quase sem voz. Até as palavras capotam na minha língua. — Le... vanta!

— Levou mais de uma hora para fazer a operação♪ — E o Rei de Latão continua a cantarolar, baixinho. Seus braços vão se ajeitando e se desamassando sozinhos, até tomarem a forma de antes enquanto ele segura a própria cabeça. — Desamassa aqui, desamassa ali para ficar bom. ♪

Ele se levanta, ainda todo amassado nas pernas e no tronco e na cabeça, mas seus braços se recuperam.

— Sashi! — grito mais alto.

Ela enfim acorda, piscando várias vezes e balançando a cabeça sem entender o que aconteceu. É notável que ela também está meio zonza com a pancada surpresa.

— Calebe?! Seu...! — Ela olha para mim com medo nos olhos. Em sua testa está uma marca dolorosamente vermelha, lugar onde ela sofreu o impacto.

Não demora para eu começar a sentir um gosto estranho na boca. Um gosto ferroso de... sangue?! Meu sangue! Estou sangrando pelo nariz, as gotículas vermelhas a gotejar sobre minha camisa novinha.

Que inferno!

— Eu... tô bem, Sashi. Não se preocupa. — A realidade é que estou apenas tentando dar uma de durão, mas aquele golpe na cabeça... podia ter me matado.

Eu não estou nada bem. Uma dor insuportável está irradiando em toda a cabeça, latejando, meu próprio cérebro parecendo que vai vazar por algum buraco. Minha visão rodopia e não consigo ficar de pé.

— O que foi, Calebe? — O boneco de lata pergunta, sua voz distorcendo para meus sentidos deturpados. — Acho que bateu muito forte com a cabeça. Devia ter levado mais do que uma hora de operação.

— O que... você fez?

— Só os fiz... sentirem.

— Dá pra falar sem ser em charadas, corno?

— Calebe — Sashi interrompe. — Temos que continuar atacando.

— Estou fazendo vocês sentirem através da minha própria história — Ele faz uma pose de combate e as engrenagens de seus olhos giram. — Mas então, vamos continuar?

Sashi se recupera e continua a cortar e cortar o Rei de Latão, sem espaço para que ele revide. Cortes laterais, frontais, diagonais... ele não consegue acompanhar todos e é acertado por vários, o ruidoso metal de seu corpo se deformando quando é acertado pela arma letal da Sashi.

A única coisa que ele faz para responder àquela investida é tentar acertá-la com socos simples e lentos, praticamente nada se comparados à velocidade esmagadora da Sashi.

Só que então...

— Meu boneco de lata bateu com os braços no chão. ♪ Levou mais de duas horas para fazer a operação. ♪ — Sashi sofre com um empurrão brusco e a katana sai voando de suas mãos. Ela para de joelhos no chão, seus braços terrivelmente machucados com cortes arranhões e relevos dolorosos. — Desamassa aqui, desamassa ali, desamassa aqui, desamassa ali para ficar bom! ♪

Os braços de Roberto se desamassam e se curam de novo. Posso sentir... o tremor do impacto nos meus próprios braços. Sashi está sendo encurralado pelo poder dele.

Merda!

— Meu boneco de lata bateu com o joelho no chão. ♪ Levou mais de três horas para fazer a operação. ♪ — Um CRECK agonizante é ouvido em algum lugar. No meu próprio joelho!

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaarghh!!

— Calebe! — Ouço o grito abafado dela de algum lugar ao passo que outro som se sobrepõe. O som de metal se retorcendo.

— Desamassa aqui, desamassa ali, desamassa aqui, desamassa ali, desamassa aqui, desamassa ali para ficar bom! ♪

— Merda, merda! Meu joelho! Aaaaaargh!!

— Calebe! — Nádia ameaça avançar, mas é detida por Magic.

— Nem pense em desmoralizar o meu melhor amigo fazendo isso, cumade — diz com olhar sério.

Pressiono meu joelho esfarelado como se eu pudesse, de alguma forma, arrancá-lo. A perna inteira fica elástica, o resto da força a me deixar conforme eu tentava manter o juízo e as ideias em ordem.

— Calebe! — Sashi, mesmo cambaleante, ainda consegue ficar de pé e vir até mim. — Está bem? O que aconteceu...?!

— A música — grunhi, quase sem ar. — Ela... ela é a chave.

— A música... — Sashi repete devagar, ligando os pontos em sua cabeça. — Tudo o que ele cantou nela, nos aconteceu.

— Então, assim que levamos o golpe, ele se recuperou logo depois — completo o raciocínio. — De algum modo, ele está usando isso para nos atacar.

Sashi olha para o Rei de Latão que ainda está parado, esperando nosso próximo movimento com um olhar confiante através daquelas engrenagens.

Isso é mal, estalo a língua. Se levarmos mais uma ou duas dessas, não há como saber o que pode acontecer com a Sashi ou... comigo. Raciocino e observo. Ele precisou que nós o atacássemos e déssemos dano nele para ele causar dano em nós. Nós o atacamos primeiro, ele canta a música e então...

— Calebe — Sashi interrompe meu pensamento. — E aquilo no peito dele?

Uma porta, não é? É só uma porta.

— O que tem?

— E se o acertássemos ali? — sugere. — Quem sabe possamos causar algum dano que ele não possa curar.

— É arriscado demais — respondo. — Até termos certeza do que está lá dentro ou termos mais detalhes do poder dele, vamos nos concentrar na música.

Sashi assente com a cabeça.

— Certo. — Ela pega sua katana do chão, ficando em posição de combate.

— Até que enfim, estava começando a me dessensibilizar com vocês. Por acaso estavam teorizando como seria minha habilidade?

Sashi ri ao brandir a katana.

— Não precisamos teorizar nada porque já descobrimos como sua habilidade funciona. — Ela balançou a espada, as chamas brilhantes e violetas dançando ao seu redor, acompanhando o fio. — Agora não vamos mais cair nos seus truques.

— É mesmo? Está tão confiante assim, samurai?

— Vamos começar, latinha! — Sashi avança com o mesmo vigor de antes, inacreditavelmente.

A plateia explode em gritos e palmas e tambores, lembrando uma torcida organizada. Lá de cima, os Executivos da Mandala reagem de formas variadas. Alguns com surpresa, outros com indiferença e tédio.

Nádia é a única que parece esboçar algum tipo de preocupação. Claro, foi ela quem me arrastou para isso para começo de conversa, seguindo a vontade do velho Charles.

Se você estivesse aqui, velho, como reagiria?

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão!

Sashi golpeia insanamente rápido, sua katana chispando no ar como um borrão violáceo brilhante e sendo apenas visível através do rastro de fogo violeta deixado por ela. O Rei de Latão defende dois golpes com os braços, mas a espada acerta sua cabeça na lateral, onde ficaria a têmpora, vários na região das costelas, vários nas pernas e nos braços.

O persona cambaleia para trás, sem conseguir se defender da Sashi.

É agora que ele vai cantar!

— Meu boneco de... ♪

— HYAAAAAH!! — Sashi desce dos céus com a espada em riste e o acerta em cheio na cabeça, interrompendo sua música. O Rei de Latão cambaleia, desnorteado.

Ela desfecha mais uma sequência rápida de cortes de sacar e embainhar e amassa completamente o dorso do boneco de lata, principalmente aquela porta no peito dele, e o lançam para trás.

Ele cai para trás, mas ainda assim ela não baixa a guarda, sempre mantendo a katana pronta caso ele ameace começar a música.

Conseguimos?! Ele não conseguiu cantar, então nada deve acontecer, imagino com certo alívio.

— Impressionante... urf! Urf! — Ele pigarreia antes de levantar. — Como uma recompensa, vou contar a vocês um segredo sobre os bonecos de lata.

— ...?

— Sabe qual a diferença de um boneco para uma pessoa? — Minhas sobrancelhas oscilam em dúvidas. — Não? Então vou te dizer. — Ele se levanta lentamente, colocando a cabeça torta em um ângulo menos estranho. — Pessoas podem ser completas. Pessoas podem ser o todo, diferente de bonecos. E é isso que minha história conta.

Não posso deixar de mostrar minha cara de confusão. Será que aquele Rei de Latão é outro agente que não tem ciência de que está controlando um corpo irreal? Imagino que o caso de Emma devesse ser mais comum do que julguei de começo.

— Eu tenho várias partes. Muitas partes, mais do que posso contar em minha história. Mas ainda assim, elas todas são eu e eu sou elas. Se o todo não perecer, então o todo sobrevive. O “todo” perdura.

— Dá pra parar de monologar e dizer logo o que isso significa, ô latinha? — resmungo, completamente confuso e irritado.

Ele ri, dando de ombros.

— Como sempre, você tem que sentir para entender e não ouvir. — Sashi fica em posição de alerta. — Meu boneco de lata... ♪

— Sashi!

Sem titubear, ela avança ligeira na direção dele e o golpeia violentamente de baixo para cima no queixo, fazendo a mandíbula metálica do boneco voar com o impacto. As chamas rodopiaram ao redor da lâmina enquanto que um estalo de metal é ouvido.

O som de sua mandíbula quicando no chão da arena. Sashi para atrás dele, com o braço que segura a katana esticado.

Ótimo, Sashi, comemoro com ar de triunfo. Agora ele não pode mais cantar!

— ... bateu com a barriga no chão. ♪

Quê...?

— ...!!

POOOF!!

Sinto uma porrada fantasma e impiedosa afundar minhas tripas assim que ele termina de cantarolar essa parte. Solto uma cusparada de saliva e um pouco de sangue misturado, cambaleando alguns passos para trás tossindo em convulsões.

Quê... como... ele...?!

Cof! Cof! Cof! Cof! Argh! Argh! Arf! Cof!

— Ca... Calebe!

Minha visão piscando e rodando só consegue enxergar a imagem borrada da Sashi ao longe, deitada no chão da arena, se contorcendo em dor. Enquanto isso, o som de sua canção sobrepuja a voz dela enquanto ele cura seu dorso completamente amassado pelos ataques anteriores.

Só que ele ainda está sem mandíbula. Como pode... ele estar cantando?!

— Agora entende, Calebe? — diz sua voz flutuando no espaço como um truque de ventriloquismo. — Eu sou um ser de várias partes. Se arrancar uma, outra se encarregará do serviço.

Enquanto me esforço para levantar, tossindo e engasgando, noto algo pequeno no canto da minha visão se movendo furtivamente no canto da parede. Uma coisinha de pernas minúsculas e em um formato redondo e meio achatado.

Me surpreendi com o som que vem dela, terminando a música que permitia a recuperação do Rei de Latão. Singelos Tic-tac vinham dele, enquanto se esgueiravam pelo pé do paredão circular.

Um... coração?



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