Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 55: Apenas por hora

A claridade ofuscante do sol me fez cobrir os olhos quando abri as portas da enfermaria. O céu estava completamente limpo, e um frio confortável jazia na cidade. Inúmeros aventureiros, comerciantes e cidadãos cruzavam a viela onde saí. A variedade de energias, equipamentos e guardas era abundantemente maior do que a de Karin. Abri os braços e respirei fundo enquanto fechava os olhos. Apesar das dores que tentavam me afligir, eu deixei uma risada escapar. Eu consegui sair vivo da enfermaria mais uma vez. 

 

Como a fluidez da água, eu permiti que a mana alcançasse a minha face, e o Olhar da Aura me trouxe ao mundo mágico. A claridade e a vida do ambiente se foram, e cada aura presente transpareceu. Eu podia dizer que todos tinham uma quantidade considerável guardada de mana, alguns até com a magia mais densa. Os aventureiros de armadura tinham a mana mais bruta, com a movimentação um tanto mais lenta, enquanto os que usavam cajado tinham uma circulação rápida e menos densidade. Seria interessante analisar o funcionamento. Eu poderia melhorar o Olhar da Aura com isso? Desativei meu poder, e fui recebido por diversos olhares curiosos da multidão. 

 

— Você é a figura de um rei agora — disse Spectro. 

 

— Eu sou apenas eu, Spectro. Ainda me vejo da mesma forma.  

 

Seguindo a maioria das pessoas, notei que muitos deles levavam consigo animais com armaduras ou cargas. Ursos com armaduras prateadas, cavalos com pequenas asas que levavam grandes bolsas, lobos negros com armadura branca e dourada. Aproximei-me de um grupo e resolvi perguntas. O líder, mago com três cajados, me explicou que era comum ter o auxílio de animais com potencial de mana no campo de batalha. Era caro treinar o animal escolhido e era incerto que ele conseguisse absorver os ensinamentos do tutor, porém, segundo ele, era uma grande diferença na luta. Os de cargas eram os mais usados, como urso de seis patas e cavalos da montanha, enquanto os Voins eram os únicos de recados.

 

Spectro saiu de mim em busca de ar livre e se espreguiçou. Olhei inúmeras lojas de equipamentos, e a qualidade aqui era excelente. Eu precisava dos melhores equipamentos e sabia que Lotier podia arrumá-los, mas ainda resolvi dar uma olhada nas demais lojas para ter uma ideia do que era considerado normal aqui. O que me impressionou foi o número de bibliotecas que este reino tinha e o quanto de pessoas frequentavam elas. Foi a primeira vez na minha vida que vi uma biblioteca cheia essa hora da manhã. Existia até categorias de bibliotecas. Eu passei por uma específica para estudos “Elementar Básico”, onde consistia apenas livros de água, fogo, terra e ar. Pelo visto, havia também as sessões de feitiços avançados. Essa era frequentada por poucos. 

 

Passando pelas barracas de temperos, notei estar chamando atenção demais novamente. Algumas crianças correram até mim e falaram como a luta foi legal. Uma até deu o soco que eu dei em Miguel no irmão e levou um cascudo da mãe. Não só as crianças, mas a maioria aqui lançara um olhar de esperança sobre mim. Sorrisos, saudações, chamando-me de “Protetor”. Tantos sons de conversas, materiais sendo trocados, armas forjadas ao ar livre, comidas sendo preparadas. Quando de repente, e devagar, eu vi a imagem de Grannus, de Letholdus e do… Engoli seco ao pensar na criatura devoradora de humanos, naquele olhar inteligente, os dentes afiados e as garrafas cobertas de sangue. 

 

Eles podiam arruinar a felicidade que todos tinham, e eu não seria capaz de protegê-los. 

 

Fechei os olhos e balancei a cabeça. Eu podia sentir medo agora, mas… eu aguentaria o peso de tanta gente?

 

Havia bastante a ver, o que me permitiu respirar por hora. Falei com algumas pessoas na feira e recebi um pastel de camarão de graça, até que o Spectro me parou, cruzando os braços na minha frente, trazendo-me de volta aos muitos sons. Movi meu cabelo da frente dos olhos para ver Spectro falar. Ele parecia ter notado meu olhar abatido, mas ficou quieto.

 

— Eu já decidi o que eu quero — pontuou. — Uma armadura de ferro e uma espada. Você viu quantos alimentos decentes tem aqui? Eu quase morri comendo os peixes do Sairon.

 

Quando fui responder, no entanto, empurrei ele para o lado e andei até frente da chamada “Biblioteca dos Auroras”. Mais luxuosas que qualquer outra construção próxima e com duas guerreiras na entrada ela estava basicamente vazia. Eu sempre ouvir falar que o nível Aurora era o divisor de águas. Um degrau abaixo do nível Real e um acima do Dilúculo, a classe de poder mais famosa e requisitada por nobres. Os Cavaleiros Reais eram raros por si só, enquanto os nível Caos podiam ser contados nos dedos. Mas os Auroras eram como um potencial a se liberar, como se alcançar este nível tornasse a aura do indivíduo um diferencial das categorias abaixo. 

 

Droga, eu devia estudar sobre o avanço das classes de aura!

 

— Senhor Kai — disse um homem alto, sem presença, que surgiu ao meu lado. — Você pretende se aventurar na formação de feitiços nesta biblioteca? — Antes de eu responder, ele continuou. — Oh, perdão. Eu sou Raú Hákon, Cavaleiro Real atual do reino sete.

 

— É um prazer — falei, rapidamente me curvando. — Infelizmente meus conhecimentos sobre feitiços são… precários. — Me ergui, olhando nos olhos dele. — Eu teria que estudar mais do que qualquer um. Por que há menos pessoas nessa biblioteca?

 

— Feitiços não são nada mais que estudos colocados em um papel — Seus olhos, tranquilos, foram para a biblioteca. — Contudo exigem níveis de controle para compreender e fazer uso de cada um deles — Ele olhou para mim. — Agora imagine um livro onde a instrução não está completa e outro, onde o feitiço está exposto de forma detalhada. Qual você desejaria? 

 

— Certamente o que contém os detalhes — respondi, relutante, percebendo que respondi a minha própria pergunta. — Mas me parece inútil tentar aprender um feitiço incompleto. Eu precisaria de algo feito e testado, onde houvesse instruções para seguir. 

 

— Isso é o que torna essa biblioteca, e os Auroras, interessantes. Subir o nível da própria Aura é entender o que além do físico, entender que a mana — Sua aura incrivelmente densa, que fez meus olhos se arregalaram, surgiu. — pode ser usada de outras formas. Eu vi sua luta com Miguel e fiquei fascinado. Tanto potencial em magia e no físico. Se não fosse o desperdício colossal, você venceria com certa facilidade ao lado daquela invocação. 

 

Sua aura se acalmou, e eu mal percebera que meu coração tinha acelerado.

 

— É provável que nos encontremos novamente — disse ele, virando-se de costas. — Sendo um representante, pode ser que consiga um acesso a este lugar. 

 

Dando-me um sorriso tentador, disse a mim mesmo que voltaria para cá em breve. Aprender mais feitiços, estudar sobre o funcionamento da mana, aperfeiçoar o que eu já tinha e tentar, de alguma força, elevar o meu físico. Eram tantas coisas. Por um lado, eu ansiava por treinar e ficar mais forte, mas pelo outro eu só queria esquecer tudo isso. Enquanto andava, dei o meu melhor para deixar qualquer pensamento no canto mais profundo da minha mente. Eu teria que pensar nisso depois, por hora…

 

Eu dei três batidas na porta de casa.

 

A porta foi aberta e uma pequena bola de metal veio de encontro ao meu rosto. Girando o braço para fora, agarrei o ataque da minha irmã.

 

— Boa tentativa, Emy — falei, e ela sorriu com a sobrancelha tremendo. — Sinto um cheiro agradável. Mamãe fez o almoço?

 

Emy abriu a boca para responder, mas Spectro surgiu, levando toda a atenção da menina, que o cutucava impressionada. Enquanto os dois baixinhos se conheciam, eu entrei em minha nova casa. Era grandiosa. A sala tinha uma grande lareira de tijolinhos, um sofá branco e espaçoso com algumas almofadas e um cinza, com couro peludo, uma pequena mesa de vidro com alguns porta retratos e uma de madeira com duas bandejas de frutas. O chão era macio, como se houvesse um tapete por ele todo. Fiquei boquiaberto quando entrei. Emy me levou até a cozinha, onde Kanro e Amice cozinhavam juntos; que era três vezes maior que a da fazenda.

 

A mesa estava cheia de especiarias. Algumas carnes, verduras cortadas em cubos, frutas fatiadas e, pelo menos, oito temperos. Eles usavam aventais e luvas para cozinhar, e eu não pude ficar de fora. No meu, dizia “temperador”. Lavei as mãos antes de começar e logo busquei mais alguns ingredientes que Amice pediu, depois três facas e duas pedras de amolar. 

 

Nesta tarde, eu poderia dizer que minhas habilidades culinárias melhoraram exponencialmente. Kanro e Emy brincaram, mas eu — e o Spectro, talvez — prestei atenção no que Amice fazia. Utilizei três panelas no fogo ao mesmo tempo por precisar mexer o alho, os legumes e cozinhar a carne. O suor era cada vez mais visível em minha testa devido ao vapor, então eu busquei rapidamente uma toalhinha. Quando Amice terminou de preparar os frutos do mar e Emy os legumes, Kanro pegou a forma de vidro, juntou os ingredientes e colocou no forno. 

 

Preparamos um enorme banquete para comemorar a minha volta, repleto de carnes marinhas, macarrão com queijo, sucos, frutas frescas e pimentas. O almoço com eles me trouxe um mar de lembranças boas, eu pude me deixar rir sem ter que me preocupar com nada. Amice havia virado uma líder e professora com sua magia de cura, ela cogitou até mesmo em tentar me ensinar a criar algumas poções. Kanro estava aprendendo a usar armas marciais, segundo ele, dominar todos os tipos era útil, pois podia encontrar uma forma de lutar que venceria a anterior. Emy usava o incrível elemento ar com oito anos, me impressionava ela querer me superar. 

 

A casa foi oferecida pela rainha Alyssa para ter meu pai do reino sete como capitão Aurora. Kanro disse que a primeira proposta era ainda maior, mas ele e a Amice queriam só um lugar confortável. Mais tarde, nós jogamos “Derrube o rei”, em que eu perdi todas as partidas. Não entendi como funcionava, mas foi divertido. Consistia em juntar dez cartas no nível “Sombra” para derrotar a “peça do rei”. 

 

A noite caiu depressa, e eu me senti grato por estar com eles.

 

O banheiro era volumoso o suficiente para que eu pudesse fazer flexões e polichinelos. A pressão da água no começo quase me jogou no chão, mas com um pisar firme eu resisti. 

 

Descendo a escada com a toalha no pescoço, fui recebido por uma rajada de ar gelado da janela. O inverno logo mostraria sua força. Peguei as madeiras que supus serem para queimar e joguei na lareira. Conjurei chamas e o fogo fez seu trabalho, até que ouvi alguém se aproximar. 

 

— Tenho uma possível proposta para você — disse Kanro, enquanto sentava no sofá. — Ainda bem que acendeu — Ele esfregou as mãos.

 

Virei para ele, logo sentei ao seu lado.

 

— A Academia Central G-Kliwell é famosa, rígida, promissora — Nossos olhos se encontraram. — Eu possuo um leve vínculo com a diretora, e você como atual representante seria como um alavancar para sua entrada. Lá tem bibliotecas próprias, arenas de duelos, academia para os estudantes. Seu próprio quarto, dependendo. Raramente ocorrem expedições fora para treinamento dos alunos. Creio que se formos juntos lá, podemos conseguir te matricular. Claro, estando no sétimo mês do ano você teria que estudar muito mais do que qualquer outra pessoa.

 

Eu teria que estudar de qualquer maneira, então a oportunidade “caiu do céu”. Era apenas uma chance, mas se eu conseguisse entrar, teria ainda mais recursos para me preparar para servir Lotier e batalhar contra, talvez até ter uma chance, um ritualista. O que me levou a pensar qual era o objetivo deles e quanto tempo eu realmente tinha. Se fossem atacar e se revelar para o mundo, desafiar os reinos, eles teriam de estar preparados para uma guerra em grande escala. E se realmente estivesse… Eu não me via disposto a lidar com uma organização inteira, eu morreria entre os fortes antes de conseguir atacar! 

 

— Eu adoraria começar a estudar — falei, deixando um sorriso sair. — Preciso melhorar meus conhecimentos sobre estilos de luta, feitiços, controle de mana. Temos realmente chance de conseguir-

 

— Ótimo! — Ele ficou de pé. — Amanhã vamos fazer sua matrícula! — Kanro seguiu andando.

 

— Ei! — Ele virou para mim. — Onde eu durmo?

 

Kanro me levou até o andar superior, e abriu a porta larga de madeira para o meu quarto.

 

— Fique à vontade, campeão. 



Espaçoso. Cerca de duas vezes maior que o meu quarto anterior. Havia uma cama já arrumada próxima a janela fechada, um guarda roupa que eu provavelmente nunca usaria com plenitude e uma mesa de madeira com uma cadeira em frente a outra janela. Coloquei minha toalha sobre o móvel e vi Spectro andar pelo quarto. Sentei no colchão mais macio que o comum e abracei o cobertor, e o goblin logo pulou e abraçou a outra parte. Ajeitei o travesseiro e levantei a janela, depois sentei sobre ela. 

 

Alguns meteoros cruzaram o céu estrelado, e a essa hora da noite ainda havia uma certa movimentação nas ruas. Deixando o ar fugir, eu falei:

 

— Eu queria que fosse assim todo dia — Direcionei meus olhos para o Spectro. — Sem essa tensão que me aflige todos os dias — Joguei-me na cama. — Não acha?

 

— Nós não vamos meditar antes de dormir? 

 

— Não. Sem treinos, sem meditar. Sem nada — Cobri meu corpo, deixando o calor fazer o meu conforto.

 

— Tudo bem — Spectro voltou a mim.

 

Apenas por hora, eu poderia finalmente descansar.

 



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