Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 54: O soar do relógio

A cama era fofa, aconchegante. Sentir meu corpo afundar sem o menor esforço foi uma das melhores sensações que tive desde que cheguei. Haviam usado magia nos meus membros para retardar a dor e diminuir a exaustão, porém viram o corte de Emeru e solicitaram um curandeiro especializado e ferimentos feitos por armas mágicas. Disseram que ainda havia vestígios de um tipo de fogo “desconhecido” estático na minha perna, que de alguma forma parou de corroer minha carne. Gina disse algo parecido. O curandeiro de Lotier me ordenou, no mínimo, duas semanas de descanso antes de agir daquela forma novamente. Meu corpo não resistia ao excesso de magia usada de forma inadequada e o esforço físico além do que os músculos podiam suportar; mesmo que por apenas cinco minutos. Meus músculos estavam relativamente rasgando, enquanto minha aura corria um risco de perder a capacidade de armazenar mana. Quando fui deitar em posição fetal e chorar, no entanto, Lotier e Fent entraram.

 

 — Ferimentos de aventuras anteriores… — disse o Rei, animado. — Isso era parte do “mostrar que valeu a espera”? E o que era aquele goblin? Ele não parecia uma invocação. Vocês conversavam? 

 

Fent, com uma sobrancelha tremendo sozinha, disse:

 

— Podia ter acabado pior. Fazer mal uso de uma quantidade relativamente grande de magia para sua aura e arriscar toda a batalha em um “ataque final” não era o combinado! No que você estava pensando? E no que você — Fent olhou para Lotier. —, o rei, estava pensando com todo aquele suspense de meses? Eu não posso tirar o olho de vocês por um curto tempo!?

 

Sorri, sem graça, e deixei que Spectro saísse, atraindo olhares curiosos de ambos e ignorando a bronca de Fent. A aura do goblin estava abatida, pouca energia podia ser sentida. Spectro tentava usar apenas o necessário de magia para aparecer e se manter de pé, mas, assim como eu, seu uso era ineficiente. O rei se aproximou devagar, seus olhos analisaram minuciosamente o meu amigo mágico. 

 

— Eu preciso que saibam de algumas coisas antes que eu comece a, de fato, representá-lo — Os três me olharam, e me remexi na cama. — Esse é o Spectro. E sim, ele não é uma invocação qualquer. Na verdade, está longe de ser uma.

 

Com o pouco tempo que Lotier tinha, pedi para sentarem e resolvi contar parte dos ocorridos. Comecei pela minha “primeira aventura” com o Minotauro em Karin, depois falei do tempo em que estive com os Coletores, sumo grupo que mudou minha vida. Enquanto falava, o momento em que Cirlan salvou minha vida veio como um clarão em minha mente. A maldita criatura da fronteira, o Laiky, devorador de humanos, trouxe um ódio profundo ao meu âmago. Pois eu sabia. Eu lembrava daquele olhar. Ele me considerou vivo, ele falou que eu estava vivo. Lotier e Fent se referiram a ele como “Laiky evolutivo”, único encontrado e que foi capaz de fugir. 

 

Contei sobre o ataque à minha cidade natal, sobre o goblin que destruiu minha casa na fazenda e me trucidou em uma luta. Omiti o fato de ter sido salvo pela voz, eu sentia que a hora de articular isso com o fato de eu ter sobrevivido seria outra. Eles eram bons ouvintes, faziam um comentário ou outro quando eu parava para me hidratar. Fent, inclusive, anotou quando falei que treinei com Alatar e recebi uma adaga de metal de Arvid. Meus meses de treino com Sairon e Breaky e quando aprendi a usar as chamas a partir do ataque do Letholdus, que era considerado um ritualista louco. O que mais deixou Lotier intrigado, no entanto, foi ter entrado na terra de Balnor e ter enfrentado Emeru. Segundo o rei, havia inúmeros relatos de um inimigo capaz de “criar” espantalhos do chão através de uma enorme espada de chamas mágicas esverdeadas. Fui alertado para ficar longe das terras de Balnor e parabenizado por enfrentar um inimigo tão ardiloso sozinho. 

 

Mas era claro que eu esclareci.

 

Fent alertou Lotier sobre a hora de ir e se despediu, e Spectro sentou na borda da cama, cansado. Lotier se levantou, seus olhos fixos em algum canto da sala. 

 

— Infelizmente eu tenho uma reunião entediante-

 

— Precisa — Fent interrompeu.

 

— Com os reis — Lotier bufou. — Tenha seu tempo de descanso, eu vi que o seu relatório médico está crítico. Quero que você treine para não se autodestruir e evite conflitos em que possa morrer — Seu semblante sereno. — Busque se aperfeiçoar, em breve enviarei meu Voin a você para iniciarmos seu treinamento como representante. Por hora, gostaria que estudasse por fora até que eu encontre seus livros. Em uma Academia. 

 

— Espera — falei, confuso. — Tem um treinamento para ser representante?

 

— Não exata-

 

— Sim — Fent interrompeu de novo. — mas seu querido rei queria que você ficasse forte através de aventuras perigosas e manter o suspense para todos. Agora você é o único que precisa se preparar para os eventos futuros. Agora, vamos!

 

Lotier andou até a porta atrás de Fent, mas virou rapidamente para mim.

 

— O capitão dos Auroras gostaria de falar com você — O rei deu uma piscadela e saiu.

 

Nesta hora, ao ver o rei sair, meu coração acelerou. Sentei na cama, minha respiração acelerava. Passos se tornaram mais altos. A energia que vinha era confortante, poderosa e calorosa. Minhas mãos começaram a formigar, e eu quase me pus de pé. A porta se abriu lentamente, e meus olhos se arregalaram, embaçando a minha visão. Um homem alto e barbudo se apoiou na porta, uma mulher ruiva com um sorriso maravilhoso no rosto ficou ao lado dele e uma criança correu em minha direção enquanto gritava o meu nome. Minha cabeça latejou de dor quando ela pulou em meus braços, mas eu apenas a abracei firme. 

 

Amice veio em seguida, nos abraçando. Kanro foi o último e, com seus braços mais malhados que a última vez que o vi, nos apertou com um grande sorriso. Cada segundo foi paliativo e alarmante. Eu sabia e havia presenciado diversos perigos afora e, de alguma forma, o tempo com eles parecia mais impagável do que antes, como se eu pudesse sair e nunca mais sentir o amor deles novamente…

 

— Eu sentia sua falta, campeão. Pelo visto você não pegou leve com suas aventuras. — Spectro tossiu enquanto ele falava, e todos olhamos para ele. — Essa é sua invocação? 

 

— É o goblin que luta muito — disse Emy, imitando os golpes da luta. 

 

— Quem é ele, filho?

 

— Esse é o Spectro, meu amigo. Ele me acompanhou nas missões e me salvou diversas vezes — dei um olhar agradecido e tranquilizador para Spectro. — Eu e ele meio que andamos juntos agora. 

 

— Bem-vindo a família — disse Kanro, e eles se cumprimentaram. — Você certamente deve ter a ver com o fato do meu filho usar magia e — Ele olhou para mim. — representar um rei. 

 

— Sim, eu vou contar quando tiver tempo. Eu fui instruído a descansar por hora, os curandeiros do rei disseram que vou levar alguns dias até poder fazer alguma atividade de novo. Eu queria bastante ir conhecer o reino. Do céu ele parecia enorme. 

 

— Sabe, tem muitas academias aqui onde você pode mostrar a sua força — Kanro se aproximou com um sorriso malicioso. — Um representante fazer uma demonstração de força junto comigo pode-

 

Amice afastou meu pai com uma leve rajada de mana, e se aproximou de mim.

 

— Venha quando você se recuperar — Minha mãe beijou minha testa, e eu me senti explêndido. — Você tem se alimentado bem? 

 

Amice ficou preocupada ao saber que eu precisava caçar meu próprio alimento em algumas ocasiões, comendo sem temperos no início e passando fome quando não encontrava nada. Apesar dos alimentos de Sairon e Breaky serem acompanhados de um amargo dominante, eram nutritivos e auxiliavam no ganho de energia física e na recuperação de mana. Depois que comprei o livro “Como criar temperos quando se está perdido na floresta” as refeições se tornaram interessantes. Nós apenas rimos e conversamos nas próximas horas sem nem ao menos ver o tempo passar, até que a noite caiu. Eles estavam curiosos para saber como eu aprendi e desenvolvi aqueles ataques, mas optaram por aguardar. Emy tinha começado a frequentar uma escolinha e já era a segunda melhor no ranking de estudos. Sendo o exemplo que eu ainda iria me tornar. Eu estudei em apenas uma época da minha vida. Parecia fácil. 

 

Kanro comandava várias academias de Alyssa, a rainha do reino e mãe de Bruno. Amice ensinava jovens a entenderem seus poderes curandeiros, a magia de cura era realmente diferente de usar a mana normalmente. Emeru se regenerou passivamente em combate com a energia da espada e conseguia usar o elemento fogo aprimorado e invocar, eu achei, espantalhos. Eu poderia alcançar um nível assim? Pressenti tempos de estudos se aproximarem. Recebi abraços na despedida e um bilhete com o endereço da casa para quando eu melhorasse. 

 

Spectro disse que os adorou, e eu não me cansava de falar sobre como eram incríveis. Eu e o goblin começamos a conversar sobre os pontos que deveríamos melhorar na luta contra Miguel, mas passos próximos, quase imperceptíveis, surgiram na direção da porta. Sem o olhar da aura, eu senti meus pelos eriçarem, e Spectro preparou suas garras. Um ar gelado entrou pela janela e balançou os cabelos de Ellie assim que ela chegou à porta. Encarei o goblin por um momento e direcionei meu olhar a ela, dizendo que podia entrar. Em passos lentos, Ellie se aproximou, suas bochechas levemente coradas.

 

— Eu trouxe a janta — Ela silenciosamente colocou o prato sobre a mesa e puxou uma cadeira ao meu lado. 

 

— O-obrigado — falei, Spectro, basicamente, estava paralisado. — Spectro — Meus olhos fixos nos do goblin. —, vai dar uma voltinha. 

 

— Oh, sim — Ele se levantou e se curvou para mim. — Grande Mestre, estarei nos arredores buscando afastar os perigos do senhor.

 

Marchando, Spectro foi em direção à porta, fechando-a com seus olhos cerrados em mim na abertura cada vez menor. Apesar das dores no abdômen e na lombar, além da exaustão, eu consegui me sentar. 

 

— Como você esteve? Eu dei uma olhada nas notícias. Seus avanços continuam me surpreendendo — Minha voz soou com fluidez. Eu realmente estava feliz por ela, valeu a pena tentar ler o jornal em cima de um dragão. — Me conte um pouco. 

 

— Os treinamentos foram direcionados para uma certa competição de espadas — Ellie pegou uma de minhas batatas, um leve curvar surgiu em seus lábios. — Uma que contava com a presença de um cavaleiro Real. Fui derrotada no último duelo, o nível de poder dos competidores era impremeditável, magias comuns usadas de maneiras únicas. Você gostaria de ter ido.

 

Quando fui comentar, no entanto, ela continuou:

 

— Eu li sobre um certo — Ellie pausou, e seus olhos encontraram os meus. — lâmina de fogo na cidade de Etin. — Impossível. Como ela poderia saber? — Primeiro eu pensei: como ele poderia usar magia? Impedir inúmeras criaturas com uma onda de chamas foi — Ela pausou. — deslumbrante. Porém representar um rei e ter uma invocação que luta em perfeita sincronia com você- — Ela olhou para a porta. — Ele era mesmo uma invocação?

 

Ellie comentou como foram os treinos nas academias de Karin e que, dado o evento dos representantes, eles vieram para cá para competir contra outras academias famosas. Segundo ela, o suspense de Lotier foi mais complicado do que a cidade entendia. Era um rei sem um representante. O pai dela, Hiroki Higasa, agiu como segurança de encontros diplomáticos duvidosos. Os países ao redor realmente odiavam os reinos. Me perguntei o quão pior a relação com Balnor era. Falei de minhas experiências nos meses de treino com dois malucos fortes, deixando-a levemente impressionada em alguns casos. Ela estava mais expressiva que a última vez, eu não precisava do Olhar da Aura para saber que ela estava mais feliz. Seu sorriso, seus gestos, sua leve risada. Ainda que o tempo tivesse passado, eu ainda ficava um tanto eufórico perto dela. Era diferente do meu nervosismo de quando achava a Ellie apenas muito bonita. Ela era… muito legal. Essa era a parte mais bonita nela. 

 

Porém o relógio bateu meia-noite, e eu fiquei agradecido por rir tanto hoje.

 

— Eu espero que você tenha praticado minhas lições — disse ela, confiante.

 

— Claro que pratiquei. Talvez eu esteja até melhor que você atualmente.

 

— Você ainda tem muito a que refinar nas suas técnicas e magia, representante — Ela se pôs de pé. — Eu pude estudar sua luta contra o Miguel. Você ficou um pouquinho — Ela articulou um espaço pequeno entre o indicador e o polegar — mais forte. 

 

— Olha só, isso de força — imitei o gesto. — foi o suficiente para colocar você contra a árvore. 

 

Um momento de silêncio. 

 

— Eu senti sua falta — Meu coração começou a acelerar, meus olhos perdidos nos dela. — Eu quero conhecer mais a fundo sobre você. 

 

Ela fechou os olhos por um instante, suas bochechas coradas. 

 

— Você pode, mas — Ela colocou a mão em meu esterno, deitando-me contra a cama. — vejo que está inapto a sair da cama. — Ela aproximou o rosto até nossos lábios quase se tocarem. — Deixa que eu faço tudo.

 

 

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O cocoricar do galo tirou-me do sono profundo, trazendo uma leve dor a minha cabeça e aos meus ouvidos. Virei-me na cama, pus o travesseiro em minha cabeça e o galo fez seu canto novamente. Era ótimo acordar desta maneira na fazenda. Essa noite com a Ellie foi incrível. Espere, alguém teria nos ouvido? 

 

Eu podia ser preso por isso? Não, calma. Spectro estava de tocaia.

 

Levantei devagar ao sentir o cheiro de queijo quente e ignorei o meu possível crime. O quarto estava fresco, o sol entrava pela janela aberta. Em cima da minha mesa jazia um imenso café da manhã acompanhado de três grandes garrafas cheias de água. Comi e bebi além da conta, até o meu estômago estufar. Eu tinha que me recuperar com a maior velocidade possível, mesmo que depois desta noite eu mal quisesse acordar.

 

Grunhindo de dor, eu me levantei, sentindo minha barriga pesada. 

 

Minhas habilidades atuais eram insuficientes para vencer, para lutar, para representar. A luta com Miguel foi rasa, meu estoque de magia acabou em poucos minutos. Mais um pouco e teria acabado da pior forma.

 

Parecia que minha vida se resumia a treinar.

 

Deixando um suspirar de derrota sair, eu ri. Aqui era seguro e eu podia treinar sob os cuidados de um rei. Refinar minhas técnicas atuais e aprender novas levaria mais tempo do que eu gostaria ou tinha, mas era inevitável aos meus olhos. Antes de pisar fora deste reino, eu iria me fortalecer, entender os meus poderes. Trabalhoso. Eu tinha que estar à frente dos outros, avançar duas vezes mais rápido que qualquer um. Representar um rei era-

 

Não, eu tinha limites, e talvez devesse considerá-los mais. 

 

Breaky e Sairon conseguiram ver a minha luta?

 

— Saudações, Kai — Fent surgiu na porta com uma agenda nas mãos. — Vim apenas me certificar que você estava vivo. Vejo que estava um tanto… esfomeado. 

 

— Bem, não vou negar. Lotier disse para eu me preparar, mas como será daqui para frente? Reuniões, missões, treina-

 

— Descanse por hora, Kai. Você ficou bastante tempo sem ver sua família — Fent lançou um olhar calmo. —, e eles são bem mais importantes que qualquer treino. Nós vamos enviar um Voin quando for a hora. Tenha certeza que muito estudo e treino o aguardam.

 

Spectro, que parecia um anão perto do assistente do rei, chegou ao lado de Fent enquanto comia um bolo. 

 

— E guarde este… companheiro. Por algum motivo ele fez as enfermeiras prestarem atenção nele nesta noite.

 

Eu e Spectro trocamos olhares rápidos, e eu me esforcei muito para evitar rir.

 

— Eu nem posso imaginar o porquê. 

 

 



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