Volume 1
Capítulo 8: Círculo Azul
As casas feitas de madeira assemelhavam-se àquelas construções antigas sobre o chão árido presente nos filmes de faroeste. Contudo, alguns prédios, carros e poucas residências modernas lembravam que o lugar ainda pertencia aquele século.
Os nativos olhavam com desconfiança os jovens que passeavam despreocupados, turistas eram raros naquela vila desértica.
Bel guiava-se por seus instintos no local, sentia os odores mais próximos e os barulhos mínimos que conseguia, avaliava tudo que podia, uma partida em um círculo azul atraía jogadores mais experientes, por consequência, armadilhas melhores.
— Ah, qual é? Vai ficar desse jeito? — Bel observava o carrancudo ao seu lado.
Gabrio permanecia em silêncio, lendo e relendo as habilidades para não errar quando de fato começasse.
O aplicativo emitiu a notificação assim que chegaram.
AVISO!
Uma partida vai ser iniciada neste local!
Tempo de início: 2 min
Deseja participar?!
Sim ou Não
— Você tem duas opções, certo? — disse Bel, continuando com sua investigação. — O aplicativo permite que você recuse uma vez a sua participação, por isso, não deixa saber que tipo de partida vai ser. — Parou e abaixou-se tocando o chão e levando as pontas dos dedos ao nariz.
“Já recusei uma hoje...” Ele relembrou das palavras dela no trem. “Finalmente, aquela loucura começava a fazer sentido.”
— E o que são essas cores dos círculos no mapa?
— Representam as dificuldades — falava olhando para o tempo de início —, o amarelo significa fácil, o azul é o médio, o vermelho é o difícil e o roxo... — continuou sussurrando. — Bem... você deve evitar o roxo a todo o custo, ainda é muito perigoso.
“Pela forma que ela está dizendo isso.” Gabrio estremeceu só de imaginar.
— E por que um círculo azul? — perguntou ainda emburrado. — Eu mal consegui vencer o amarelo.
— Você é um Expert — explicou apontando a direção que deviam seguir. — Participar de níveis mais baixos é um desperdício para você.
— Sério?! E quais as vantagens disso?
— Sua pontuação nos jogos é dobrada por usar duas habilidades. — Fez sinal com as mãos para que parasse. — Círculos amarelos são bons para ganhar experiência, mas rendem poucos pontos.
— E como funciona a pontuação nesse jogo?
— É muito ilógica! Não me faça te explicar isso agora — resmungou irritada. — Só se mantenha entre os campeões e tudo vai dar certo.
“Paciência não é uma virtude dele”, pensou Bel, analisando sua expressão frustrada cada vez que não recebia a resposta desejada.
Por ordens da ruiva, ambos se aproximaram da estátua da mulher que segurava um bebê no colo, possuía cerca de quatro metros de altura e a pintura de suas vestes azuis refletiam no clima ensolarado. Aos poucos, outras pessoas começaram a circular o local.
— São jogadores — informou ela, com seu olhar fixo na estátua.
— Por que tem tantos aqui?
— É possível supor qual vai ser o tipo de jogo avaliando o tamanho do círculo, cenário e o clima — falava prendendo os cabelos com o lenço —, mas nem sempre dá certo, então a experiência ajuda muito e um bom ponto de partida mais ainda.
— Aqui é o melhor local pra iniciar o jogo — concluiu ele, seguindo com os olhos alguns dos jogadores.
Bel apenas assentiu contente por outra dedução perfeita.
Gabrio fitava as várias pessoas ao seu redor, a maioria parecia tão comum, de longe, jamais imaginaria que fossem participantes de um jogo absurdo. Sentiu um leve puxão na manga do casaco, Bel indicou erguendo o celular que o momento de aceitar a partida havia chegado, poucos segundos depois, a notificação veio.
Bem-vindo a Partida!
Reúna os 03 anéis e os proteja enquanto tiver tempo!
Não há limite de campeões!
O tempo não é seu único inimigo.
Tempo restante: 35 mim
Boa Sorte!
Os moradores encaravam assustados as dezenas de turistas aglomerados ao redor da padroeira da vila e, em um segundo, todos se espalharam correndo em várias direções diferentes.
— Dark, vem! — gritou Scarlet, o arrastando pelo braço.
O guiou até uma pequena casa de madeira, as tábuas enegrecidas denunciavam o abandono do local, a porta trancada foi facilmente rompida por seu empurrão, estava vazia, apenas o cheiro de mofo e madeira podre o preenchiam.
— Você entendeu o que tem que fazer? — perguntou ela, com sua voz completamente fanha. Scarlet apertava o nariz com ponta dos dedos na tentativa de amenizar seu sofrimento com o fedor do lugar.
— Encontrar os três anéis e continuar com eles até o tempo acabar — deduziu rapidamente.
— Isso! Estamos em um jogo de caça e proteção — explicou ainda pressionando o nariz. — A grande diferença do azul para o amarelo é essa, o fato de existir partidas que não tenham monstros e nem limite de campeões, mas todos jogadores são inimigos uns dos outros.
— Ou seja... não vai ter anéis suficientes pra todos — concluiu ele, começando a entender a dinâmica cruel do jogo.
Gabrio engoliu em seco, lutar contra outros competidores parecia ser algo difícil.
— Não se preocupa. — Tentou acalmá-lo percebendo sua respiração alterar. — Por sorte, estamos em uma partida simples do círculo azul.
— Onde vamos encontrar esses anéis? — perguntou ele, respirando fundo, em busca de espantar a tensão.
Scarlet pensava de olhos fechados, colocou sua audição aguçada em busca da informação que precisava.
“Olha como brilha...! Quem são esses malucos...! Socorro...! Esses desgraçados...!” As vozes surgiam de todos os lados. “O que é isso?” Escutou a mulher. “Surgiu do nada.” Ouviu claramente o homem.
— Encontrei! — relatou ela, indicando a direção.
Gabrio a acompanhou seus passos apressados para fora do casebre decrépito.
Scarlet correu na direção da casa amarela e, sem delongas, chutou a porta a partindo em pedaços. Gabrio apareceu em seguida, percebeu no canto da sala a mulher de cabelos pretos se escondendo atrás do rapaz de pele bronzeada, com as mãos trêmulas, ele erguia a faca de cozinha na direção da porta arrombada.
— O-o... q-que... — O rapaz tentava compor uma frase, mas sua língua travava.
— Me entrega o objeto brilhante — pediu ela, com calma, estendendo a mão.
A mulher jogou no chão algo que segurava, o objeto escorregou próximo ao pé da ruiva, era um pequeno anel que emitia a luz azulada.
— Foi mal pela porta — disse ela, ao pegar.
Bel virou de costas e saiu correndo.
— Fujam agora dessa cidade, as coisas vão piorar — alertou Gabrio, na direção do casal.
“Eu sinto muito...”, pensou ele, encarando seus rostos em pânico. Já esteve daquele lado, sabia exatamente o que estavam sentindo.
Do lado de fora, Scarlet concentrava a audição do mesmo jeito que antes e, de modo casual, escolhia a casa e a invadia quebrando as janelas, portas ou qualquer coisa que servisse para entrar.
As pessoas encolhidas e apavoradas eram comuns dentro de cada residência.
— Isso que vamos fazer o jogo todo? — perguntou ele, após sair de mais uma casa. — Invadir e amedrontar pessoas?
— Se quiser vencer... sim! — respondeu duramente. — Isso é só o começo.
Na tentativa de ignorar os civis, Gabrio apenas esperava do lado de fora.
— Aqui. — Ela depositou os três anéis na mão dele. — Proteja isso, vale sua vida.
O aplicativo bipou.
O jogador conseguiu 03/03 anéis!
O tempo não é seu único inimigo.
Tempo para o fim: 23 mim
— Achar os anéis é a parte fácil... — disse ela, dando um largo suspiro desanimado. — Vamos... eu disse, é um jogo simples.
Um barulho de pneus riscando o chão chamou a atenção, a viatura da polícia parou de repente os bloqueando.
— Parados vocês dois! — advertiu o policial, apontando sua arma.
O vandalismo dos recém-chegados saiu do controle, por consequência, a segurança local começou a agir. O jovem policial tremia com a pistola erguida na frente da viatura.
Scarlet continuou andando, sem desviar da direção, esticou as mãos e as adagas surgiram.
— Espera! O que vai fazer? — Gabrio a segurou pelo ombro.
— Ele tá no meu caminho — rebateu fria.
Os olhos dela encararam sua mão e depois seus olhos, Gabrio a soltou sentindo uma sensação estranha, ou melhor, medo.
— Pra trás! Solta as armas! — ordenou o policial, ao vê-la chegar perto.
Bam! Bam! Bam!
O policial atirou percebendo que ela não iria recuar, suas balas se chocavam na testa da ruiva e caíam amassadas no chão, sequer arranhavam, mas continuou atirando.
— O que é você?! — bramiu abismado, descarregou nela toda a sua munição.
Scarlet se aproximou do homem e levantou a adaga, desceu a arma suavemente cortando o ar.
O policial fechou os olhos tremendo, porém não foi atingido, atrás dele sua viatura se partiu no meio.
— Some daqui — disse Scarlet, passando por ele.
O jovem fardado correu coagido pelo desespero.
Gabrio a observava boquiaberto, por pouco não fugiu também quando ela o encarou de longe.
“Talvez um jogo desse calibre ainda seja muito cedo.” Bel refletiu ao sentir ele cada vez mais apreensivo. “Acho que criei expectativas demais...”
Retornou devagar parando a centímetros dele.
— Se tentar me segurar desse jeito de novo... — Sua voz era calma, mas arrepiante. — Eu corto suas mãos, entendeu?
Gabrio apenas concordou nervoso.
— Bel, foi mal! Eu achei que...
Scarlet não deixou que terminasse de falar, empurrou sua cabeça para baixo com força, Gabrio beijou o chão em um segundo.
— Que isso?! Já pedi desculpa!
Não deu atenção a ele, usou as adagas para repelir a espada que surgiu com intensão de parti-lo ao meio.
Um jogador loiro e magricelo a empunhava, usava roupas de couro medieval e manejava com habilidade a lâmina flamejante. A cada investida dele, Scarlet esquivava com maestria.
O espadachim cravou sua espada no chão gerando uma explosão de fogo que alastrou arrastando tudo.
— Dark, levanta! — gritou a ruiva, vendo-o parado no chão.
Gabrio rolou no solo e levantou tentando correr para escapar das chamas, porém não foi rápido o suficiente, no embalo sísmico do ataque foi arremessado. Usou os braços para proteger o rosto quando seu corpo colidiu em uma das casas de madeira.
Scarlet atravessou a onda de fogo, parecia ignorar as chamas, deu um salto por cima do loiro caindo sentada em seus ombros, cruzou as pernas ao redor do seu pescoço e se inclinou para trás fazendo um arco com o corpo do espadachim no ar, no final do movimento, enfiou a cabeça dele com força no chão, o impacto gerou o som intenso que, em grande parte, foi produzido pelo estalo do pescoço quebrado do espadachim.
Os jogadores apareciam de todos os lados, os cercando. A ruiva cruzou as adagas esperando pelo ataque, contudo, não vieram.
Sem aviso, a rajada de tiros cobriu o local, as balas impiedosas atravessaram os jogadores estremecendo seus corpos com os impactos.
Scarlet observou despreocupada seus oponentes serem abatidos, claramente não era um alvo. Os projéteis que vieram na sua direção estavam paralisados em pleno ar, impedidos por alguém de chegar até ela.
Os corpos dos jogadores repletos de furos não caíram no chão, as balas com camadas circulares de sangue estavam fixas ao redor deles.
Naquele instante, o tempo parou.
— Ah... Tá de brincadeira?! — Os braços dela caíram desanimados.
Scarlet sentiu um odor característico de tabaco queimando, impossível não reconhecer, era um legítimo charuto cubano, detestava aquele cheiro.
— Ora! Ora! Hehihi... — A voz masculina veio acompanhado de uma risada aguda de escárnio.
O jogador surgia caminhando pela cena estática, como se tivesse dado um “pause”, nada se mexia, tudo estava imóvel. Ele tragava o charuto deixando a fumaça escapar pelo canto da boca, seus cabelos pintados de loiro eram ralos, a lateral da cabeça possuía desenhos que imitavam ondas, a sobrancelha esquerda apresentava três riscos intencionais e tinha um o bigode fino, quase imperceptível.
“Que azar todo é esse?” Scarlet refletia ao vê-lo, deu uma leve olhada na direção da casa que Dark foi jogado. “Poderia ser você um pé de coelho reverso?”
— Cronos... que desprazer te ver! — disse ela, com bastante desdém.
— Que pena... — rebateu ele, fingindo-se ofendido. — Eu nem tanto, mas Clarisse aqui... tá só saudades! — Olhou para arma de fogo esverdeada que sustentava nos ombros, o fuzil de assalto era uma clássica AK-47.
Cronos usava somente uma bermuda longa e sandálias finas, grande parte do corpo magro estava exposta, era tão alto quanto Dark, chamava a atenção suas diversas tatuagens, a pequena cruz abaixo do olho direito, a enorme rosa dos ventos no peito, a sereia que dominava o braço, uma âncora no ombro, entre outras, muitas outras, quase todas temáticas marinhas.
— Vai ser do jeito fácil ou do jeito que eu gosto? — perguntou ele, jogando o charuto no ar.
— O que acha?! — Ela cruzou as adagas a frente do corpo.
— Hehihihi...
Pelo canto dos olhos, Scarlet fitou mais uma vez a direção de Gabrio, ouvia sua respiração e batimentos, só que não sabia se estava consciente. Porém, não podia se preocupar com ele agora, uma batalha feroz iria começar.
Quando o charuto cubano alcançou o chão, ambos avançaram.