Volume 1
Capítulo 50: Anjo da Sorte
Os ventos fortes sopravam carregando tudo que não conseguia se manter fixo no chão, pequenos tornados se espalhavam pela cidade, deixando árduo o simples fato de andar pelas ruas, um ambiente preenchido de destroços girando no ar, em várias direções e com alta velocidade.
Um único descuido era o suficiente para ser atingido.
O aplicativo informava que esse cenário fazia parte do jogo.
Bem-vindo !
Encontre os tesouros perdidos antes do tempo acabar!
Os jogadores em posse de 03 tesouros vencem!
Cuidado... O vento está forte hoje!
Tempo Restante: 30:00 min
Boa Sorte!
— Fairy?! Fairy?! — O homem ansioso abaixado ao seu lado gritava, puxando-a pelo braço, em busca de atenção. — Onde tão os tesouros?
Ela fez o gesto com as mãos pressionando as têmporas com os dedos para que a deixasse pensar.
“Uma caça ao tesouro com uma interferência climática. ” Avaliava o cenário caótico. “Isso é horrível para mim, mas...”
O vento fazia com que o lenço de seda rosa que encobria seu rosto tremulasse incessantemente, fazendo que apertasse ainda mais para não sair voando, seus olhos verdes cintilavam na única abertura que deixou entre as camadas pressionadas.
— Eu disse que ela não era tudo isso! — O comentário saiu de outro jogador que ela não fez questão de olhar para saber quem era.
“A direção dos ventos, o tamanho do círculo azul, as condições do jogo.” Notava os detalhes que obtinha. “Redistribuição de fatores em uma malha de possibilidades com efeitos não determinísticos.”
O grupo que esperava por suas palavras era formado por outros sete integrantes masculinos, onde seis eram da classe de Lutador e apenas um Elemental que manipulava metais. A contragosto, se destacava como a única Psíquica e mulher dentro dessa equipe extremante desbalanceada. Entre os impacientes, Red Wolf, o careca pálido que vestia a armadura medieval dourada, era o líder do clã Spartan, foi esse o jogador que praticamente implorou para que os acompanhasse.
— O tempo está passando! — Red Wolf puxou-a novamente, mas dessa vez, o excesso de força ocasionou uma leve expressão de dor nela. — Vamos logo! Onde estão os tesouros?!
Os olhos verdes reviraram, ignorando seu desespero.
— Eu acho que... — Iniciava a construção da sua estratégia — Por ali, naquele lugar talvez encontremos alguns.
Os sete jogadores nervosos se entreolharam a vendo apontar para o maior tornado dentro da partida, era possível ver carros e os destroços das casas girando ao seu redor.
— Não gostei do “acho” e “talvez” dentro da sua frase — O careca carrancudo que se intitulava o líder da equipe a pressionou na parede. — Na sua função de Estrategista pensei que fosse mais assertiva que isso.
“O que eu estou fazendo ao lado desses idiotas?!” Repreendia-se engolindo a vontade de xingá-los. “Devo ser a mais idiota por aceitar... droga!”
— Os ventos fortes desfavorecem qualquer sistema de orientação comum — Sua voz saia entredentes demonstrando sua irritação. — A dinâmica do jogo sugere que procuremos os tesouros em prédios resistentes e não atingidos pelos tornados, o que...
— Se a dinâmica sugere isso... — Foi interrompida pelo mais estressado dos integrantes da equipe, alguém que ela não fez questão de memorizar o nome. — Por que motivo está nos guiando para o tornado gigante? Quer nos matar?!
O jogador terminou a frase pressionando a faca dourada no seu pescoço.
— Deixe ela falar! — Red Wolf puxou seu companheiro pelo ombro, afastando-o.
Fez o sinal para ela prosseguir.
“Sim... sou a mais idiota!” Suspirou em desaprovação por ainda não ter ido embora.
— O que significa que a maioria dos jogadores vão entrar em uma disputa sangrenta pelos tesouros em lugares mais seguros — falava apontando para as explosões de luzes visíveis em locais que se encaixavam na sua descrição —, vai ser uma batalha maçante e vocês não têm nível pra isso.
Eles observaram terminar sua análise e cochichavam entre si.
— Os jogos atualmente estão uma confusão com a morte de Scarlet Moon. — disse Fairy, encarando-o com seu olhar desdenhoso.
A notícia da morte daquela que muitos acreditavam ser a única capaz de combater o clã supremo gerou algumas consequências no jogo, entre a pior delas, iniciou-se uma disputa para assumir a posição que ficou livre com sua partida, o posto de jogador mais temido no Rei dos Melhores.
— Só eu e os comandantes têm nível acima de vinte, ou seja, sem chance de vencer combates longos — finalizou ela, seus argumentos.
— Está dizendo que nós somos fracos?! — rugiu Red Wolf.
O líder e os outros a cercaram descontentes com as palavras.
“Sério que só escutaram essa parte?!”, pensou ela, levando as mãos a testa em sinal de cansaço mental. “Parece que estou falando com macacos!”
Red Wolf a levantou pelo pescoço, chocando seu corpo com força na parede.
Os outros integrantes aplaudiram o ataque sem aviso do seu líder.
— Se não encontrarmos os tesouros na direção que apontou — dizia apertando os dedos e forçando-a para trás, gerando mais rachaduras na parede. — Eu e os meus rapazes vamos nos divertir com você antes do fim da partida.
“Estava errada, não são macacos...” Reavaliou liberando a sua energia mágica, fazendo com que a parede e parte do teto explodissem em vários pedaços. “São todos... insetos!”
O efeito da explosão fez que a soltasse. Em seguida, sacou sua espada, os outros não tiveram a mesma reação, apenas observaram assustados.
Red Wolf partiu para o ataque com sua arma, pulsando a luz alaranjada.
— Acho que você esqueceu quem eu sou — segurou o pulso apontando a mão esquerda na direção do líder furioso —, mas vou te lembrar para nunca mais esquecer!
— Parem! — O grito veio com a parede de metal que ficou entre eles. — Parem já os dois! O tempo está passando!
Metallic Mage, o Elemental de Metais, criou a barreira que os separou, um rapaz magro que usava óculos redondos era vice comandante do clã.
— Vamos parar com brigas bobas e focar no jogo! — disse, caminhando para o lado da Psíquica do grupo. — Nos perdoe, esse não é o tipo de partida que estamos acostumados.
Matallic fez uma reverência abaixando a cabeça.
— Nos diga para onde ir, por favor! — pediu ele.
— Perdão! O erro foi meu! — gritou Red Wolf, colando os dois joelhos no chão. — Nos guie!
Os outros integrantes recuavam mostrando seus rostos nervosos, alguns ajoelharam acompanhando seu líder.
Fairy não correspondeu seus arrependimentos, apenas apontou a direção e os seguiu, soltou o ar exasperada, em repúdio aquela cena. Mais uma vez, levou as mãos ao lenço ajustando-o, algumas mechas do cabelo loiro escapavam agitando-se com o vento.
Durante o caminho era evidente que os tornados haviam desfigurado a cidade por completo, não existia sinal de pessoas que não fossem jogadores. Porém, o que mais a afligia era que um grupo como aquele, especializado em combate, não deveria entrar em um círculo azul sem pedras de transporte sobrando. Afinal, um jogo que não envolvesse suas habilidades poderia levar todos a ruína, a sorte deles se resumia ter alguém como ela na equipe.
— Aqui, achei outro! — Um dos Lutadores vibrava ao abrir mais uma das caixas e apanhar outro círculo brilhante que ativava o sinal do aplicativo.
Parabéns!
Você encontrou 02/03 tesouros!
Tempo Restante: 18:00 min
Os discos luminosos extraídos de caixas pretas, cercadas de símbolos coloridos, cabiam na palma da mão. Para declarar sua posse bastava segurá-lo.
— O tornado gigante está muito perto, vamos voltar! — disse Fairy, avaliando as poucas opções que restaram. — Acho que encontraremos mais naquela direção.
Os jogadores vasculhavam o galpão repleto de tubulações plásticas, possivelmente, o lugar servia de depósito para alguma fábrica especializada em encanamentos.
— Sério?! — Red Wolf dialogava com um dos seus lacaios, a surpresa era evidente no seu rosto. — Que maravilha!
“Quando sair desse lugar, vou matar esse cara!”, considerou ela, em pensamento, após ser ignorada de propósito.
— Nós já conseguimos tesouros o suficiente para todos! — proclamou o líder, exuberante arrancando os gritos de alegria dos restantes.
— Espera! Eu só tenho um tesouro! — relatou Fairy, confusa exibindo sua chave.
O solo abaixo dos seus pés tremeu fazendo com que ela perdesse o equilíbrio, os cilindros finos de metal a levantaram antes que pudesse notá-los, tentou correr por cima das barras que se erguiam, mas na sua frente surgiram outras a impedindo. Em segundos, as barras se uniram prendendo-a em uma caixa de grades, semelhante a uma jaula de metal.
— O que é isso?! — gritou ela, ao ver a expressão alegre dos jogadores ao redor. — Me soltem! Ou eu vou matar vocês!
— Vai mesmo?! Huá! Huá! Huá! — Red Wolf usou o tom de escárnio, soltando uma risada que contagiou o restante dos integrantes — E como vai fazer isso?!
Segurando seu pulso, ergueu a mão esquerda apontando na direção deles, mas não houve reação dos seus poderes, não conseguia emitir energia mágica, o pânico incendiou seus olhos pela primeira vez e, como deboche, os risos aumentaram.
Em passos lentos, Metallic Mage saia detrás do grupo exibindo um sorriso de satisfação.
— Você está na minha Ascensão Jaula dos Condenados, ela não permite que ninguém dentro dela possa usar suas habilidades. Qualquer um pego por isso torna-se um completo... perdedor! — informou o vice-líder.
Metallic levantou os óculos redondos com a ponta dos dedos.
— É uma pena, mas vamos ter que nos livrar de você!
A seriedade das palavras dele fez suas pernas cederem, sustentou o peso do corpo apoiando-se nas grades, suavizando a sua queda no chão.
— Por que fazem isso? — Sua voz começou a entorpecer com o choro. — Foram vocês que me convidaram!
O líder do clã aproximou-se da grade abaixando para encarar seus olhos lacrimejantes.
— Eu tinha alguns amigos no clã Dragon Win! — Red Wolf socou as mãos no metal, a fazendo recuar. — Além disso, Metallic era da Eternal Guardians e antes de entrar para o meu clã, tinha amigos lá!
Os olhos de Fairy arregalaram, meneando a cabeça desesperadamente.
— Eu não tive culpa! — Ela gritou se arrastando para o centro da prisão. — Foram eles que não...
— Cala a boca! — Metallic esbravejou na sua direção. — Vamos nos vingar por eles, deixando você aqui para morrer.
“Uma prisão, vários Lutadores e pouco tempo para o fim do jogo.” Fairy redefinia suas opções tentando encontrar uma saída, mas a conclusão era óbvia. “Vou morrer dessa forma ridícula.”
— Seus desgraçados! — Sua voz saiu rouca, forçando a garganta ao máximo. — Covardes, desprezíveis, fracos e idiotas!
A série de xingamentos abalou levemente o triunfo dos seus cárceres, desfazendo sorrisos largos que exibiam por vê-la em plena desvantagem.
— Ainda não entendeu a sua situação — Red Wolf caminhava ao redor da prisão passando os dedos nas grades. — Devia estar implorando para nós, prometendo ser nosso animal de estimação, se humilhando em busca de qualquer sentimento de pena dentro dos nossos corações!
“Morrer dessa forma ridícula. ” Refletia novamente levando as mãos aos olhos para interromper as lágrimas, não havia mais motivo para chorar.
— Aposto que não calculou isso... Estrategista! — bramiu Metallic, com um sorriso esnobe exposto.
A classe Psíquica era herdada de jogos matrizes que se entregavam o suprassumo da mente, onde o uso extremo da inteligência era única forma de vencer. Com isso, normalmente muitos consagrados com esse poder se tornavam o cérebro da equipe. Dentro do RDM, aquele que assume essa posição era chamado formalmente de Estrategista, foi esse o caminho tomado pela jogadora, Last Fairy.
— Por que não implora pela sua vida? — indagou o vice-líder, sentindo-se superior.
— Não quero a pena de ratos imundos — Os encarou friamente, exibindo seu tom estridente. — Se eu sair daqui vou matar todos vocês!
Com desprezo, os integrantes da equipe cercaram a pequena jaula rindo e debochando das palavras audaciosas da jogadora prestes a ver o fim da partida.
— Pelo visto, acredita em milagres! — rebateu Metallic, após atingi-la nos braços com seu cuspe, uma disputa de tiro ao alvo se iniciou entre eles.
Fairy encolhia-se no centro da jaula, abraçando suas pernas, escondia o rosto junto aos braços, não queria deixá-los ver sua expressão assustada.
— Ah! Verdade, esqueci de algo — continuou seu monólogo —, você é a Estrategista conhecida por ser a mais sortuda do jogo.
“Sortuda...” A mente de Fairy desistiu de reagir às provocações, as lembranças de como veio parar naquele lugar a inundaram. “Sorte... nunca soube o que é isso.”
— Também é conhecida por levar a desgraça aqueles que acompanha... o Anjo da Sorte! — falou sarcástico, a vendo se comprimir ainda mais na jaula.
A princípio, Fairy baseava suas ações sempre extraindo o máximo dos seus poderes, algo que a fez chegar entre os melhores especialistas em estratégia no jogo. Contudo, vários acontecimentos trágicos, um após o outro, a concederam um título contraditório, a jogadora azarada conhecida como Anjo da Sorte.
Seu aplicativo informa o tempo que ainda teria que aturar aquela situação.
Você encontrou 02/03 tesouros!
Tempo Restante: 7:00 min
O barulho de algo pesado colidindo na cobertura do galpão chamou a atenção de todos, com o susto, sacaram as armas de imediato.
Em instantes, o teto se partiu, desabando. Além disso, houve a reação de fuga nos mais próximos da jaula.
A Estrategista levantou a mão para se proteger dos destroços que caiam sobre ela, mas não houve necessidade, os pedaços maiores ficaram presos no teto da jaula.
Algo chamou a atenção, o som do choque produzido pelo jogador que encontrou o solo, após cair do teto, na frente de sua prisão.
— Ai! Merda! — bramiu o estranho, batendo a poeira das roupas rasgadas. — Controlar o vento girando num tornado não dá certo, anotado.
Fairy não conseguia ter uma visão clara do jogador de costas, mas suas roupas eram chamativas, vestia um jaleco por cima das roupas pretas, completamente dilaceradas pelos ventos, seus pés estavam descalços.
— Foi mal, rapaziada. — Estendeu a mão para alto em uma saudação. — Desculpa, acabei atrapalhando o... seu...
Parou de falar, ao avistar a menina presa igual um passarinho.
“Se eu pedir ajuda?!” A mente dela se iluminou. “Talvez ainda haja uma chance.”
— Ei! Me aju...
— Sai daqui! — interviu Red Wolf, impediu-a. — Nós estamos no meio de uma vingança!
O jogador exibia uma expressão confusa em seu rosto jovem, os seus cabelos pretos e lisos estavam desgrenhados, era um homem alto, a pele pálida destacava os poucos músculos no corpo magro, longe de ter um porte atlético, mas era bem definido.
Por curiosidade, aproximou-se da jaula, encarando-a.
Os olhos negros dele exibiam uma frieza que a fez engolir qualquer palavra, por um instante, sob o foco daquele olhar, a jaula parecia mais segura.