Rei dos Melhores Brasileira

Autor(a): Eme


Volume 1

Capítulo 25: GUNNER

A sala bonita estava repleta de quadros com figuras de flores espalhados na parede branca, a televisão gigante era o destaque, próxima demais do largo sofá de couro marrom, além disso, haviam várias mesas pequenas com enfeites por cima, tudo preenchido de detalhes que deixavam o ambiente bem requintado.

— Coloca ela no sofá — disse o atirador, cordialmente. — Relaxa, essa é a minha casa, tão seguros aqui.

Em seguida, o anfitrião sumiu por uma das portas.

Gabrio deitou Bel no lugar que indicou e sentou-se no tapete felpudo no chão. Diferente daquela coisa que ela tinha na ilha, aquilo podia ser chamado de casa.

O atirador retornou dois minutos depois com uma latinha de refrigerante na mão, pelo visto, mantinha um estoque excessivo do produto.

— E quem são vocês? — perguntou ele, após oferecer a bebida.

— Meu nome é Gabrio e o dela...

— Opa! — advertiu ele.

O atirador o interrompeu, em seguida, deixou seu corpo cair em uma poltrona da sala.

— Ei, novato — chamou risonho, mas continuou sério. — Nunca diga seu nome verdadeiro nesse jogo, podem usar isso contra você.

Em uma das mesas pegou uma taça e encheu com a garrafa de vinho ao lado.

— Ela não te ensinou isso? — perguntou ele, encarando a ruiva deitada.

Gabrio balançou a cabeça para dizer que não.

“Pensando bem...” Percebeu algo que Bel fazia naturalmente. “Ela sempre me chama de Dark dentro do jogo.”

 — Vou esquecer o que acabei de escutar. — O atirador levou a taça aos lábios e continuou — Vai, me diz seu nome de novo.

— Eu sou Dark Onyx. — As palavras saíram cortando a garganta, mas saíram.

O atirador engasgou, segurando o riso.

— Nossa... que criativo — falava em tom desdenhoso —, mas vou continuar te chamando de Noob, acho soa melhor! Hehe...

Gabrio estreitou os olhos, afinal o nome não foi da sua escolha.

— E o da bonitinha ali? Deve ser melhor, né?! — perguntou, ainda zombeteiro.

— Ela é... Scarlet Moon.

O atirador deixou sua taça cair quando escutou aquele o nome, perplexo. Seu sorriso se desfez como o estouro de um balão.

— Lógico... o cabelo vermelho... agora faz sentido. — Ele bateu na testa por deixar passar algo tão óbvio.

Sua expressão foi de alguém alegre para uma que transbordava temor.

— Ela é assim tão famosa?! — indagou Gabrio, olhando na direção da ruiva estática.

— Se ela é famosa?! — gritou o atirador, indignado com a pergunta dele. — Essa mulher é uma lenda urbana dentro do RDM!

Ele praticamente vibrava de empolgação na voz.

— Dizem que por onde ela passa é possível ter a verdadeira visão do inferno!

O atirador passou a mão na testa, limpando o suor.

Gabrio não discutia essa parte de “visão do inferno”, a ascensão dela não deixou nada além de destruição na cidade.

— Meu Deus... a Rainha Demônio! Na minha sala!

O jogador puxou o celular e deu cliques desesperados.

— Vai! Vai! — bramiu ele. — Tira uma foto minha com ela!  

Gabrio se assustou, o atirador levantou em um pulo, jogando o aparelho nas suas mãos.

— Tá... — Gabrio clicou na tela.

O jogador se abaixou na frente do sofá fazendo o sinal de positivo com o dedão.

— Se formos falar o que sei sobre ela passaríamos a noite toda aqui — relatou se acalmando, avaliando a foto. — Mas a maioria deve ser exagero ou... talvez não.

— Posso garantir que ela não é tão terrível assim — disse Gabrio, lembrando de que só estava vivo porque ela o ajudou. — E quem é você nesse jogo?

— Eu sou... Gunner! — disse ele, fazendo o gesto de pistola com a mão, fingiu um tiro e piscou soprando a ponta do dedo.

Gunner ligou a TV, trocava rapidamente os canais, procurando algo.

— Achei! Vamos ver qual o Remake dessa vez — informou ele.

Na televisão, o jornal noticiava o efeito climático raro, nuvens cúmulos-nimbos projetaram uma tempestade de raios que atingiu a cidade costeira do Porto, a noroeste de Portugal. O local, famoso por seus vinhos, não tinha mais nada de receptivo, o jornal alegava mais de quinhentos mortos confirmados.

— Que triste... — lamentou Gabrio, não demorou nem meio segundo para reconhecer o local.

— Triste, é?! Então, é mesmo um novato — afirmou Gunner. No fundo, tinha esperanças que estivesse errado. — Noob, há quanto tempo é um jogador?

Os jogadores sabiam que uma causa natural era apenas uma desculpa que o jogo usava para encobrir sua existência, às vezes tão esfarrapada que parecia ser engraçado. Depois de um tempo, já haviam se acostumado, sentir qualquer aversão era uma prova concreta da inexperiência.

— Uns... quatro dias — respondeu com dificuldade, na sua cabeça já haviam se passado semanas.

— Quatro dias?! — rebateu Gunner, surpreso. — E o que diabos estava fazendo em um círculo azul?!

— Eu sou um Expert — Gabrio deu a resposta que achou ser autoexplicativa.

A expressão abismada de Gunner revelou que não foi uma justificativa plausível.

Gabrio olhou na direção de Bel, confuso.  

O atirador gargalhou entendendo de quem era a culpa.

— Ela não te falou do efeito colateral da Ascensão, mas te disse que ser um Expert é suficiente para entrar em um círculo azul?!

Gabrio abriu a boca para responder, mas fechou percebendo que a pergunta era totalmente retórica.

“Ou será que...”, Gunner pensou em uma possibilidade.

— Ela tá te ajudando a upar níveis rapidamente — esclareceu, olhando a reação pensativa dele. — Te carregando nas costas!

— Claro que não! — rebateu Gabrio, ofendido.

 — Ah, é?! Então, me diz, meu amigo. — Gunner parecia se divertir com a frustração dele. — Conseguiria sobreviver sem ela nos círculos azuis que entrou?

Gabrio refletiu por um momento, a resposta era bem obvia, tanto que ficou estampado na sua face. No primeiro círculo azul foi traído por alguém que ajudou, no segundo desmaiou ao esgotar sua energia e no último, congelado por um raio.

— Viu?! — constatou Gunner, vendo-o desviar seu olhar.

***

As semelhanças com alguém que possuía receio de encarar a verdade começou a corroer Gunner internamente.

“É como olhar o passado por um espelho quebrado”, remoeu o atirador, analisando o jogador triste na sua frente.

Durante as partidas, Gunner conheceu diversos jogadores, sendo alguns gênios da estratégia, mestres em luta, especialista em sobrevivência ou sortudos abençoados pelo RDM e, mesmo assim, todos contavam histórias assustadoras sobre a ruiva paralisada em seu sofá. Por isso, imaginava que alguém como ela estaria cercada por gente de alto nível, os maiores, os mais habilidosos, mas... o que via era decepcionante, seu companheiro não tinha sagacidade, intenção de jogo e qualquer motivação.

“Por que ela está se arriscando tanto por alguém como ele?”, lembrou do que mais o preocupava no momento, o perigo de ajudá-la.

— Disse que meu nome verdadeiro pode ser usado contra mim, como alguém faria isso? — perguntou o Noob, quebrando o silêncio que havia se instaurado a alguns minutos.

“Esse cara está lendo meus pensamentos?” Sua pergunta tinha ligação direta com seu temor, uma situação que poderia ter evitado se tivesse percebido os sinais óbvios.

“As pistas estavam lá! Afinal, quantas ruivas poderosas existem por aí?!”

— Eu vou supor que você viu que no menu do jogo tem a opção Clã — continuou quando ele fez que sim com a cabeça —, existe um Clã que é soberano nesse jogo.

Olhou na direção de Scarlet Moon.

— Dentro dele há alguém com a habilidade de controlar a mente de outros jogadores, basta que saiba seu nome verdadeiro.

— Entendi, Scarlet tem alguma ligação com esse clã — concluiu, pelo jeito que Gunner olhava para ela ao falar.

“Isso foi um sinal de inteligência?” Gunner surpreendeu-se por ele presumir corretamente.

— Como é o nome desse clã? — perguntou, curioso.

Gunner engoliu em seco.

— O clã supremo — respondia sério —, Valhalla!

O atirador encarou os olhos perdidos do novato, muitos tremeriam só de ouvir aquele nome e, para sua infelicidade, Gunner era um desses, as suas pernas fraquejaram por um instante.

Valhalla?! O paraíso dos guerreiros nórdicos?! — debochou Gabrio, sem qualquer assombro.  

— Paraíso?! Hahaha! Paraíso?! Hahaha! — Gunner explodiu em risadas. — Caramba! Essa ruiva não te falou nada mesmo, né?

— Bem... então, por que você não me explica? — interpelou o novato.

O atirador suspirou.

Dark, posso chamá-lo assim?!

Gabrio assentiu.

—  Dark, a Valhalla tá longe de ser o paraíso — explicava com olhos fixos na ruiva sobre o sofá —, o clã supremo controla esse jogo com mãos de ferro, qualquer um que se opõe a eles... — deu uma pausa, repleta de drama — morre.

O novato permaneceu calado, esperando por mais.

— Sua amiga é caçada por eles — informou, travando o maxilar, tenso. — Diria que a mais procurada e, qualquer jogador — enfatizou a frase —, com um pouquinho de consciência disso, sabe que ficar perto dela é... suicídio.

Gabrio encarou a direção da ruiva.

— Eu não tenho medo — rebateu ele.

— Ah! Seu idiota! Nem sabe o que tá falando! — ralhou o atirador.

— Eu já vi o quanto ela é forte — insistiu Gabrio.

— A clã supremo é só a ponta do iceberg! — continuou incisivo. — A Valhalla controla outros clãs tão poderosos quanto eles.

Gabrio refletiu por um momento.

— Quais são? Quantos? Onde estão? O fazer pra evitá-los? — Gabrio disparou cada pergunta deixando de lado seu autocontrole.

“Ah... então é isso! O motivo dela o manter por perto.” Gunner sorriu diante dos pensamentos, conseguia ver nos olhos dele a explosão de sentimentos. “Quem diria... então até a Rainha Demônio caiu nessa armadilha.”

— Responde! — insistiu Dark, apesar de parecer calmo, o novato estava em pânico por dentro.

— Os Clãs de Extermínio — falou Gunner, sem perceber, simpatizou com aquele Noob. — Assim que são chamados os Clãs que são cegamente obedientes a Valhalla, capazes de tudo para cumprir a missão dada. Entre muitos, os que deve temer são...

Gunner não teve tempo para terminar sua frase.

Scarlet Moon levantou sentando-se vagarosamente no sofá. Com delicadeza, levou a mão a cabeça arrumando os cabelos e sorriu ao ver que seu companheiro estava bem.

Devido ao seu baixo nível, Dark não sentia nada no ambiente, mas a intensão assassina que fluía do corpo dela sufocava Gunner. Seu gesto simples de mexer a cabeça na sua direção e o seu olhar deixavam explícito que o mataria se falasse mais uma palavra.

“Então o monstro da lenda é verdadeiro”, pensou o atirador, sem a mínima coragem para mexer um dedo.

— Finalmente!

Dark a abraçou por impulso.

— Eu estou bem, estou bem! — disse a ruiva, desvencilhando-se dos seus braços.

Suas bochechas coraram.

— Que lugar esquisito é esse? — falou ela, avaliando o local.

— Minha casa! Não precisa me agradecer por tirar vocês de lá!

O atirador estendeu a mão para ela apertar.

“É melhor tê-la como aliada.” Gunner sorria amistosamente.

— Agradecer?! Você devia me agradecer por salvar sua vida! — rebateu ríspida.

Scarlet ignorou tanto seu sorriso quanto seu gesto.

O atirador suspirou desanimado, saindo de perto, mas a ruiva segurou sua mão repentinamente, puxando-a para próximo do nariz, seu movimento o fez perder o equilíbrio.

Gunner apoiou-se no sofá para não cair.

— Suas unhas têm cheiro de temperos! — relatou Scarlet, enquanto o atirador tentava, em vão, puxar o braço para trás e fazê-la soltar sua mão. — Você é um cozinheiro!

Os olhos dela brilharam.

“Como uma coisinha desse tamanho tem toda essa força?”, pensou ele, quando o largou, ainda sentia a pressão dos seus dedos pequenos, mas um pouco e teria quebrado seus ossos. “E qual é a desse olfato?”

Scarlet tirou um papel amassado do bolso e o desdobrou como se a qualquer momento fosse se desfazer.

— Consegue reproduzir essa receita? — Ela esticou a mão para entregar.

“Isso aqui está longe de ser uma receita, parece uma lista exótica de compras.” Gunner avaliava o papel com as sobrancelhas levantadas, coçando a barbicha. “Tem gotas de sangue nesse troço.”

— Eu não tenho todos os ingredientes — respondeu ele, mantendo sua postura pensativa.

Scarlet suspirou desanimada e torceu os lábios de frustração.

— Mas... — Ele hesitou sua fala, a ruiva o encarou com os olhos arregalados de expectativa. — Se quiser, consigo fazer com umas modificações.

— Modificações... pode ser! — aceitou animada.

Scarlet bateu palmas vibrando de alegria.

— Fiquem à vontade — Gunner saiu coçando a cabeça.

***

“Agora... ainda tem isso de clã supremo.” Gabrio refletia sobre as informações que o atirador forneceu.

Há muito tempo percebeu as ações evasivas da ruiva, ignorou essa atitude por achar que era novato demais para compreender as respostas, mas o fato de estar sendo perseguida o deixou preocupado.

“O que mais ela tá escondendo?!”, pensou ele.

Bel estava ao seu lado apreciando o aroma que vinha da cozinha.

— Eu não acredito que você pegou a receita da sopa naquele restaurante — disse Gabrio, bagunçado seu cabelo ruivo.

Bel o empurrou o jogando no tapete novamente e deu um leve sorriso tímido, enquanto reorganizava as mechas que ele espalhou pelo seu rosto.

— Isso está bem cheiroso! — falou fungando o ar. — Eu tive que... conversar... com o cozinheiro — escolhia bem as palavras —, ele disse algo sobre receita de família.

— Então... É... — Gabrio reunia a coragem para perguntar. — Poderia me falar sobre esse...

— O efeito colateral da minha Ascenção é a dormência total do meu corpo. — Bel disparou antes dele terminar a pergunta. — Fico assim por trinta minutos, é essa sua dúvida?

Gabrio assentiu, mas seu olhar mostrava que não era essa.

Bel ignorou, não queria falar sobre mais nada.

— Não disse antes porque não achei que usaria isso agora. — Sua voz saiu com um tom apático. — Zumbis estavam fora dos meus cálculos.

O silêncio dominou o restante da conversa.

— Crianças, venham aqui — chamou o atirador.

A cozinha possuía diversos eletrodomésticos e utensílios brilhantes, organizados por toda a parede.

— Está pronto! — falou Gunner, colocando uma panela sobre a mesa redonda.

A ruiva serviu-se não acreditando no que via, aproximou o nariz do prato e iniciou seu ritual de apreciação do aroma.

— Uma delícia!

Bel exaltou o sabor quando finalmente levou a boca.

— Conseguiu ficar melhor que a outra!

Os rapazes segurando o riso serviram-se aproveitando a comida.

Naquele momento de paz, os três jogadores sentaram em volta da mesa, saboreando a sopa improvisada.



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