Rei dos Melhores Brasileira

Autor(a): Eme


Volume 1

Capítulo 1: Convite

O trem passou rápido pela estação. Sem parada de passageiros, suas luzes piscavam freneticamente. Dentro da locomotiva as paredes de cada vagão estavam pintadas de vermelho e, a "tinta", era sangue.

As pessoas caídas nas cabines do trem estavam retalhadas e misturadas, puras carcaças. Por ali, os lobos enormes se destacavam, os responsáveis pela matança já haviam terminado sua caçada.

A morte pairava sobre tudo.

Aaha...

O gemido sutil era dado pelo passageiro que se agarrava ao fio da vida, um sobrevivente que, se não fizesse nada, em breve daria entrada pelos portões do paraíso ou do inferno.

Gabrio Wisley, não sentia mais suas pernas ou qualquer parte do corpo, ainda tentava entender o porquê de estar pregado na parede do trem com garras monstruosas cravadas na sua barriga.

— Imbecil! Por que você não acessou o jogo?! — bramiu uma voz distante.

A mente consistia na única engrenagem que ainda funcionava e, movido pelo clichê dos segundos antes da morte, refletia sobre a vida.

No que podia lembrar, ele era constantemente impedido de cumprir suas promessas pessoais, com seu pai, disse que ia lhe esfregar seu sucesso um dia e a maldita doença dele impediu. Para sua mãe foi o mesmo, falou que cuidaria de tudo e o trágico acidente de carro fez disso impossível.  Gabrio corria grande parte do tempo das responsabilidades e se tratando da vida... nunca sabia o caminho a seguir.

— O que eu faço?! — A voz parecia ainda mais longe. — Não sei seus dados!

O seu único talento era ser um rato de laboratório, aquele tipo de cientista que aprende a ignorar qualquer coisa que não traga resultados.

— Devia deixar... — Não escutou o restante, a voz irritada sumiu de vez.

“Mas que dia recheado de absurdos.” Fazia uma pequena regressão mental.

Ajudando uma idosa tornou-se um bom samaritano, conheceu a mulher mais linda da sua vida e, para completar, realmente não ia chegar ao trabalho.

“Verdade... esse dia já começou louco!” Ele teve outra lembrança, o principal motivo de estar ali.

Clin!

Um bip estranho foi a última coisa que ouviu, depois disso, sua mente tocou o vazio profundo.

***

A manhã era fria, o que acusava o início do inverno, as pessoas seguiam pelas ruas em um ritmo frenético, Gabrio encarava o formigueiro humano pela janela daquele escritório com o desejo incontrolável de estar entre elas.

— Senhor, Wisley? — chamou o homem, pela terceira vez. — Escutou tudo?

— Por favor, só Gabrio. O meu pai que se chamava assim — pediu ele, ainda de olho na janela. — Poderia repetir?

O homem de meia idade ergueu as sobrancelhas em uma clara expressão descontente, usava belas roupas formais, dignas de um advogado de renome no qual se catalogava.

— Então, vamos de novo. — Passou as mãos nos cabelos grisalhos retirando o papel na frente dos olhos, não podia correr o risco de não ser ouvido de novo, seu tempo era precioso. — Resumindo, seu pai Leonard Wisley, deixou o testamento em posse da nossa empresa, com a morte dele, passaremos os pertences destinados legalmente ao seu único filho.

— Se eu recusar receber?

— Irão todos a leilão.

Gabrio suspirou, lhe incomodava ganhar algo do homem que infernizou sua vida durante muito tempo, mas ser um cientista tinha uma ignição, a bendita curiosidade.

— Ok, vamos acabar logo com isso — disse Gabrio, apertando com força a gravata colorida no pescoço, suas roupas não eram tão diferentes das dele, porém mais envelhecidas, o tipo de roupas que os grã-finos doavam para a caridade.

Gabrio assinou uma quantidade de papeis absurda, estava a ponto de odiar o próprio nome.

— Aqui. — O advogado colocou uma pequena caixa de papelão na mesa.

— Espera, é só isso?! — A voz de Gabrio saiu pasma, perplexa, estupefata ou qualquer coisa compatível com revoltada, foram muitos papeis.

— Sim — respondeu o advogado, sem rir, mas desejava.

— E o dinheiro dele? Patrimônios? Todo o resto? Ele tinha uma empresa de finanças, não é?

— O banco ficou com uma parte, acionista com outra, perdeu tudo — O homem levantou da cadeira com a expressão de missão cumprida. — Isso é o que sobrou da fortuna dele.

“Aposto que foi de propósito”, pensou Gabrio, conseguia escutar as risadas do seu pai imaginando sua cara naquele momento.

Ele abriu a caixa xingando seu velho, dentro continha um aparelho preto e totalmente liso, semelhante a um desses celulares modernos, atrás possuía a gravura de coroa cinza com as siglas RDM em baixo, não era grande, conseguia segurar com uma das mãos. Um bilhete era o único acompanhamento.

— Você recebeu o convite para o Rei dos Melhores... — Gabrio leu o pequeno cartão com a mesma gravura do celular, o virou, tinhas algumas palavras atrás.

As respostas estão no mundo dos sonhos.

“Que merda é essa?!” Gabrio avaliava as palavras no verso, sem dúvidas, a letra do seu pai.

— Então... foi um prazer, se não se importa tenho outros compromissos. — O advogado esticou a mão para uma despedida amigável, aquilo foi sua forma educada de dizer: “Vá embora, já gastou muito do meu tempo.”

Gabrio resmungava algo em seu aperto apático e pegou sua herança da mesa. Saindo do escritório não teve coragem para atender o próprio celular, seu atraso para o trabalho já havia superado suas desculpas razoáveis, falar da morte do seu pai estava fora de questão, tinha usado essa há muito tempo.

— Licença... por favor! — falou ríspido, ignorando o olhar de fuzilamento da velhinha vagarosa no seu caminho.

A idosa parecia estar em câmera lenta carregando várias sacolas.

Ele ofegava devido a maratona que enfrentou até ali, o semáforo da faixa antes da estação de metrô mantinha o sinal vermelho para os pedestres firme e inalterável.

— Finalmente! — Levou as mãos ao céu quando sinal verde surgiu.

O barulho em suas costas o fez virar o rosto de forma involuntária.

A pequena senhora que ultrapassou estava de joelhos no chão, tentando reunir os objetos que se espalharam após as sacolas rasgarem.

As pessoas a ignoravam com a mesma eficiência que ela falhava nas tentativas de juntar seus itens.

“Se eu perder esse trem...” Gabrio conferiu no relógio, possuía dois minutos para chegar na estação, caso contrário teria que esperar o próximo.

— Ah! Dane-se! — murmurou dando meia volta.

Começou a pegar as coisas da idosa com a precisão de uma ave de rapina, todos se tratavam de brinquedos.

— Aqui, senhora. — Abaixou-se diante dela com os brinquedos reunidos em seus braços. — Nossa! São muitos, hein?! — Brincou esboçando um sorriso desajeitado.

— São para os meninos do meu orfanato — justificou a idosa.

A velhinha retribuiu o sorriso enquanto pegava os objetos e os abarrotava em sua bolsa. Aquelas palavras aqueceram o coração de Gabrio.

“Sim, escolhi fazer o certo.” Refletiu se animando, afinal não perdeu seu trem atoa.

— Você é um bom menino, Deus recompensa pessoas assim — disse ela, enquanto lhe ajudava a atravessar a faixa novamente.

Por fim, a velhinha o agradeceu com um abraço tímido e seguiu pela calçada na lateral da estação. Gabrio seguiu para o metrô, esperou vinte minutos pelo transporte que, possivelmente, o levaria para perder o emprego.

Entrou no trem correndo e sentou-se no primeiro lugar disponível.

— Eu sou o melhor de lá — disse ele, com o ar esnobe. — Acho que vou até pedir um aumento.

Suas risadas solitárias cessaram ao encarar a herança que segurava firme na mão direita.

“Então é mesmo um celular”, concluiu ele, depois que arrastou o dedo na tela o aparelho acendeu.

Só havia um aplicativo instalado, o ícone era a coroa com as mesmas siglas. Estava prestes a clicar quando seus dedos congelaram com o susto, uma mulher deitou a cabeça sobre o seu ombro.

Não havia percebido a menina que dormia ao seu lado, a cabeça que antes apoiava-se no vidro da janela, agora pousava sobre seu ombro o tratando de travesseiro. Possuía os cabelos ruivos, em que as mechas vermelhas cobriam parte do seu rosto, dificultava saber algum detalhe. Gabrio se fingia de estátua, não recordava a última vez que esteve tão próximo assim do sexo oposto.

— Isso sim é algo que eu mereço — disse baixinho, olhando para o alto, cobrando de alguém lá em cima.

Sentiu sua camisa umedecer aos poucos, foi promovido de travesseiro para babador.

A ruiva ergueu sua cabeça devagar, olhando em volta, como se não soubesse onde estava. Encarou o passageiro ao seu lado seguido de um bocejo.

“Nossa! Ela é linda!”, pensou ele, admirando o despertar preguiçoso da menina que o alugou.

Lembrava de ter visto mulheres com o perfil dela exclusivamente em capas de revistas ou filmes de Hollywood. Os olhos azuis amendoados que brilhavam abaixo da franja o fitaram por um momento, sem entender a situação, tinha um rosto oval com o nariz pequeno e arredondado, sua boca era chamativa, a área no centro do lábio superior bem definido, imitando a parte de cima de um clássico desenho de coração.

— Ah! Meu Deus! — exclamou alto ao ver que o molhado com formato circular na camisa dele a incriminava, além disso, comprovou sua culpa rapidamente ao levar uma das mãos ao queixo e limpá-lo. — Perdão?!

Tentou enxugar com um lenço roxo que tirou do bolso.

— Tudo Bem — falou Gabrio, erguendo as mãos para dispensar as tentativas de limpeza.

— Desculpa, de verdade... —  disse ela, com sua voz aveludada. — Eu estava muito cansada... desculpa?!

Juntou as palmas das mãos e levou aos lábios como uma criança arrependida.

— Te perdoou se me disser seu nome — disse afável.

Ela riu e corou rapidamente.

— Sou... — Parou desviando o olhar, como se lembrasse de algo importante. — Bel, pode me chamar de Bel.

— Então... Bel, tudo bem. Foi até legal servir de travesseiro. — Esboçou o sorriso para demonstrar sua brincadeira.

— Foi mal! Desculpa!

Bel sorriu para mostrar que entendeu sua intenção cômica.

“Vai, puxa assunto!”, imaginou Gabrio. “Quando vou ter chance de conhecer uma menina dessa? Pede o número dela, idiota!”

Ela brincava com uma das pontas do cabelo o enrolando nos dedos.

— O que foi que te deixou cansada a ponto de dormir desse jeito? — Perguntou, mas arrependeu-se logo, a pergunta parecia invasiva, uma clara evidência da sua péssima técnica de interação com mulheres.

— Eu passei a noite em um jogo de vídeo game — respondeu de forma descontraída.

— Um jogo? — Surpreendeu-se. — Quer dizer que você gosta dessas coisas?

— Viciada! — Sorriu o encarando. — Viciada é a resposta certa.

“Droga... demorei demais. Ela parece ser bem simpática”. Gabrio lamentou, não poderia se alongar muito, a próxima parada era a sua.

— Me passaria o seu... — Gabrio até montou a pergunta na mente, mas a coragem acabou na metade. No fundo, sabia que ela só estava sendo educada, mais uma vez, o medo de arriscar o fez recuar.

Bel abriu a boca prestes a dizer alguma coisa, mas levou a mão rapidamente ao bolso da calça e tirou seu celular.

Embranqueceu com a notificação na tela.

Aviso!
 Uma partida foi iniciada neste local!
 Deseja participar?!
 Sim ou Não

Voltou um olhar triste na direção de Gabrio.

— De novo vou ter que te pedir desculpas — disse com o tom entorpecido e continuou. — Eu recusei uma hoje no orfanato.

— Orfanato?! Não entendi... — rebateu confuso.

— Acho que você entrou no trem errado. — Bel levantou do assento e clicou na tela do celular. — Mesmo que eu pudesse recusar... alguém já iniciou.

Bem-vindo a Partida!
 Saia do local onde está e chegue ao objetivo antes do tempo acabar!
 Tempo restante: 15 min

Os primeiros 5 colocados ganham!
 Ah, sim! Cuidado com os Devoradores!
 Boa Sorte!

— Quinze minutos?! — gritou ela, inconformada com tela do aparelho. — Que jogo insano é esse?!

Gabrio permanecia incrédulo, mas notou que ela não era muito alta, seu cabelo ruivo alongava-se próximo a cintura, a camiseta preta sem estampa e a calça de mesma cor se ajustavam perfeitamente as suas curvas formidáveis, as botas marrons eram o único adereço colorido que usava.

A mulher mais linda que ele já viu pessoalmente. Contudo, certeza que possuía um defeito, pelo visto era completamente louca.

— Bem, eu já vou indo. — Gabrio levantou-se indo na direção da porta.

— Se fosse você ficava escondido aqui — falou enquanto prendia os cabelos vermelhos com o lenço. — Talvez quando acabar o trem ainda seja seguro.

Gabrio a fitou por um momento perplexo.

Os gritos das poucas pessoas na cabine chamaram sua atenção. Na parte de trás, como se emergisse das sombras, saia a criatura semelhante a um lobo de pelagem escura, mas duas vezes maior que qualquer um que já tenha visto, rosnava feroz, seus olhos vermelhos indicavam que só queria duas coisas, carne e sangue.   

Os passageiros entraram em pânico, todos correram espremendo Gabrio no fundo da cabine.

A criatura saltou no primeiro que atravessou sua frente e cravou seus dentes o balançando no ar, os gritos se intensificaram com sangue espalhado. O lobo gigante arremessou com força no vidro o que sobrou do homem dilacerado.

O monstro voltou seus olhos para as pessoas amontoadas, o líquido tinto e viscoso ainda gotejava da boca enquanto mastigava as partes que arrancou da vítima.

Existia um grande problema com a raça dos lobos negros, sua fome era insaciável.

Os passageiros na frente de Gabrio tiravam um pouco do seu campo de visão, mas deduziu pelos gritos e empurrões que estava vindo naquela direção. O lobo saltou exibindo a suas presas grandes, repletas de intensão assassina, mas não chegou até eles.

— Ela chutou aquilo?! — gritou a mulher, na dianteira do aglomerado.

A ruiva estava a cinco passos distante das pessoas encolhidas no fundo, segurava uma espécie de faca na mão direita que emitia uma luz azulada, era longa e estranhamente detalhada. Fez um movimento rápido e lançou a lâmina na criatura que levantava para atacar novamente.

O lobo soltou o grunhido de dor e caiu imóvel.

Os passageiros começaram a aplaudir a cena, alguns imaginando que foram pegos em uma piada infame, o riso começou a tomar conta depois do pânico.

“Como não percebi?”, pensou Gabrio, enquanto recuperava o compasso da sua respiração. “É uma daquelas pegadinhas de TV”

Bel retirou sua faca da criatura exibindo um olhar de pena para as pessoas confusas, correu na direção da porta que ligava as cabines, passou por ela sem olhar para trás.

Não houve muito tempo para comemorações, as paredes se encheram de círculos sombrios, os lobos saiam arrancando o sorriso dos sobreviventes e os preenchendo de uma única certeza, aquele trem infernal não levaria ninguém para casa.

A morte pairava sobre tudo.



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