Re:Nascimento Brasileira

Autor(a): Saya


Volume 1

Capítulo 17: Labaredas da Alma {2}

A visão estava embaçada e os pensamentos nublados pela nevoa cinza. O mundo parecia girar em círculos enquanto brilhos efêmeros cortavam o ar feito faca na manteiga. O cenário era incerto para Emma, privada de seu raciocínio pelo impacto sofrido.

A dor pungente em seu braço esquerdo não dava sinal algum de cessar, mas não era só isso. Embora teve a queda aparada por uma árvore, isso foi sua benção e maldição simultaneamente. Sentia as costas doerem dos ombros até o quadril, sem falar na dor muscular constante presente nos membros causada pela combinação do esforço dos treinos anteriores e do combate árduo.

Quando achou que estava prestes a perder a consciência, ouviu seu nome sendo chamado por uma voz familiar.

— Emma! Ai, meu deus! Emma, tá me ouvindo?! — Depois de ter sido chacoalhada com força de um lado para o outro, os sentidos voltaram alertas, todos de uma vez.

Conseguia ouvir o crepitar do incêndio formado na batalha, o brado da guerreira flamejante e o rugido ensurdecedor da onça Vorpal. Na frente de seus olhos, Alex a segurava pelo ombro direito, encarando-a com extrema preocupação.

— A-Alex? O que houve? Por que eu... — Tentou se mover, mas foi logo punida pela dor aguda do corte aberto logo abaixo dos ombros. — Gah! Merda!

— Tenta não se mexer. Porra, essa é a pior situação possível!

— Você tá sangrando... — Ela tentou limpar o líquido carmesim que escorria da bochecha da armeira, mas ela mesma impediu com uma das mãos.

— Ei, você deveria se preocupar consigo mesma um pouco.

— Tá muito ruim?

Ela simplesmente assentiu com a cabeça. Próximo delas, ouve um súbito estalo e, de repente, uma árvore foi ao chão, levando centenas de brasas ao ar.

— Temos que sair daqui agora! Vou te levar pro Athert, vai ficar tudo bem, prometo. — Ela apoiou a amiga no ombro com o braço sadio e então disse: — No três. Um... dois... e...!

De supetão, elas levantaram, mas Emma logo se arrependeu da decisão.

— Agh! Porra, isso dói!

— Desculpa, esse é o único jeito. Vamos indo, mantenha a cabeça abaixada, podemos ser pegas no fogo cruzado.

Deu-se início então à tortuosa caminhada até o resto do grupo, já um tanto distante da batalha devastadora. Emma podia ouvir e ver borrões ao fundo, sabia que Esther estava lutando mesmo sem vê-la nitidamente.

— Precisamos ajudar... ela.

— Não podemos, vamos ser um fardo se atrapalharmos agora. Se nos aproximarmos do fogo ou da onça, morremos, entendeu?

A esperança de Emma foi selada num túmulo chamuscado. E embora quisesse contrariar Alex, ela mesma já estava sentindo dificuldade em respirar com toda a fumaça. Porém, havia algo ainda mais interior em Emma, a mesma sensação que teve quando lutou com a Garça pela primeira vez, como se algo dentro de si ganhasse vida e se manifestasse em seus pensamentos, assim como no pesadelo na manhã da partida de Wast.

“Emma...”, começou a ouvir dentro da própria cabeça.

— Q-Quê? — murmurou com dificuldade.

“Me dá uma mão aqui!”

— Qual é a desse tom?!

E a voz continuou a atormentá-la, repetindo as mesmas palavras copiosamente, clamando pela “união” das duas. Contudo, no estado atual, Emma mal podia imaginar se estava alucinando por causa do monóxido de carbono ou se ela tinha ficado louca por fim. As duas conclusões eram igualmente aterradoras.

Concomitantemente à fuga das duas, Esther desviou de outro ataque da cauda da onça vorpal, conseguindo assim espaço para retaliar. Prosseguiu com um golpe da alabarda contra a própria lança numa tentativa de quebra-la, mas não teve sucesso. A arma, embora magicamente materializada, não era capaz de cortar por conta própria. O responsável pelo dano era a extrema temperatura na ponta da lâmina, capaz de atravessar materiais menos resistentes.

Os gládios ósseos do felino, porém, provaram-se mais resistentes que o esperado por Esther.

Tsc! — Revolta, ela recuou, sendo acompanhada pelo inimigo voraz.

A movimentação das duas alastrava ainda mais fogo pela floresta, ironicamente drenando as energias da fiel aos poucos. Mesmo com as capacidades elevadas, a forma exigia muito do corpo e da mente, e ela sabia que não teria mais forças para continuar nos próximos minutos. Cada segundo era crítico para a decisão do vencedor, mas não havia abertura sequer.

Ficar muito próxima tinha grandes chances de erro, mas ficar somente na defensiva não lhe renderia nada além da morte. Visto dessa forma, ela teria de mudar a postura e rápido se quisesse sobreviver. E assim ela o fez.

Das duas mãos, passou a segurar a alabarda com somente uma para melhor controle. O próximo movimento foi bater as asas para frente, não só impulsionando-se para trás como também erguendo uma densa nuvem de cinzas, desnorteando a onça.

O predador, por sua vez, incapaz de localizar a presa pelo cheiro ou visão clara, guiou-se pelo brilho alaranjado em movimento pelas cinzas. De maneira oposta, ela girou o corpo junto à cauda e varreu as cinzas para longe, mas não encontrou nada além de focos de incêndios deixado pelo rastro que acabou logo atrás dela. Ela percebeu tarde demais que o sumiço da inimiga não indicava a fuga, mas sim um salto.

Esther desceu com tudo, perfurando as costas do animal com a arma e firmando-se ali com os pés envoltos de labaredas. Se antes o inimigo nada sentia, agora ele estava sendo diretamente queimado pela lanceira, uma reviravolta inesperada para quem há pouco tempo tinha total controle da batalha.

Em reação, a onça armou o rabo para atacar a invasora em seu dorso. Todavia, não contava com a rápida reação de Esther, que não só desviou, como também contra-atacou. A maior mobilidade permitida pela mão livre a conferiu espaço para, com a outra mão, usar a alabarda para cortar o apêndice, desarmando a besta momentaneamente.

O felino urrou de dor enquanto sangue espesso banhou a cultista. Desestabilizada pela posição inoportuna, logo foi jogada longe pelo balanço violento da criatura. No chão, misericórdia alguma lhe foi oferecida. Levantou metade do corpo para ver a onça partindo para cima, dando-lhe tempo somente para estender o braço munido da alabarda.

No fim, o animal abocanhou todo o braço da cultista, indo até abaixo do ombro. Esther deixou escapar um grito, logo sufocado por ela mesma. Os dentes somente a prenderam, deixando boa parte do braço intacto, lhe rendendo mais uma oportunidade. Antes extintas, as flamas retornaram com força total, energia até demais para o membro ferido e exausto suportar. Naquele instante, ela basicamente transformou o braço numa bomba incendiária.

— Engole essa! — bradou antes do fatal momento da explosão.

A dor, ironicamente, foi momentânea, já que as queimaduras causticaram todas as terminações nervosas no membro, totalmente abrasado. Por outro lado, o predador sentiu o efeito total da detonação. Ele recuou vários metros para a direção oposta, tossindo fumaça e sangue. As feridas eram semelhantes à do braço da mulher, mas muito mais profundas, a ponto de impedir que a onça fechasse a boca.

Esther se levantou com dificuldade, agora com a arma na outra mão. O movimento desesperado lhe custou uma parcela irrecuperável do poder ganho. Sem a glória das asas ou de seus cabelos flamejantes, tudo o que sobrou foi uma guerreira chamuscada, coberta de cinzas e sangue.

A determinação era a única coisa que ainda a movia, a fé de retornar e ganhar sua última aposta. Pagar a última promessa.

— Ugh... eu não posso perder. — Ela ergueu a cabeça, encarando a onça de frente enquanto esta preparava outra investida. — Você é bem resistente, huh? Veremos quem cai primeiro!

Mesmo relativamente longe do incêndio, Athert estava coberto de suor. De um paciente ao outro, sua energia esgotava-se cada vez mais depressa, levando junto o estado de espírito pelo dreno. A outra curandeira há muito desmaiou pela fadiga, e todos os esforços que ambos fizeram pareciam não levar a lugar algum.

Os ainda capazes de lutar, pouquíssimos entre eles, estavam destruídos mentalmente. Foram aniquilados sem chance alguma, algo totalmente fora dos padrões. Tinha algo errado, e eles sabiam disso. Naquele momento, o mais sensato seria recuar, mas havia muito maior em jogo. Além de que, o líder da expedição não dava ouvidos a ninguém mais.

Gileon andava de um lado para o outro, as mãos trêmulas enquanto murmurava copiosamente palavras sem esperança, cheias de medo e receio. A escuridão pairava sobre os sobreviventes do massacre, mas os problemas estavam longe de acabar.

Enquanto curava outro ferido, o sacerdote ouviu passos apressados vindo detrás dele. Olhou por cima do ombro e ficou suspirou aliviado por ver as amigas saindo com vida da batalha. Menos um dos muitos problemas.

— Dá uma mãozinha aqui, Shepard! — Pediu, conseguindo uma folga para ir até as duas. — Graças aos céus vocês estão vivas, achei que não iam conseguir.

Foi então que ele viu Emma praticamente desacordada e banhada no próprio sangue. Alex a colocou no chão num misto de cuidado e desespero, depois direcionou o olhar para o clérigo.

— Ela ainda tem salvação, né? — Esforçou-se para perguntar no meio da tosse.

— Espero que sim...

Ele entrelaçou os dedos com os da garota e, com quase toda a sua força restante, cicatrizou o grande corte no braço. Ao contrário do que acreditaram, Emma tomou fôlego no mesmo instante, sem necessidade de qualquer descanso apesar da perda de sangue.

— Emma! — Alex abraçou a amiga, expulsando Athert de perto no processo.

— Não tinha momento melhor não? E pelo amor de Deus, Alex, vai terminar de matar ela desse jeito!

— Foi mal! Eu só... fiquei aliviada. — Limpou a garganta, enfim tranquilizada.

— Athert, quantos...?

Ele desviou o olhar de súbito, compreendendo a pergunta da de cabelos negros.

— Que o Gileon contou? Doze, ele não para de repetir esse número, ficou em choque o desgraçado.

— E o resto?

— Desmotivado demais ou ferido, contei 16 sobreviventes, destes, só 7 podem lutar, mas acho que nem se você pagar eles vão mais...

Emma cerrou o punho, frustrada além da conta.

— Precisamos fazer alguma coisa, não dá pra ficar assim.

— Não dá pra fazer nada, Emma. — Athert rebateu. — Essa missão foi um completo desastre, precisamos recuar e voltar com todo um exército pra matar essa coisa.

Ela se levantou, surpreendendo os dois companheiros ao ficar de frente para o desertor.

— Eu não saio dessa floresta sem a Esther.

— O que deu na sua cabeça?! Aquela mulher tentou te matar há alguns dias e agora você quer salvar ela? Fique agradecida que ela nos comprou tempo, estaríamos todos mortos se não fosse ela.

— Athert...

— Que foi?!

Alheio ao que Alex queria sinalizar, só percebeu tarde demais a expressão sombria no rosto de Emma. Ela tinha os olhos para baixo, os dentes cerrados e os ombros baixos, como se estivesse prestes a desabar em lágrimas ali mesmo.

— Ei... Emma.

Ergueu o rosto de supetão, a feição tomada por uma expressão indecifrável. Os sentimentos por pouco não saíram num choro nervoso. Ignorando completamente os avisos do clérigo, ela partiu em direção do grupo de maltrapilhos moribundos, pegou uma lança no chão e se preparou para dar meia volta. No entanto, foi impedida por Gileon.

— E-Emma! Que bom te ver! Por Deus, me diga que você e a Esther mataram aquela coisa!

— Gileon? Não, não matamos não.

— Então é mesmo o fim... depois dessa, tenho certeza que vou à falência!

— Mas estou indo matar.

— Hein? O que você disse?

— Falei que vou voltar lá para matar a onça.

— C-Como? Você viu o que ela fez conosco, não tem como vencer!

— Tô pouco me fodendo pra suas suposições, velhote.

— Ahn?

Ela então dirigiu o olhar para os soldados conscientes e aptos.

— E vocês aí! Deveriam ter vergonha! — A maneira que falava ganhou a atenção de todos eles, mas não da melhor maneira. — Aquela mulher salvou a vida de vocês! Deu pra todos nós uma segunda chance de lutar! Não importa se estão com medo, peguem essas malditas armas e vão à luta! Vocês vieram aqui pra isso, não vieram?! Podem estar com raiva de mim agora, mas sabem que estou falando a verdade! Somos os únicos capazes de vingar todos os que morreram! E se não quiserem vir, fujam como os medrosos que vocês são!

Finalizado o discurso, a garota virou-se, deu alguns passos e, depois, completou: — Mas, sem ainda tem qualquer honra aí dentro, lutem até o corpo pedir arrego.

Dessa forma, ela saiu com a lança em mãos, passando sem ser impedida pelos dois colegas que a olhavam totalmente descrentes.

— Qual é a dessa garota, hein? — Athert suspirou. Mas a frustração estava longe do fim. — Alex? Tá fazendo o que?

— Ela tá certa.

— Não...Você não pode tá falando sério!

— Não espero que me entenda, mas tenho uma dívida com ela. — Depois de organizar-se, a armeira deu um passo adiante. — Conto contigo!

— Ah?! Nem ferrando! Não vou ser arrastado pra maluquice de vocês duas dessa vez! Vão morrer...! — Seu discurso foi completamente pisoteado pela marcha decidida dos últimos caçadores. — Sozinhas?

Ele olhou para trás, vendo que somente Gileon permaneceu para cuidar dos feridos. Apertou o cetro com força, sentindo a necessidade involuntária dos pés seguirem o caminho. Não queria se render, mas também não queria ser tachado de covarde. Não outra vez.

— Droga! — Ele bradou, correndo atrás de Alex. — Vocês ainda me pagam, suas malditas!

Na liderança da tropa de retaliação, Emma seguia ainda sozinha pela floresta, já podendo sentir o cheiro inconfundível da fumaça. O estalar crepitante também não estava distante, mas, de longe, o mais próximo de si era algo bizarramente familiar.

No meio do caminho, deparou-se com uma chama azulada, queimando sozinha no meio da imensidão verde. Ainda mais estranho, esta não se alastrava, somente pairava no ar.

— Merda... isso não é hora pra alucinar, Emma. — Dito isso, continuou o caminho.

Contudo, assim que ultrapassou a chama e piscou, lá estava ela de novo, a centímetros de seus pés. Ela respirou fundo, dando o melhor de si para ignorar a aparição. Repetiu o processo e, para nenhuma surpresa, ela havia retornado.

 — Ah, qual é!

— Ei, psiu! — Foi chamada, mas não sabia de onde. A voz era distorcida, mas ainda conseguiu perceber um tom brincalhão na mesma.

Olhou por todos os cantos, somente para retornar para a chama e esta estar se moldando. As labaredas safira dançaram e expandiram-se em profusão, aos poucos tomando a forma de uma...

— Raposa?!

Yo! — Ela respondeu quanto totalmente formada. — Bom te ver, dona!

— Ai, deve ser o monóxido de carbono, de jeito nenhum isso é real.

Emma tentou a mesma estratégia outra vez, mas falhou miseravelmente. A raposa apareceu bem à sua frente, mais precisamente, sobre seus pés.

— Ei, isso foi rude, sabia?! Não sou alucinação!

— Você é sim. — Emma chutou a aparição para longe, somente para ela reaparecer segundos depois.

— Tenho certeza que podemos chegar num acordo...

— Sai da minha cabeça, cacete!

— Me escuta, droga! — A voz ecoou dentro do consciente da garota, tomando-lhe a atenção definitivamente. — Precisamos estabelecer umas coisas aqui.

— Tá...?

— É o seguinte, eu sou...! Bom, eu não tenho um nome, na real, mas isso não importa! Acontece que eu sou a fonte do seu poder! Lembra da batalha contra a Garça lá atrás? Então, euzinho aqui!

— E o que diabos é você?!

— Poxa, achei que não ia perguntar! — O espectro então manipulou as próprias chamas para ficar em maior tamanho, alcançando a estatura de uma raposa comum. — Sou um...! Na real eu também não faço ideia, mas sei que nasci dentro de você!

— Vai direto ao ponto, não tenho tempo pra essa palhaçada!

— Ok, ok! Vá com calma, diacho! — Ela subiu até ficar pendurada no ombro da jovem. — É o seguinte, dona: o jeito que você aprendeu a liberar energia tá todo errado! Você sozinha tem sim muita força guardada, mas ela não dura mais que um ataque nas condições atuais. Se nos unirmos, porém, posso tentar melhorar a distribuição de energia nos conectando a fluxo. Isso nos dá... bom, perspectivas melhores de sobrevivermos depois de descarrilhar o caminhão!

— Fluxo? Unir? Eu não tô entendendo é nada!

— Eu posso explicar depois, agora precisamos ajudar a Esther!

— Pelo menos nisso você tem razão. — “Eu tô mesmo falando com a minha própria cabeça, né?”, indagou a si mesma. — Tá, qual é o plano?

— Tudo o que você tem que fazer é dizer “Sintonia” e fazer uma pose estilosa!

— ...

— Tá, a parte da pose era mentira, mas precisamos de uma palavra chave que ativa a nossa união! Só vamos conseguir lutar de igual pra igual com o gato gigante se estivermos nesse estado.

— Quanto tempo duramos?

— Chutando alto? Uns cinco minutos.

— Mais que o suficiente! — Emma então começou a correr na direção das chamas em ímpeto próprio.

Atravessou-as sem dificuldade, abrindo caminho pela floresta abrasada e seguindo os rastros do combate. Não demorou muito para que visse a cena. Esther, mesmo muito ferida, continuava lutando até o último momento. Isso impulsionou os já velozes passos de Emma.

— Dona! Tamo chegando, você tem que dizer a palavra!

— É só eu dizer e pronto?

— Não adianta só dizer, tem que ser do fundo do coração! É um chamado, um desejo do coração! Só assim vai dar certo.

— Ótimo. — A passos cuidadosos, ela deus os passos finais adiante, entrando no campo de visão da outra guerreira que, em primeiro momento, pensou estar vendo coisas, até ouvir: — Aí, gato feio do cacete!

A onça vorpal olhou-a de imediato. Emma jogou o braço carregando a lança para trás, arqueando o corpo. Respirou fundo, já com a palavra que iria dizer na mente. Nela, condensou toda determinação, toda a força e, curiosamente, toda a sua recém-ganha fé.

— Segura essa! — Na iminência do disparo, ela gritou: — TROVÃO!

— Boa escolha, dona! Já comigo!

A palavra serviu como a faísca de ignição para a torrente de energia liberada em seguida. Em menos de um segundo, a sensação que Emma teve no treino com Esther voltou ainda mais intensa, espalhada por todo o corpo junto da adrenalina que corria pelas veias da garota. Por fim, o arremesso da lança foi concluído com êxito.

A arma cortou o ar em velocidade subsônica, deixando para trás um rastro de poeira e cinzas enquanto apagava alguns pequenos focos de incêndio. O felino não teve reação alguma, levando o golpe em cheio numa das pernas e ainda sendo arrastado alguns metros para trás. Pela primeira vez, a lâmina de um dos caçadores penetrou a grossa pele do monstro.

— Emma! Por que demorou tanto, droga?!

— Devia me agradecer que te deixei brincar com ele, agora é minha vez!

— Nossa vez! — Ela corrigiu.

Ferido severamente, o felino partiu a lança com os dentes e rugiu para Emma, correndo na velocidade dela já em velocidade reduzida. Ao invés de correr, ela arrancou contra o animal. Desviou no último segundo graças aos reflexos aprimorados, conseguindo recuperar sua espada perdida na grama. Logo que a pegou, sentiu o fluxo de energia sendo transferido para a lâmina.

— Hora do show!

No mesmo momento, os reforços chegaram, promovendo assim um ataque total contra a fera, já lesionada e exausta demais para reagir.

 Primeiro, Esther saltou para a perna injuriada e, com a alabarda, fez seu último ataque, dilacerando o membro e, finalmente, derrubando a fera. Depois, Alex mirou na parte dianteira, onde cortou os dedos ossudos da besta com as machadinhas. Os soldados furiosos atacaram sem pudor em todos os lugares possíveis, incapacitando ainda mais a onça.

Emma, no entanto, ainda não tinha terminado. Todo as mortes, todas os desejos, ambições e sentimentos perdidos nas chamas, tudo acabaria ali. Bastava um único golpe. Ela então, focou toda a energia no gládio rúnico, sem preocupar-se com as possíveis consequências. Uma a uma, as gravuras ascenderam até o final, preenchendo a inscrição com o fulgor violeta brilhante da jovem.

Aproximou-se do pescoço do bicho, ergueu a lâmina acima da cabeça e, sem hesitar, desceu com tudo. Pele, carne ou osso, nada disso ofereceu a mínima resistência contra o corte na vertical. Ela fora tão rápida que sua espada primeiro surgiu abaixo, depois veio a linha escarlate e, por fim, a separação da cabeça do resto do corpo. Sangue jorrou do ferimento feito à precisão quase cirúrgica, manchando a terra de vermelho.

E assim, tão rápido quanto começou, o combate teve seu fim decisivo. As palavras foram tomadas de todos nos primeiros segundos, até que um dos caçadores arriscou:

— C-Conseguimos?

Ninguém ousou responder, até outro quebrar o silêncio com entusiasmo:

— Acabou! Finalmente acabou!

Daí pra frente, não faltaram comemorações de todos ali. Lágrimas, gritos de felicidade, brados guerreiros para todo o mundo ouvir. Feito ironia do destino, os céus rugiram e, de súbito, a chuva veio para lavar a alma dos guerreiros, tirar-lhes a fuligem, o sangue e, mais importante, lhes conferir esperança.

No final, a fé foi recompensadora. Alex e Athert se abraçaram involuntariamente, somente para afastarem-se no momento em que perceberam o ato.

— Isso nunca aconteceu.

— Concordo!

Os dois logo olharam para Emma, paralisada na mesma posição em que finalizou a batalha. Não havia um sequer movimento além do singelo tremor dos membros inferiores. E, como anunciado por tal sinal, ela desabou no chão, inconsciente, mas não ousou largar a espada.

Esther logo teve o mesmo destino, enfim conseguindo o descanso que o corpo implorava para ter após o exaustivo combate. O mundo escureceu-se para as duas, e só foi clarear algum tempo mais tarde.

O sono estava bom, bom demais para ser verdade. Algo pesou contra o peito da jovem deitada. Ela se remexeu toda, buscando qualquer minuto a mais de sono. A força exterior, porém, não pensava da mesma forma.

— Aí, dona, acorda! — chamou a raposa espectral.

Emma então abriu os olhos, o raciocínio ainda sonolento e os movimentos mais ainda.

— Ah... o que foi?

— Você dormiu pelos últimos dois dias! Sabe quanto tempo eu fiquei sozinha?

— Dois dias? Então quer dizer...

— Sim, tudo voltou ao normal. Bom, quase tudo.

A garota pegou a raposa com as mãos e esticou os braços para cima, erguendo-a no alto dos raios solares.

— Então você era real mesmo.

— Mas é lógico! Você achou que tirou o poder da onde?

— Isso tudo ainda é muito repentino pra mim, foi mal — disse ela, arriscando um sorriso tímido. — Você vai precisar de um nome.

— Nome? É, não parei pra pensar nisso.

— Hm... o que acha de Âme?

— Ei, eu gostei desse nome!

— Perfeito, vai ser Âme então. — Emma olhou ao redor, enfim decidindo questionar: — Onde estamos?

— No chalé do Gileon, ele nos trouxe pra cá depois do combate.

— E onde tá todo mundo?

— Sei lá, não posso me afastar muito de você.

— Hunf, bicho malcriado.

Vista a situação, Emma decidiu explorar por conta própria. Sentiu algumas dores musculares, mas nada capaz de impedi-la. Ficou de pé sem precisar de apoio algum e logo percebeu o sumiço de Âme. Não deu muita importância para o fato, indo direto para a porta do quarto.

Com a mão prestes a rodar a maçaneta, ela hesitou ao ouvir vozes vindo do exterior, mas continuou depois. Abriu para dentro, deparando-se com várias flores deixadas ao pé da porta.

“Ahn?”

— Emma! — Foi tirada de qualquer pergunta pela chamada de Alex.

A amiga correu até a espadachim, mas hesitou em se aproximar muito.

— É... se tá legal?

— Ótima, na verdade. Me sinto até mais leve. — Espiando por cima do ombro, nada viu além da sala vazia. — Cadê o pessoal?

— Esther e Luca estão noutro quarto, já Gileon e o Athert foram lá fora, devem estar voltando já já. Vem cá, vamos espera-los no sofá.

No caminho pelo corredor, Emma indagou: — E as flores?

— Ah, aquilo? Você tem muitos admiradores agora que é a “Cavaleira da Lama”, um apelido carinhoso dado pelos caçadores sobreviventes. Você e a Esther são celebridades em Hermes!

— Credo, espero que ela tenha recebido um apelido melhor.

— Quer saber qual é?

— Melhor não, sinto que terei minha autoestima ferida. — Entre risadas descontraídas, elas chegaram ao móvel. — E o resultado final?

— Depois de matarmos a onça, voltamos para a cidade como os heróis, mas Gileon foi responsabilizado pelas mortes dos caçadores. Apesar disso, ele parece estar mais influente na cidade, esses dias apareceu até com alguns seguranças.

— Pelo menos um final feliz pra essa história toda.

A porta da frente se abriu e, do lado de fora, entraram os dois anteriormente citados por Alex, igualmente pegos de surpresa.

— Emma, que surpresa boa! Como tá a heroína favorita do entreposto?

— Meio dolorida, mas vou melhorar.

— Agradeça ao Athert depois, o rapaz deu tudo de si pra salvar vocês duas e mais uma dezena de soldados.

— É, eu sou demais!

— Só por hoje eu vou deixar essa passar, ouviu?

— Pode deixar!

Apesar do momento descontraído, algo ainda estava faltando. Algo cuja solução Emma tinha na ponta da língua e, finalmente, estava pronta para dizer.

— Pessoal, tenho que contar uma coisa pra vocês.

— Pois fale! Não vá dizer que se apaixonou pelo garotão aqui.

— Corta essa, velho!

— Não, é sério. — O tom na voz dela deu a entender exatamente o dito.

Eles então ficaram em silêncio, à espera da resposta.

— Bom, não é só uma coisa, são várias. Isso pode demorar um tanto, mas vamos lá...

Depois de contar toda a história, os ali presentes estavam chocados, mas, de certa forma, conformados. Emma esperava surtos de descrença ou crises existenciais, mas tudo que conseguiu foram algumas expressões receosas e o fatal silêncio.

— Foi demais? Eu deveria ter esperado mais, foi mal.

— Não é isso, é só que...

— Pensar que já estamos mortos...

— ...

— Eu sempre soube que esse mundo não era o que aparentava! Mas se tudo for verdade, precisamos agir agora. Essa tal Menorá Áurea é uma ameaça, não podemos pensar em como sair com eles na jogada.

— Sair? E tem como voltar pro mundo real?

— Não ouviu ela? Temos uma chance mínima, mas ainda é melhor do que continuar e viver nessa mentira!

— Tem um jeito. — Uma outra voz uniu-se à conversa.

Era Esther, encostada na parede como apoio e, pela expressão em seu rosto, parecia ter ouvido toda a conversa desde o começo, embora isso fosse incerto. Um dos braços estava enfaixado, restringindo parte dos movimentos.

— Sério? Tem mesmo? — Emma indagou.

— Eu não sei... mas tenho certeza que o Lobo sabe. Se chegarem nele, terão a resposta. Eles estão na cordilheira.

— Estão indo para Stawrin? Não serão páreos para a guarda imperial!

— Não sabemos, mas até lá... precisamos resolver outros problemas.

— Como assim, velhote?

— A investigação acerca do cadáver da onça vorpal indicava altos níveis de alvorita no sangue, e isso só pode significar uma coisa: Os veios de Luvy estão vazando, e se isso se espalhar pela região, teremos um cataclisma mil vezes pior do que aconteceu há dois dias. Tenho uma caravana partindo para lá em três dias, vocês vêm comigo, iremos encontrar uma amiga minha. Todos de acordo?

— Fechado.

— Hein? Sem nem questionar?

— É tão surpreendente assim?

— Do jeito que vocês são... enfim, vocês três tem esse tempo para se prepararem, Esther continuará na cidade para me ajudar numas coisinhas. Inclusive, o dever me chama! Até logo, meus melhores soldados! — E, frenético assim, Gileon saiu pela porta da frente.

— Emma, precisamos conversar. — Esther pediu e, embora receosa, foram para o exterior.

Abaixo da árvore solitária, com os cabelos à mercê do vento, as duas rivais encararam-se, não mais para o confronto. Eram, enfim, tempos de paz, mesmo que breves.

— Tudo isso... nem dá pra acreditar.

— Pois é, tudo aconteceu tão rápido.

— Sabe, eu não me arrependo. Ter largado minha antiga vida... as coisas vão ser melhores agora, pra mim e para o Luca.

— Eu ainda tô extremamente cansada, esses três dias não vou fazer absolutamente nada!

— Heh, aproveite enquanto pode. Bem, de qualquer forma, sei que não estou em posição de pedir isso, mas...

— Mas?

— Quando você chegar lá na Fronteira e se encontrar com eles, não fale sobre mim, por favor. Diga que eu morri ou qualquer coisa assim.

— Você tem certeza?

Esther perdeu o olhar no horizonte distante, além das cordilheiras pálidas.

— Tá na hora de eu recomeçar essa história, não tem mais lugar pra mim lá. É melhor assim, pra mim e para eles. — Ela se afastou da árvore em rumo para o chalé. — Isso é tudo, nos vemos mais tarde.

— Tranquilo.

— Ah! E antes que eu me esqueça. — A cultista encarou Emma nos olhos e esboçou um sorriso sincero. — Obrigado, de verdade.

— Eu também agradeço. Agora vai logo, esse papo já tá me dando diabetes.

Despediu-se e, por fim, adentrou a cas. E então, Emma viu-se sozinha no campo verdejante. O sol sobre a cabeça, a verdade liberta do peito e, mais importante, uma nova jornada pela frente. Uma semana se passou dentro do mundo digital e muita coisa mudou. Percepções, amizades, rivalidades, fé e esperança. Mas ela sabia que só estava no começo, e ainda haveria de enfrentar muito mais se quisesse alcançar os inimigos tão distantes.

Seus olhos foram de encontro ao céu azul, imaginando-se como estaria o mundo do outro lado. E, involuntariamente, ela sorriu.

— Ter fé, é?

E, assim, chegamos ao fim do primeiro volume de Re:Nascimento! Quero agradecer a todos vocês que acompanharam até aqui, foi uma longa jornada pra mim, um aprendizado que pretendo levar para frente, com certeza! Antes de anunciar uma última coisa, tenho agradecimentos especiais a alguns colegas que, bem, pra dizer o mínimo, eu não estaria aqui se não fosse por eles.

K.Luz, Cmps e Edu, se não fossem esses caras me incentivando lá atrás, eu certamente não teria chegado tão longe agora, muito obrigado por me apoiarem! Sobre o Altair, admito que não ia muito com a cara dele no começo, mas, nos últimos tempos, ele tem sido minha principal fonte de inspiração e ajuda, por isso, obrigado por tudo! E o Rose, bom, ele pode ser um pouco "maldoso" as vezes, mas sei que o cara é gente boa! Me deu uns bons pitacos durante o caminho, mas isso faz parte do aprendizado. Valeu, Rose! E quanto aos outros que não citei, bom, agradeço de coração por estarem comigo!

Agora, quanto ao anúncio, infelizmente tenho que trazer a notícia de que o 2° volume de RN irá demorar bastante para chegar, não só por umas responsabilidades que surgiram em minha vida agora, como também a necessidade de experiência. Sabem, Re:Nascimento é uma obra que eu quero por o máximo do meu esforço e carinho, por isso não me sinto preparado para continuar agora. Mas não temam! Logo mais, vocês terão notícias de uma nova obra minha no site, e quanto à ela, só posso dizer que vai ser de matar!

Enfim, é isso, obrigado por tudo e até a próxima!



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