Volume 3
Capítulo 126: Dúvidas De Um Traidor
Bocejou alto e esfregou os olhos ainda sonolentos ao jogar a coberta no chão de madeira. Ficou quente nos últimos dias, dormir coberto era um incômodo.
Levou algum tempo para o cérebro despertar, porém o corpo não esperou e começou a se movimentar, levando o jovem para a frente da janela próxima à cama.
Raul encarou o cenário estendendo-se no lado de fora. Diversos Cavaleiros Brancos em suas armaduras recém-polidas transitavam de um lado para o outro, seguindo para o campo de treinamento. O símbolo no peito permanecia inalterável: um Strouth e um Aprum, dois animais-símbolos de Andeavor.
Jogou água no rosto, vestiu sua armadura metálica de Cavaleiro Branco e ajeitou o cabelo castanho, odiava usar elmo, por isso o arremessou pela janela no primeiro dia. A espada média de punho dourado repousava ao lado da cama.
Não queria nada muito extravagante, por isso pediu à sua mestra, Azazel van Elsie, que lhe desse um quarto comum de serviçal. Era um cômodo que fazia o quarto de empregados da mansão Sophiette parecer um castelo quando comparado a ele.
Após embainhar a espada, olhou para a cômoda ao lado da cama e notou um papel amarelado. Era algo que estava sempre em seu bolso: um cartaz de foragido com o rosto da sua irmão ilustrado em carvão.
Pagou caro para conseguir aquilo, mas ter uma lembrança da sua irmão, Ruthy, valia a pena. O carvão usado no desenhado ficava cada vez mais borrado quando desdobrava o papel desgastado pelo tempo.
Na época de sua infância, equipamento como magifotografias eram exclusivos da nobreza, mas, mesmo se não fosse, jamais teriam dinheiro para adquirir um, a menos se roubassem.
Dobrou o papel com cuidado e guardou no interior da sua armadura branca e dourada. Aquele cartaz de procurado o lembrava de qual era o seu objetivo e de quem eram seus inimigos.
Sophia Sophiette Sophys III ainda respirava, logo sua irmã não foi vingada. Precisava se esforçar mais para honrar a memória de Ruthy, apesar de ter repensado muito ao ver Noah se machucando na batalha do castelo.
— Não se preocupe, irmão Ruthy, eu sei o que fazer — murmurou cerrando os punhos metálicos da armadura branca.
Saiu do quarto e atravessou o corredor, seu objetivo era a ala de treinamento no fundo do castelo, pelo menos cinco minutos de caminhada pela grande construção. Ainda se dedicava ao treino infernal mesmo estando naquele nível. O local onde se encontrava era o andar de quartos dos cavaleiros, um enorme corredor que seguia reto, repleto de portas de madeira.
A iluminação do lugar era feita por tochas com fogo mágico, conhecido por outros como fogo do inferno, algo que jamais apagava, não importava as circunstâncias.
Desceu as escadas rapidamente e encontrou alguns Cavaleiros Brancos também seguindo para a ala de treinamento, eles viraram os rostos e apressaram o passo, demonstrando que não esperariam o jovem.
Sua mestra, Azazel van Elsie, conseguiu conquistar o reino tomando a princesa regente, Elisabella Andeavor, como prisioneira e derrotando Sophia e seus amigos no castelo, no entanto a maldita marquesa Sophiette teve sorte de ser salva pela Besta Negra.
Apesar de terem se rendido e acordado em colaborar com a Presidenta do Inferno, os soldados, magos, feiticeiros e todos os outros funcionários não deixavam de esconder sua insatisfação com a tomada forçada do reino.
Metade da população de Andeavor foi morta, os únicos que restaram foram os covardes que baixaram a cabeça para o novo governador, Guller.
Claro, o marquês Guller era apenas uma fachada, todos sabiam que aquele homem era uma simples marionete que repetia as palavras ditas por Elsie. Há dois dias, ele e Edward seguiram para estabelecer acordos com reinos vizinhos, tudo que ele diria foi ensaiado antes de sair.
Aquele porco de cabelos dourados podia não ser leal, mas Edward era como a coleira dele, o marquês se dedicava de corpo e alma para seguir a Presidenta do Inferno.
— Jovem mestre Raul?
Tirou sua atenção do grupo de Cavaleiros Brancos, desvanecendo conforme iam mais a fundo no corredor, e a direcionou para o homem de cabelos curtos brancos arrumados e terno preto.
O homem de uniforme preto o saudou com a mão no peito, curvando um pouco o corpo e retornando-o ao estado inicial devagar. Aquele demônio, era a definição da palavra “elegância”, desde as pontas polidas do cabelo aos sapatos negros lustrosos.
Baal era alguém reservado, por isso jamais perguntou sobre sua semelhança com o mordomo da mansão Soul Za, Edgar. Na verdade, até o motivo de ter se unido a Elsie era um mistério, a demônia explicou-lhe que aquele homem a odiava desde sempre, não imaginava o motivo da sua mudança repentina.
— A senhorita Azazel solicita sua presença na sala do trono — falou apontando em direção ao local, ficava na torre oposta à que se encontrava, na sala do falecido Phillip Andrew ford Andeavor II.
— Ah, certo, obrigado por vir informar, senhor Baal. — Ficou constrangido, aquele serviçal demonstrava seu desprezo a todos, não escondia nada, isto significava que ele era verdadeiro ao tratar Raul com respeito.
— Desculpe pela rudeza, mas há algo perturbando o jovem mestre? — questionou o encarando com os olhos castanhos.
Raul olhou fundo nos olhos tão reluzentes apesar da idade.
Por mais que tentasse se convencer de que fez a escolha certa, sempre sentia um arrepio ao relembrar a cena de Azazel van Gyl atacando Noah. A garota que considerava uma irmã mais nova podia ter morrido se não fosse a intervenção da Besta Negra.
A batalha no castelo o fez se tocar que agora estava ao lado de demônios impiedosos que não se importavam se seu oponente fosse uma criança ou um idoso. Sentiu repulsa ao assistir às execuções dos moradores rebeldes ao lado de sua mestra.
Só queria matar Sophia e vingar sua irmã, por que sequestrou a princesa? Por que aceitou fazer um pacto com a Presidenta do Inferno quando estava prestes a encontrar Ruthy no paraíso?
No entanto, olhava para Baal e não conseguia vê-lo como um monstro, até a luta dele contra Edgar foi justa. Só conseguia ver um homem comum à sua frente.
— Entendo, já vi estes olhos antes. A humanidade do jovem mestre está em conflito devido aos últimos acontecimentos.
Não entendia o motivo, mas confiava naquele serviçal de uniforme negro. Talvez fosse todo o jeito sincero dele, ou talvez porque pensasse que eles tinham algo em comum.
— O senhor sabia que, segundo antigas lendas, os demônios foram criados no passado para servir aos humanos? — Baal virou o rosto e encarou o fim do corredor. — Ainda segundo estas lendas, dizem que os humanos começaram a se corromper e os demônios foram obrigados a se aliar a alguns rebeldes para sobreviver, tomando o poder deles emprestado com a condição de entregar o controle do mundo a eles no fim.
— E os demônios conseguiram vencer os humanos?
— E os demônios conseguiram vencer os humanos. — Balançou a cabeça afirmativamente e, antes que Raul pudesse perguntar “E quanto aos rebeldes?”, ele respondeu: — Os demônios conseguiram sobreviver aos ataques da humanidade e mataram aqueles rebeldes que lhe deram o poder, perdendo assim este poder, mas jamais trocariam um tirano por outro.
— Desculpe, não sei se entendi muito bem o que o senhor quis dizer, senhor Baal, poderia…
— Ah, jovem mestre, o senhor entendeu, sim, se entendeu. Mas creio que a prática é muito melhor do que a teoria. Escuta este barulho? — O homem apontou para um dos quartos do corredor. Raul o reconheceu, eram os aposentos do capitão dos Cavaleiros Brancos, ele ainda não havia saído de lá.
— Acho que o capitão ainda está se recuperando, houve uma festa ontem com muita bebida…
— Álcool, — Baal o interrompeu — álcool é uma das únicas coisas capaz de mostrar a verdadeira face de um humano. Mas diga-me, jovem mestre, o senhor se tornou muito amigo da empregada que arruma os quartos todas as manhãs, não foi?
— Sim, quer dizer, eu…
— Não acha que ela está demorando para sair do quarto do capitão? — Raul arregalou os olhos com as últimas palavras do homem. Entendeu onde ele queria chegar. — Dizem que o capitão se torna bem violento quando está bêbedo e não gosta de ser incomodado.
O homem de uniforme negro saiu da frente recuando alguns passos, pondo as mãos nas costas e fechando os olhos. Ele mantinha a expressão de quem já sabia de tudo o que estava acontecendo.
A porta foi aberta com a violência de um chute. A maçaneta dourado rolou pelo tapete vermelho do cômodo, atraindo o olhar do capitão dos Cavaleiros Brancos.
Era um homem alto, aproximadamente 1,85 de altura, rosto bronzeado pelo excesso de atividades no sol, barba por fazer e enormes costeletas no canto do rosto, conectadas ao cabelo curto negro em corte militar.
O cheiro forte de álcool invadiu as narinas de Raul. O odor desagradável era originado de uma pilha de garrafas de vidro vazias e do homem no centro do quarto. Aslan Redleaf, o nome dele.
Sem pensar duas vezes, Raul apoiou a mão no punho dourado da espada média presa em sua cintura.
Logo abaixo do enorme homem moreno, estava uma garota de cabelos castanhos curtos com lágrimas nos olhos esverdeados. A roupa negra de empregada estava caindo pelos lados, mostrando os ombros delicados e boa parte dos seios modestos.
Ela tentava se libertar das mãos do homem fedendo a álcool, porém uma empregada jamais teria mais força do que alguém com o título de capitão dos Cavaleiros Brancos de Andeavor.
— Ei, moleque, não tá vendo que tô ocupado? — rosnou para o jovem, a voz grave titubeava por conta do excesso de bebida ingerida. — Essa puta veio me acordar logo cedo, ela merece uma punição, não acha? — Apertou os ombros da empregada com força, fazendo-a tremer de medo. — Maldita, eu tava com uma dor de cabeça desgraçada!
— Eu… eu juro que não era e-essa a minha intenção… o-o senhor não colocou a placa de “não perturbe” na porta do quarto… — choramingou a garota com dificuldade. Ela direcionou os olhos marejados verdes para o jovem na porta, buscando sua ajuda.
— Eu não quero saber, empregados que não conseguem cumprir o seu papel merecem ser punidos ou descartados! — berrou empurrando a serviçal no tapete. — Tem sorte que é bonitinha, é do meu agrado… Tá fazendo o quê aqui ainda? Me dê privacidade, moleque.
O barulho da espada de Raul sendo sacada reverberou, mesclado aos passos de Baal adentrando o cômodo.
— Jovem mestre, por que está se importando com a vida de uma simples serviçal? — a voz saía como alguém forçando o drama em uma peça, ele já sabia a resposta da pergunta.
— Fazer isto irá contra os princípios de senhorita Azazel, está pronto realmente para lidar com as consequências? — questionou o demônio ainda com os olhos fechados e um sorriso de leve no rosto. Sua posição mostrava que não iria intervir se Raul decidisse matar o capitão dos Cavaleiros Brancos.
Por um segundo, sua mão relaxou, deixando a espada erguida descer um pouco. Realmente, por que queria ajudar aquela garota?
Os cavaleiros e outras autoridades tinham a permissão de Elsie de fazer o que quisessem com os empregados do castelo, ele não cometia nenhum crime perante a lei ditado pela Presidenta do Inferno.
Era melhor baixar a espada e sair dali?