Volume 2
Capítulo 88: Primeira Declaração Sob A Luz Da Lua
Kurone ficou em silêncio encarando a vasta escuridão.
— O que você fez após aquele dia? — perguntou a voz estranha.
— Nada. Diria que após aquele incidente, foi tudo ladeira abaixo. Fiquei revoltado, mas não podia contar a ninguém, meu pai não apareceu e depois de cinco meses e o dinheiro mensal diminuiu, eu fiquei cada vez mais furioso e deixei de tomar os remédios, apesar de receber eles todos os meses. Fui ficando cada vez mais violento.
— Entendo…
— O pior de tudo foi que eu comecei a agir de maneira fria com a Luna… não tinha como contar que matei o pai dela. Me diz como eu poderia contar isso?! Tentei me afastar, mas não importava o quão longe eu fosse, ele sempre me acompanhava. Enfim, as coisas se tornaram um verdadeiro inferno um ano depois.
— Kurone! Você faltou de novo, onde estava? — a menina perguntou furiosa enquanto apontava o dedo para o garoto à sua frente.
— Hã? Tava andando por aí, algum problema? Sou um cidadão livre, posso ir onde eu quiser — o garoto respondeu em tom rebelde.
Kurone mudou muito em pouco tempo.
Sua pele estava bronzeada e os cabelos anteriormente curtos e negros estavam longos e dourados, com algumas mechas escuras aqui e ali. O uniforme estava completamente bagunçado e ele usava um brinco — aparentemente de pressão — na orelha esquerda. Aquele era um verdadeiro delinquente do fundamental.
— Não me venha com essa! Você está faltando muito na escola! O que foi isso na sua cara? Estava brigando de novo? — Luna repreendeu o primo. A garota retirou um lenço branco da mochila e limpou o rosto dele.
— Para com isso… e por que você tá me seguindo? Eu não vou para casa agora.
— Se eu não estiver perto, você vai acabar se metendo em confusão de novo — comentou a garotinha ficando ao lado dele.
Na verdade, Luna sabia para onde ele iria. Os dois estudantes foram até um velho parque e ficaram lá até escurecer, encarando o movimento da rua.
— É pra cá que você vem quando foge da escola, não é? — perguntou Luna sentada no escorregador.
— Às vezes. Eu gosto desse lugar, as crianças nunca vêm brincar aqui porque os brinquedos estão velhos, mas sempre tem uns delinquentes do ensino médio que querem me expulsar.
— Foram eles que te bateram!
— Eu não apanhei, tá legal? Foi uma luta de igual pra igual, se não fossem três eu teria vencido — comentou irritado.
— Foram TRÊS!!? — a garota gritou surpresa, quase caindo de onde estava.
— Deixa isso pra lá…
Ambos ficaram até tarde naquele parque, conversando ocasionalmente, mas estavam quase sempre focados nos transeuntes. Como já era noite, apenas homens e mulheres com roupas formais voltavam cansados para casa. Uma enorme lua iluminava o local com poucqs lâmpadas.
— Seu pai veio te visitar esse ano? — perguntou Luna repentinamente.
— Não.
— Nem o meu. Minha mãe não liga, mas sinto falta dele. Ela brigaria comigo se me ouvisse falando isso — ela completou em um sorriso forçado.
Kurone cerrou os punhos. A imagem de um garoto abrindo o crânio de um adulto com um bastão voltou à sua mente. — É hora de você voltar para casa — ele disse em tom frio.
— Então vamos…
— Você pode ir na frente, vou ficar mais um pouco aqui.
— Vai deixar mesmo uma garota voltar sozinha para casa? Onde estão seus modos?
— Eu disse que você pode ir na…
— Kurone! — a menina gritou irritada. — Por que você é assim?! Você está sendo idiota! O que eu te fiz para você me tratar desse jeito?! — perguntou furiosa.
“Nada, na verdade, quem fez fui eu!”, pensou apertando os punhos. Como ficou em silêncio, a menina continuou:
— Não consegue perceber que eu só quero…
— Quer o quê?! — disse finalmente exaltado. — Você não sabe de nada…! Se soubesse… se soubesse, nem ia querer ficar perto de mim. Na verdade, você ia desejar me matar! — terminou em um grito choroso.
— É impossível. Eu jamais te odiaria… afinal… — A garota ficou em silêncio, encarando o rosto bronzeado do garoto prestes a chorar. — Realmente não consigo dizer.
— Dizer o quê? Vamos, se começou, termine!
— E-eu… eu… — Luna encarou a lua brilhante atrás do primo exaltado, respirou fundo, segurou a mochila com todas as forças e prosseguiu: — Hoje a l-lua está bonita n-não?! — gritou em um fôlego só.
— Hã…? O que foi isso do nada? Ei, volta aqui!
A menina fugiu antes que Kurone pudesse processar o que fora dito. Ele não tentou segui-la, apenas encarou a lua e pensou nas palavras da prima. Não era sua impressão, tinha certeza que a viu chorando quando passou correndo ao seu lado.
Deixou os ombros caírem de maneira exagerada e sentou-se no balanço encarando a lua. “Droga! O que ela quis dizer?”, pensou enquanto passava as mangas do uniforme nos olhos marejados.
Após alguns minutos, o garoto pegou a bicicleta escondida atrás dos arbustos do parque e foi em direção à casa de Luna.
Em pouco tempo, chegou ao local e ponderou a ideia de bater na porta para verificar se a menina havia chegado em segurança, mas logo desistiu e seguiu em direção à sua casa.
As ruas de Tóquio eram vazias à noite, porém Kurone não tinha medo de ficar fora de casa até tarde, mas sabia que sua mãe se preocuparia. Como não havia muito movimento, ele atravessou os semáforos vermelhos sem preocupação. Chegou em casa em cerca de quinze minutos.
— Mãe, cheguei — disse enquanto atravessava a porta e jogava os sapatos no genkan. — Mãe? Ué, ela já foi dormir? — O garoto olhou intrigado para a sala vazia.
Ele voltou a atenção para o genkan onde havia jogado os sapatos. As sandálias da sua mãe e de Teruhashi não estavam lá, porém tinha um par desconhecido na lateral.
— Kurone. — Uma voz feminina o chamou.
O garoto olhou confuso para a figura. Os cabelos grisalhos enrolados e o rosto enrugado pertenciam à mulher que morava na casa ao lado. Kurone olhou feio para ela e perguntou:
— Onde está minha mãe?
— Escute — começou com certo tom melancólico —, sua mãe e a menina Teruhashi… elas estão no hospital Yamamoto.
— Quê?!!
— Infelizmente a menina Teruhashi foi atropelada…
Antes que a mulher terminasse de falar, Kurone já tinha saído da sala.
Ele saltou na bicicleta descalço e pedalou o mais rápido que conseguia em direção ao hospital. “Droga!”, praguejou internamente ao escutar o som da corrente da bicicleta caindo. Ele jogou o veículo no meio da rua e continuou correndo a pé, sentindo o chão gelado em seus pés descalços.
Quando chegou no hospital com uma fachada enorme, adornado com grandes kanjis brilhantes, estava ofegante. O nariz ardia e as vozes insuportáveis berravam como nunca. Kurone nem pensou duas vezes e saltou no interior da construção.
— Com licença, você não pode…
— Calada! — interrompeu a fala da recepcionista com um rugido. — Onde está Teruhashi Nakano?
— Não podemos divulgar os nomes de nossos pacientes sem…
— Eu tô mandando você me dizer onde tá minha irmã, se não vai falar eu mesmo vou procurar.
— Alguém chame o segurança, por favor — disse a recepcionista assustada com o garoto.
— Não será necessário, ele está comigo. — Uma mulher de rosto magro e sombrio apareceu repentinamente.
— Mãe! Cadê a Teruhashi, disseram que…
— Você está chamando muita atenção, Kurone. Venha comigo, vou te levar ao quarto da Teruhashi. — Ela apontou o longo corredor repleto de luzes amareladas. — Mas não se preocupe, ela vai ficar bem. O atropelamento não foi grave.
— Chega, chega, chega! Não quero ver mais! Eu sei exatamente como isso acaba! — gritou Kurone, desesperado.
— Mas eu não sei. Vamos ver juntos até o fim — respondeu a voz estranha.
O jovem sentiu uma mão pesada tocar seu ombro e olhou para trás. Em meio à escuridão, surgiu a figura de um homem desconhecido. Ele tinha um rosto quadrado rude, barba mal-feita e cabelos grisalhos em um corte militar. O homem tinha um físico bom apesar da idade — ele aparentava ter uns quarenta ou cinquenta anos.
— Você não está sozinho aqui. Nós dois veremos esse inferno até o fim — ele disse em sua voz grave. O uniforme militar verde contrastava em meio à escuridão infindável.
— Na verdade, nós três! — Repentinamente, uma mulher de longos cabelos loiros surgiu das trevas. Ela tinha olhos vermelhos brilhantes e vestia roupas comuns do mundo em que Kurone estivera antes de morrer.
— Viu? Não tem do que você ter medo, não está sozinho. Vamos continuar, moleque.
Por algum motivo, a grave voz daquele homem estranho, que por mais que ele tentasse mantê-la baixa, ainda produzia um grito ensurdecedor, soava reconfortante.
O jovem suspirou profundamente e se preparou para o que seguiria. Enfim, estava perto do clímax de sua antiga vida no Japão. “Vamos lá”, ele fechou os olhos e a cena continuou, como se tivesse apertado o “play” para continuar o filme pausado.