Volume 2
Capítulo 61: Despertar Do Antigo Delinquente
Os corpos permaneceram imóveis, olhos voltados para o cano da arma e respirações ofegantes queimando as narinas.
O interior de Kurone fervia, mana revolvia de um lado para o outro, veias pulsavam no rosto e a cabeça estava prestes a explodir. A sensação de ser incendiado vivo consumia seu ser, era como se as chamas se alastrassem do olho amarelado e da marca da Besta e percorressem todo o seu corpo, dilacerando fibra por fibra dos músculos.
A garota, Flugel, estancando o sangramento, olhou com horror para o seu companheiro, a qualquer momento a vida dele seria ceifada, mas…
— Qual foi, desgraçado? Não vai atirar? — Kurone provocou, aproximando-se ainda mais do assassino, suspirando como se cuspisse flamas no chão.
O homem olhou para o louco à sua frente, baixou a Boito de cano cerrado e falou:
— Tsc, já falei moleque, eu tô velho demais pra essas coisas. — Ele suspirou, relaxando os ombros.
— Eu acreditaria nisso se não tivesse visto você saltando igual macaco pelas casas!
— Você não sabe a dor nas costas que isso me deu. — O assassino pôs as mãos na lombar e produziu um estalo satisfatório. — Tô acabado, já não tenho nem peito mais pra matar alguém. Olhe, minhas mãos estão tremendo!
Kurone franziu o cenho ao escutar as palavras do homem. Ele realmente desistiu ou era algum truque para o fazer baixar a guarda?
— Você é… diferente dos outros — o homem mascarado continuou —, há quanto tempo está nesse mundo?
— Tsc, quase dois meses…
Os dois falavam com vozes roucas, sufocadas, quase como se estivessem no fim da vida. Os pulmões gritavam quando as cordas vocais se moviam — o simples ato de respirar era doloroso, já que a adrenalina desaparecia gradualmente.
— Então você não sabe de nada ainda. Queria alguém com mais experiência… mas você vai servir.
— Do que diabos você tá falando?! Até dois minutos atrás tava querendo me matar e agora vem com essa conversa fiada!
— Essa brincadeira de hoje me mostrou que eu não tenho mais força… a "influenza" já drenou todas as minhas forças.
— Influenza…?
— Sim, eu estou infectado, vivo aqui há mais de trinta anos, é impossível não ser pego por ela. Não aguento mais correr, veja! Estou pra desmaiar nesse exato momento.
O assassino parou por um segundo, respirou fundo e, logo após, olhou para o céu azulado, como que lembrando de algo importante. O movimento seguinte fez o jovem ofegante recuar, assustado.
— Você! — O garoto gritou ao ver o homem tirando a máscara.
O rosto por trás do objeto demoníaco era conhecido unilateralmente por Kurone. As rugas por trás do cabelo grisalho eram inconfundíveis, por mais que ele tivesse visto aquela face por apenas alguns minutos, certa vez.
— … Você é o supervisor do instituto.
As memórias de quando o supervisor misterioso se atirou no chão e gritou como um louco ao ver Rory ainda eram recentes. Ele era um reencarnado, conhecia Cecily, era supervisor do instituto e portava uma Máscara Infernal… como alguém podia ser tão misterioso?
— Sua cabeça deve tá uma bagunça, mas é melhor não se preocupar com isso e focar em correr, quer dizer, se ainda tiver forças.
— Correr?
— A menos que queira morrer, é melhor pegar sua namorada e sair daí, agora! — Antes de terminar de falar, o homem já havia iniciado sua fuga. Ele forçou o corpo cansado e cambaleou pela terra árida da fazenda.
Kurone não pensou, quando alguém o advertia era melhor apenas obedecer, mesmo se seu corpo reclamasse.
— Flugel! A menina!
A jovem estancando o sangramento levantou-se, agarrou a garotinha chorando e correu — a condição das asas não a permitia voar. Algo ruim aconteceria em breve.
Foi questão de segundos para que uma salva de flechas despencasse no local. Caíram em instantes e destruíram todos os legumes da fazendo. "Não é possível isso! Só tem assassino nessa porra!", o garoto praguejou enquanto rolava pela terra.
A chuva mortal cessou e o grupo olhou para trás, todos horrorizados. Se tivessem ficado mais um segundo ali, teriam se tornado uma alfineteira horrenda.
— Que porra foi essa?!
— Eu já disse, você é muito novo. Em breve vai entender, mas por enquanto o melhor é não confiar em ninguém daqui. Não estou me referindo apenas às pessoas de Eragon, ninguém nesse mundo é confiável. — O homem jogou o corpo coberto pelo manto no chão. — Não existe arma que atire tantas flechas assim, isso é magia… Hã? Por que tá me olhando assim?
— Estou apenas seguindo seu conselho. Você é o louco que anda matando crianças por aí, sem falar que eu poderia estar morto agora se aqueles tiros tivessem me acertado!
As fazendas ficavam afastadas da civilização, realmente era impossível uma arma comum atirar tantas flechas daquela distância, mas, de qualquer forma, o homem à sua frente ainda era suspeito.
— Ei, ei, — o assassino esforçou-se para sentar — calma aí! É verdade que eu sequestrei essa menina, mas para salvar ela do verdadeiro assassino. No fim das contas, eu ainda sou um desgraçado com o título de "Lolicon Slayer"... — A voz do homem saía com dificuldade, revelando o estado frágil de sua saúde. Ele repetiu "eu já estou velho demais, moleque" e prosseguiu, forçando ainda mais as cordas vocais:
— Essa máscara me manteve saudável até hoje, mas não adianta mais. Eu sabia que ia morrer antes do festival, embora seja difícil aceitar isso… queria matar pelo menos um daqueles desgraçados, mas vou deixar isso com você…
— Eu não tenho interesse em matar ninguém!
— Mas você vai, se não fizer isso, eles que vão te matar. Tome. — O homem jogou a Boito em direção aos pés do jovem. — Você quer um motivo para matar eles? Agora terá! Putz, essa porra vai doer pra caralho!
— Hã?!
Em instantes a chuva de flechas se repetiu, projéteis caíram impiedosamente na carne deles, provocando dores e sofrimento.
O ombro ferrado foi atingido e Kurone rolou pelo chão, era a terceira vez. Primeiro foram dois tiros de sniper e, um dia depois, uma flecha. Por que o mundo odiava tanto aquele pobre ombro?
Ele tentou ignorar a dor e o sangramento e cobriu-se com o manto, como uma tartaruga em seu casco, esperando o predador desaparecer. No entanto, a dor não era completamente anulada, apesar das flechas não fincarem em sua carne, ele ainda sentia a dor do projétil batendo impiedosamente contra seu corpo coberto pelo tecido.
Uma cena se passou em sua mente: um homem sendo espancado em um beco por um bastão de madeira. A dor que Kurone sentia, naquele momento, era algo semelhante, ele estaria pagando pelos seus crimes? Era o que chamavam de "carma"? O garoto refletiu enquanto sentia a dor de ser espancado por centenas de delinquente, a sensação de quando um projétil atingia a cabeça era insuportável, mas, mais insuportável ainda, eram os gritos vindos do lado de fora de sua "carapaça" branca.
Foram cinco, dez ou talvez quinze minutos intermináveis, uma eternidade de dor infernal para o jovem que gritava ao sentir o impacto das flechas em seu corpo. Os ataques diminuíram lentamente, a chuva cessou e a tartaruga covarde pôs a cabeça para fora da carapaça de pano. Ele examinou o cenário pós-chuva…
Ah, sim, o manto o protegeu novamente. Não podia mais desapegar dele. Era uma roupa sagrada. Cecily sabia disso? Por isso o deu a ele? Sabia que precisaria… sim, sim, muito. Sim, precisaria. Muito! Precisaria daquele manto muito. Era algo inestimável. Inestimável… precisaria do manto, muito, muito, muito, muito mesmo, naquele exato momento! Então por que ele não era útil? Precisaria dele para que seus pensamentos se desviassem.
Por que a SPA não funcionava? Ele se recusava a olhar para trás, então queria se afogar nos pensamentos, pensar em sabe-se lá o quê. Onde estava a maldita síndrome que causou sua morte? Por que não conseguia imergir em pensamentos? Talvez começar a pensar em quem confeccionou aquele tecido mágico que tanto o protegeu… Não adiantava!
Ele não queria ver o resultado, mas os olhos curiosos se voltaram para realidade.
— P-porra!
Sangue, sangue e mais sangue escorria pela terra árida da fazenda. Os três corpos se transformaram em um pedestal horrendo para as flechas sob seus corpos. Kurone não teve reação, a mente perturbada pela falta de remédio ainda tentava assimilar tudo.
Foi menos de 48 horas, mas conversou o suficiente com Flugel para saber de seus objetivos, sabia que uma mãe aguardava o retorno da filha sequestrada e que o homem soterrado pelas flechas tinha muitos segredos, mas, acima de tudo, ainda era um "Lolicon Slayer", eles carregavam o mesmo peso. Pareciam completos desconhecidos, mas não eram.
Aqueles três não eram como os orcs que convocava, sem sentimentos e submissos ao seu mestre, eles tinham uma alma, sonhos, objetivos, familiares…
Silêncio. O jovem encarou a cena grotesca por mais alguns minutos, na espera de um sinal de vida, mas era um ato inútil. Ele já podia começar a chorar pelo perca, porém…
— EU TÔ TE VENDO AÍ, DESGRAÇADO!
Em meio ao cenário deserto das fazendas, o garoto gritou, olhando furioso para o local onde as flechas surgiram. Uma pessoa comum não poderia notar, mas o Olho Sagrado captou a presença vil a vários e vários metros de distância.
Não era um fluxo de mana comum, aquela aura negra só podia pertencer à escória daquele mundo, aos seres que matavam e brincavam com a vida humana por diversão: a presença pertencia a um Duque do Inferno. Era semelhante àquela de Azazel van Gyl, mas não era ela — seria a desprezível van Elsie? Leviathan ford Ingrid? Belphegor dé Halls? Segundo as histórias de Brain, existiam vários suspeitos, e todos igualmente poderosos.
Ele podia apenas sentar a chorar pela perda… se fosse o antigo jovem japonês comum, o garoto dopado por remédios controlados. Mas aquele era um novo Kurone Nakano, o louco que queimou seus remédios e jurou proteger aqueles ao seu redor.
"Se um médico tentar abusar de sua irmã em coma, então encurrale ele em um beco escuro de Tóquio e o espanque, faça-o sofrer até a morte, e depois jogue seu corpo imundo para os cães." Era isso que as vozes diziam. Só precisava fazer aquilo novamente, mas dessa vez o alvo era um demônio, ou melhor, um Duque do Inferno.
Claro, não estava mais nas ruas do Japão, ali não tinha restrições. Ele tinha poder de um reencarnado e uma Boito .20 em mãos, podia torturar da maneira que quisesse o desgraçado. Não tinha tempo para chorar, pois, a cada minuto perdido, o inimigo se distanciava cada vez mais.
"Tente fugir, mas eu memorizei seu fluxo!"
E assim a caçada pelo assassino em série terminou, despertando o antigo delinquente do Japão com sede de sangue adormecido no corpo de Kurone.