Volume 1
Capítulo 7: Jantar na Mansão Soul Za
O laranja de pouco tempo atrás desapareceu do céu devagar, dando espaço ao tom púrpura-escuro — tornando a estrada de terra mais sombria. Tudo escutado era o som produzido pelos animais escondidos nos arbustos.
Já era a noite do segundo dia de Kurone e Rory nesse mundo, a dupla estava em uma carruagem confortável, atravessando as trevas noturnas, em direção à residência do marquês Edward Soul Za.
A residência do nobre excêntrico ficava afastada da vila chamada Grain — onde foram presos —, isolada no alto duma colina. Quando vista de noite, ela lembrava muito as construções presentes nos filmes de terror, que normalmente pertenciam a uma família de vampiros.
As luzes acenderam-se com a aproximação do veículo, tornando a construção mais clara, e afastando o ar macabro do local.
Kurone apreciava o anoitecer pela janela da carruagem, ele tentava memorizar o percurso até a vila — caso fosse necessário, estaria preparado para voltar correndo. Desde os últimos acontecimentos, se tornou um pouco paranoico.
“E a gente acabou se distanciando cada vez mais de nossa missão principal... Ahhh… na verdade, nem sei mesmo qual é a nossa missão exatamente, essa droga parece até de uma história escrita sem planejamento. Como diabos vou falar com a Cecily de novo? ”
Foram necessários mais dez minutos para chegarem ao destino. Em frente ao portão, dois empregados aguardavam-nos. A cocheira desceu do veículo e abriu a porta para os dois descerem — o que acabou demorando um pouco, pois os pés de Kurone estavam adormecidos, ficar tanto tempo sentado na mesma posição fez a circulação sanguínea cessar de vez.
— Ande logo, idiota, eu estou com fome!
— Argh!
O jovem foi arremessado para fora com um chute violento de Rory, que não aguentava mais ficar confinada na carruagem. A irritação da loli delinquente se dava o fato de não comer uma refeição decente desde quando chegou ao novo mundo. Na prisão, tudo que comeram foi apenas um bolo seco, enquanto assinavam alguns papéis.
Tinha certeza que viu Rory se esgueirando para roubar carne do almoço de um dos guardas, mas fingiria que não viu nada.
— Senhor, está tudo bem?
— Sim, sim, valeu.
O empregado que ajudou o jovem a levantar-se era um homem adulto de aparência clichê, mas que vale a citação por sua relevância no futuro. Ele tinha cerca de cinquenta anos, barba branca e um rosto levemente enrugado, porém o corpo era o de um guerreiro.
A empregada, ao lado do homem, era uma jovem que aparentava ter a mesma idade de Kurone. O que mais chamava atenção naquela garota eram os seus cabelos vermelhos-claros, brilhando à luz da lua prateada.
Os olhos afiados da garota se encontraram com os de Kurone por um momento e um arrepio inexplicável tomou conta do corpo do jovem.
— O senhor já consegue ficar de pé? — perguntou o mordomo, chamando a atenção de Kurone, que encarava a garota. O homem possuía um olhar direcionado para o garoto que denunciava o seu pensamento sobre o visitante nesse momento: “Gado.”
— S-sim, sim, consigo!
— Ótimo... — O mordomo ameaçou soltá-lo, mas, antes disso, encostou seu rosto na sua orelha. — É melhor não se aproximar tanto da Brain, senhor... — sussurrou com a voz rouca e, em seguida, soltou-o.
“O que foi isso?” Ao chegar na mansão do marquês, a primeira impressão que teve dos criados foi medo. “Isso não é um bom sinal...”
— Nos acompanhem, o mestre Edward os aguarda na sala de jantar.
— Então o jantar já está pronto, ainda bem — Rory resmungou e, sem demonstrar uma gota de respeito pelo serviço dos empregados, passou na frente dos dois, seguindo na direção apontada pelo mordomo. A velocidade do passo da garotinha esfomeada não permitia que o serviçal a acompanhasse.
Brain — a empregada assim chamada pelo mordomo —, trancava o portão da mansão enquanto Kurone a aguardava. Não podia negar, estava realmente tentando investir na jovem, outro mundo ou não, ela era muito bonita, mas… seus instintos diziam para ficar longe.
Encarou a direção que o mordomo e Rory seguiram.
A residência ficava distante do portão. Da carruagem, Kurone não tinha reparado no jardim com pomares semelhantes aos de maçã e manga. Apesar de ser a residência de um nobre aparentemente importante, o muro chegava a ser mais baixo que o portão negro de grades — esse trancado apenas por um cadeado.
Não havia sinal de qualquer guarda fazendo ronda pelo jardim. De fato, essa mansão era um alvo fácil de ataques inimigos. “Mas quem atacaria esse nobre?”, pensou ao lembrar que o líder dos guardas — Orcus — havia mencionado o fato de ele e Rory serem os primeiros invasores após dez anos pacíficos.
Segundo a explicação meia-boca de Cecily, essas terras não eram atacadas pelo suposto Rei Demônio Belzebu, isso porque não apresentavam nenhum benefício para ele.
Era um reino governado por nobres corruptos que manipulavam o rei, terras estéreis e o pior de tudo: os nobres eram lolicons… novamente, tudo segundo a deusa excêntrica. “Será que o Edward também é? Bem, se for, então não estamos tão distantes assim de nossa missão… apesar de que não posso me precipitar…”
— Terminei de trancar o portão, vamos? — Brain perguntou, interrompendo a linha de pensamento do garoto.
— S-sim.
Interagir com mulheres não era o forte do jovem.
Em sua vida no Japão, as únicas mulheres com quem tivera contato frequentemente eram suas irmãs, a mãe e a psicóloga, a senhorita Kanade. Tirando isso, jamais teve uma conversa de verdade com uma garota que se adequasse ao seu gosto pessoal — foi recluso no fundamental, excluído no ensino médio e reservado na faculdade.
Ah, houve uma exceção no fundamental, mas foi algo breve e com final infeliz, preferia esquecer da sua prima e os sentimentos que ela, Luna Nakano, nutria por ele.
— O marquês deve tá com raiva da gente, não é?
— Não, imagina. Na verdade, eu nunca vi o marquês tão feliz daquele jeito. Só não sei o motivo de vocês terem atacado a vila, vai sair bem caro para consertar aquele portão...
— É complicado de explicar, mas é tudo culpa da Rory.
— Ela é sua irmã? Digo, a garotinha com a presença demoníaca.
Silêncio. Kurone ficou calado para a pergunta repentina de Brain, pegou uma das “maçãs” que estavam penduradas à sua frente e tentou mudar de assunto, explicando os benefícios à saúde da maçã — essa coisa não era doce como a fruta que conhecia.
— Não vai me falar sobre a sua relação com a garotinha presença demoníaca?
— Pera aí, o que você quer dizer com “garotinha presença demoníaca”?!
Após um silêncio momentâneo, ambos concordaram com os olhos em não responder às perguntas. Não sabia se sentia alívio em não contar sua origem e de sua companheira ou ficava assustado com o “garotinha presença demoníaca”, mas decidiu ignorar isso por enquanto.
— Hmm?
— Qual o problema?
— Nada não, só senti um arrepio agora, como se alguém tivesse me olhando…
Talvez fosse a cocheira? Ele esteve incomodado com a maneira como ela o encarava.
De qualquer forma, foi inevitável tocar no assunto de sua origem no jantar. Resumidamente, a história contada por Kurone, entre palavras gaguejadas e inconsistências, foi a seguinte:
Ambos eram moradores de uma vila atacada pelo exército do rei demônio, eram os únicos sobreviventes do ataque. Sem família, dinheiro ou documentos, começaram a trabalhar como aventureiros autônomos, fazendo missões perigosas e suspeitas para nobres e outras pessoas importantes, tentando conseguir dinheiro para ter uma vida decente.
— Que comovente... realmente comovente... — O mordomo ao lado do jovem enxugava as lágrimas que surgiram enquanto escutava a história contada por ele.
Esse mesmo homem apresentou-se mais cedo como Edgar e, pelo que informou, era o único empregado homem da mansão, tirando o jardineiro que só aparecia nos fins de semana.
“Desgraçado, é um protagonista de harém”, foi o que pensou ao escutar a informação.
Antes do jantar, Kurone pegou algumas informações relevantes com Edgar, pareceu uma criança curiosa e sentiu muita vergonha depois, mas pelo menos coletou dados relevantes.
Esse mundo definitivamente era diferente da Europa medieval, como pensou, mas também não se assemelhava a mundos com sistema de RPG, como nas light novels, o deus que criou esse mundo parecia ter pegado muitas referências de diversas culturas e feito um Frankenstein.
A princípio, o nome desse mundo é “Niflheim” e o Rei Demônio se chamava “Belzebu”… Bem, pensaria sobre isso mais tarde.
Pretendia pedir mais informações depois do jantar, com o pretexto de que não era alfabetizado e não frequentou a escola em sua vila, mas Brain, escutando a conversa dos dois, foi quem se voluntariou para ensinar mais sobre senso comum ao jovem.
Ficou nervoso, ter aulas da beldade ruiva era excitante e um pouco preocupante por conta dos calafrios que ela dava.
— O jantar é de vosso agrado?
— Está delicioso, muito obrigado, Edward.
— É comestível... Huhf... mas poderia ser melhor... Huhf... — Apesar de falar em tom de desprezo, Rory devorava um tipo de frango assado como alguém que não comia há séculos. As bochechas cheias e o rosto com óleo denunciavam que ela não estava sendo sincera sobre sua opinião da comida.
Ela estava… fofa. Parecia muito a sua irmã, essa cena fez o seu coração se aquecer um pouco.
— Que bom que está gostando, senhorita Rory — Edward disse sorrindo enquanto limpava as gotas de gordura que a garotinha jorrou em seu rosto.
— Rory! Tenha mais educa… Ahhhhh!!! — O jovem entrecortou sua fala após ser chutado violentamente por Rory e ter sua refeição roubada pela garotinha, tudo que restou no prato foram folhas de algo entre alface e couve.
Igualzinho a Raika, que irônico.
O resto do jantar deu-se de maneira calma ao seu próprio modo. A loli delinquente não falou nada desnecessário — estava ocupada demais empanturrando-se de comida e sendo mimada por duas empregadas que gostaram dela — Gyl e Elsie.
Kurone teve uma conversa formal com Edward sobre alguns locais que já esteve, ele usou os cenários de seus jogos de fantasia favoritos para parecer convincente. Aparentemente, o marquês não suspeitou de sua história.
Conversa vai, conversa vem e, trinta minutos depois, o jantar chegou ao fim. As duas empregadas carregaram Rory, que havia adormecido na mesa, para o quarto de visitas e Edgar guiava Kurone ao seu próprio cômodo.
Uma das serviçais, a que tinha o nome de Elsie, chamou a atenção durante o jantar pelo fato de falar de maneira estranha. Ela se dirigia a Rory inicialmente como “Shenhorita Rory” e, até o fim do jantar, começou a chamar a loli de “Roryjinha”. Isso podia ser chamado de fofo ou esquisito, levando em conta a idade da empregada?
De qualquer forma, havia algo estranho na garota, nenhum dos empregados dessa mansão eram normais...
— É aqui! — Edgar abriu educadamente a porta do quarto. — O marquês disse que quer ter uma conversa com vocês amanhã de manhã, na sala de visitas. É aquela que mostrei ao senhor quando chegamos. — O mordomo despediu-se educadamente de Kurone com uma reverência e foi andando de volta pelo corredor, em direção à sala de jantar.
“Que sujeito legal.”
O quarto de visitas era pequeno e comum, com uma cama de casal no centro e alguns móveis ao lado, como um criado-mudo, uma mesa com livros, dois vasos com plantas, etc. Sem pensar duas vezes, Kurone atirou-se em cima da cama e foi engolido pelo colchão macio.
— É bem melhor que a prisão, com certeza!
O jovem gritou, virou-se para lá e para cá, rolou e cheirou os lençóis, apreciando o quão confortável era a cama que parecia até ter um colchão de água. Tão confortável, tão quente, um verdadeiro inimigo de um assalariado que precisa acordar cedo no dia seguinte.
Um “Toc Toc” despertou Kurone — quase entrando em um sono profundo.
Teve que lutar arduamente contra a vontade de ignorar quem estava batendo na porta. O cansaço tomava conta de seu corpo gradualmente e parecia que a cama com o colchão confortável e os lençóis aquecidos drenavam suas últimas forças, mas tinha a chance de ser Edward na porta, seria rude ignorar o anfitrião.
O barulho da carne tocando a madeira soou novamente em outro “Toc Toc”. “Será um daqueles eventos que uma garota bonita aparece e pede para dormir com o hóspede? Até parece…”
Enfim, depois de três batidas, ele lutou contra a vontade de permanecer na cama e dirigiu-se à porta — pelo menos, tentou ir até lá. A visão turva o impedia de focar no objetivo, o tapete estendido no chão aquecia os pés, dava vontade de deitar lá mesmo e acordar no dia seguinte — quase fez isso, até que outro som que teve a onomatopeia descrita várias vezes anteriormente o chamou de volta para a realidade.
Reunindo todas as suas forças, conseguiu abrir a porta...
— B-Brain!?
… Para ver a empregada de cabelos ruivos do outro lado, usando nada menos que uma camisola semitransparente.
— Posso entrar? — indagou ela.