Volume 1
Capítulo 5: Tirando Neemias do muro
Cerca de trinta aventureiros reuniram-se na entrada da vila, atrás do portão de madeira em seus últimos momentos. A qualquer instante, ele podia cair, o que ainda o mantinha de pé eram as fortes correntes de aço.
À frente dos aventureiros, estavam cinco guardas com armaduras cinzas e ornamentos vermelhos, eram as mesmas vestimentas do homem que convocou os aventureiros; esse mesmo guarda ficou na liderança da batalha. Um símbolo de Andeavor enfeitando seus uniformes reluzia com a luz do sol.
Outros aventureiros, não querendo participar da batalha, ficaram apenas observando do lado de fora da guilda — juntos à mestra de guilda, que se destacava ao longe por seus seios avantajados, e aos outros empregados. Esses eram verdadeiros patifes, estavam prontos para fugir da vila na primeira oportunidade, caso os guerreiros na linha de frente e os guardas não fossem o suficiente para deter as forças inimigas.
O portão balançou com um “Bam!” vindo do outro lado. O som nunca escutado antes assustou os aventureiros. Alguns tremiam amedrontados, enquanto outros ficavam empolgados, afinal, nesse fim de mundo, não era sempre que eram atacados por inimigos — o último evento desse tipo foi o ataque de orcs há dez anos… pensando bem, não havia motivo nenhum para ficar eufórico, isso era uma catástrofe!
Um outro “Bam!” fez as correntes esquerdas se romperem— mais dois disparos em seguida romperam as direitas. Boooom! Com nada mais para o segurar, o grande portão de madeira foi ao chão, formando uma ponte para entrar na vila.
— PREPAREM-SE!!! — O guarda da frente gritou, erguendo sua longa espada brilhante. Ele era destemido, fazia jus ao título de líder da guarda da vila Grain.
A poeira foi baixando aos poucos. Guardas e aventureiros avançaram — cinco de cada vez, por conta da condição em que o portão-ponte estava, pois mesmo em uma batalha de vida ou morte, a segurança vinha sempre em primeiro lugar, todos cresceram temendo as lendas sobre as criaturas abaixo da ponte. O líder parou de repente quando a poeira baixou completamente.
— O-o quê? — O guarda, um homem de meia-idade, murmurou, confuso.
Não havia ninguém do outro lado. Quem quer que fosse que derrubou o portão não estava mais lá. Era uma versão mais assustadora de “bater na porta e sair correndo”.
— Que palhaçada é essa?
— Não baixem a guarda, eles ainda podem estar por perto! — o líder dos guardas gritou em resposta ao protesto do aventureiro com roupas de monge.
Os rostos de todos continham uma expressão de raiva, confusão, medo e ansiedade. Quem fez isso e por quê? Como fugiram tão rápido? Todos se perguntavam internamente, mas ninguém se pronunciava, apenas olhavam para o cenário repleto de gramíneas verdes e depois para o rosto patético de seus companheiros. A planície à frente estava imutável.
Xiiiiiiii.
Apenas o vento perturbava a calmaria.
O silêncio quebrou-se apenas após alguns segundos depois. Três disparos ecoaram da floresta próxima à vila.
— E-ei, o grupo do Flude não foi para lá hoje cedo?
— Tem razão, eles já deviam ter voltado… — respondeu o aventureiro com o rosto coberto por um capuz.
— Os desgraçados devem ter ido pra floresta!
— Como será que você chegou a essa conclusão? Não me admira que ainda seja Rank E com um raciocínio desses — debochou a bruxa.
— Pirralha…
— Deixem o desentendimento pra depois, bora até lá! — O rapaz com o capuz sugeriu ao líder dos guardas, que guardava a espada. O líder acalmou os aventureiros agitados com um “ei, esperem aí!”.
— Apenas metade de nós vamos lá, o resto fica aqui.
Todos concordaram com a sugestão do homem. Não faria sentido se todos fossem e a vila ficasse vulnerável a um ataque. Em instantes, já estava decidido o grupo que ira à floresta, até que o som de mais um disparo ecoou pelo ar.
— Veio do outro lado do muro!
— Como foram tão rápidos?! Idatens?!
O espadachim e a bruxa gritaram em pânico.
Há alguns segundos, o som vinha da floresta, no entanto, já estavam no outro lado da vila. Esses invasores, na verdade, eram algum tipo de demônio? Não seria totalmente impossível, existia uma história antiga sobre uma raça de demônios chamada “idatens” no Continente Demoníaco, conhecidos por sua velocidade impressionante. Inclusive, um dos “Arquiduques do Inferno” pertencia a essa raça.
— Vocês, vão para a floresta, e mais sete vão para o outro lado da vila! Pode ser uma armadilha, por isso, fiquem atentos. — Após a advertência, o líder separou novos grupos com base na força de cada um, deixando apenas onze aventureiros na entrada da vila.
Nos próximos dez minutos não houve mais barulho. Alguns aventureiros começaram a jogar cartas no chão enquanto outros cantarolavam músicas as quais sabiam a letra. Aventureiros estavam prontos para morrer a qualquer momento, um ataque surpresa fazia parte dos ossos do ofício, por isso sempre saíam com passatempos, assim não morreriam de tédio. Em meio a toda aquela confusão, o espadachim loiro e a arqueira pareciam flertar no canto, antes de serem encarados pela bruxa e se separarem.
— Ei, o que é aquilo? — um dos aventureiros perguntou à bruxa ao seu lado; a garota rabiscava palavras de baixo calão no chão, com um o seu báculo de madeira.
— Parece que estão voltando…
— Não é possível aquilo ser alguém naquela velocidade... também não podem ser cavalos… — O espadachim, guardando o que parecia ser um baralho de cartas, enunciou. — Ei Ari, pode ver quem é?
A aventureira tímida, com a Classe “Arqueiro”, que atendia pelo nome de Ari balançou a cabeça de forma afirmativa e se pôs de pé, forçando a visão.
— [Vi-visão de Águia]! — O feitiço utilizado pela arqueira dava a ela uma visão sobre-humana, nada escapava de seus olhos, mas... — Hein?
— O que foi, o que você tá vendo?!
— Não acredito!... — gritou a arqueira, olhando uma segunda vez para confirmar o que estava vendo.
— Não acredita no quê, porra?! Desembucha logo! — protestou a bruxa.
— É uma garotinha carregando um homem nas costas!
— Ehhh? — Todos os aventureiros gritaram em uníssono, a maioria sem digerir direito a frase da menina.
◈◆◇◆◇◆◈
Ao longe — e aproximando-se rapidamente em uma velocidade impressionante — estavam Rory e Kurone.
Graças à habilidade de Rory, que lhe dava uma velocidade semelhante a dos “demônios idatens” (palavras da própria garotinha) e um salto capaz de alcançar cerca de três metros, eles conseguiram dispersar o grupo de aventureiros da vila, deixando apenas “os mais fracos” (palavras de Kurone) na proteção do portão.
Kurone falou algo como “se vamos invadir, é melhor ter um plano” e, após muita relutância e prostração, Rory o escutou. Sim, ficou de joelhos, implorou, chorou, mas o que fez a garotinha concordar foi uma única frase em meio ao seu pedido desesperado: “Eu compro o que você quiser.”
Tinha medo de qual seria o pedido, mas após um rápida discussão, formaram o plano apelidado de “Tirando Neemias do muro” — apesar de que se os habitantes da vila fossem tão inteligentes como o homem descrito nas escrituras sagradas, os aventureiros e guardas nunca teriam se dispersado.
— Lembra do plano, não é, Rory?... Rory, o plano, você lembra?... Rory…
— Ah, sim, o plano. Então, vou mudar ele um pouco.
— Heh?
◈◆◇◆◇◆◈
— Que porra é essa?! Eles são mais rápidos que qualquer cavalo que eu já vi!
— Então foram eles que derrubaram o portão da vila… eu não vou perdoar esses desgraçados! — Erguendo o báculo em direção à nuvem de poeira que se aproximava, a bruxa começou a entoar um feitiço de ataque, com direito a efeitos de carregamento da habilidade.
Nessa vila, ninguém se comparava a ela no quesito magia.
◈◆◇◆◇◆◈
— O plano… você tá simplesmente me ignorando…
— Olha que audácia, eles querem nos atacar — Rory falou tranquilamente para o jovem agarrado em suas costas que tentava desesperadamente confirmar se fariam tudo conforme o planejado. — Não vomite em mim ou vou te jogar aqui.
— Droga, Rory, por que simplesmente não entramos normalmente na vila? E como você pode estar tão calma nessa situação?! Blergh.
— Parece que tenho que explicar tudo para o idiota. É bem simples, como não pode perceber: é mais eficiente dominar essa vila e fazer dos aventureiros nossos escravos, dessa maneira será mais fácil cumprir nosso objetivo, podemos até mesmo iniciar uma ditadura aqui e declarar guerra contra os outros reinos... A propósito, eu disse para não vomitar.
“Tenho certeza que ela falou algo sobre ser simples… Será que isso aqui devia ser um daqueles mundos de construção de reino e eu fiz tudo errado?!”
Mesmo correndo sem parar nos últimos trinta minutos e carregando um jovem com mais que o dobro do seu tamanho nas costas, Rory não aparentava nenhum indício de cansaço. O quão forte era essa garotinha? Havia atributos nesse mundo como nos jogos RPG?
— Agora, tente não morrer.
— Quê? Ei, ei, o plano… — Antes de ter a chance de protestar, Kurone foi arremessado em direção à vila por Rory; ela também impulsionou-se com o calcanhar e deu um salto na mesma direção. Ambos voaram como dois torpedos prontos para destruir nações e dizimar populações.
◈◆◇◆◇◆◈
— Jogaram algo em nossa direção, preparem-se! — o espadachim gritou, tirando sua espada curta, que ansiava por sangue, da cintura.
— [Escudo Mágico], [Proteção Divina]. — Obedecendo à bruxa, o ar modificou-se e ganhou uma cor amarelada. Os ventos fortes transformaram-se em um escudo para proteger o grupo de aventureiros atrás da garota com o cajado.
Rory parou no ar e recuou — como abrisse um paraquedas —, enquanto Kurone passou direto e caiu dentro da vila. O som de ossos saindo do lugar ecoou.
Bam! Bam! Bam!
Com três disparos de Rory, o escudo criado pela bruxa começou a rachar.
— [Melhoria]. — O feitiço de um dos aventureiros restaurou o escudo quase em seu fim.
O som de disparados e a palavra “Melhoria” ecoaram pelo ar várias e várias vezes.
Pouco a pouco, isso tornou-se um ciclo vicioso que ocuparia linhas de repetições das mesmas ações: Rory rachava o escudo, mas ele era restaurado por um dos aventureiros rapidamente.
— Que vermes irritantes, não vou permitir que saiam ilesos dessa vez. — Os olhos da loli brilharam em um vermelho-carmesim intenso e sua presença infestou o local. Parando no ar, ela começou a disparar contra os aventureiros.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho.
BAM! BAM! BAM!
Silêncio. Clique no gatilho…. Silêncio… Clique…
Após uma pausa para recarregar, a salva de balas de 5,56×45 milímetros recomeçou. Os tiros não cessaram até o escudo ser rompido.
O som do escudo desfazendo-se foi semelhante ao de um vidro quebrando. — Protejam-se! — gritou a bruxa enquanto era arremessada para trás com violência.
Pela primeira vez nesse mundo, Rory demonstrou uma expressão facial verdadeira: um sorriso macabro enquanto atirava contra os aventureiros correndo como formigas de uma criança com uma pistola d’água.
— E-ela é uma demônia! U-uma demônia!
— Corram por suas vidas!
Smug. O sorriso da menina aumentou.
— Heh? Agora vou acabar logo com isso… — O sorriso demoníaco esticou-se ao máximo no pequeno rosto infantil. Rory encostou o olho na mira do fuzil para dar tiros mais precisos nos aventureiros.
— Não vou deixar, [Lança Elétrica]! — A bruxa, coberta de lama, ficou de pé novamente e lançou uma lança mágica amarelada em direção à garotinha. Na metade do caminho, a lança transformou-se, os raios formaram padrões e ela ganhou a aparência de uma cobra amarela que se preparava para engolir Rory.
— Tsc, tsc, brincadeira de criança. — Apenas uma bala foi o suficiente para destruir a cobra dourada. Uma bala podia ser mais forte que uma corrente elétrica? — Eu já cansei de perder meu tem…
“Ehhhh!?” Sim, essa foi a única reação de todos, até de Kurone — tentando tirar a lama da roupa. Após a queda, ele cambaleou algumas vezes para chegar nesse local e assistir aos atos criminosos da garotinha. Ficou sem reação ao ver a menina despencando.
Rory caiu no chão como uma pedra após interceptar o ataque de bruxa. A garotinha deu de cara com a grama, de maneira que o som doentio de ossos quebrando reverberou pelo ar, e ela permaneceu imóvel, como se tivesse morrido ali mesmo.
— Eu me rendo, por favor, tenham piedade de mim! É tudo culpa da loli!! Ela que me obrigou a tudo! — Kurone ajoelhou-se em frente aos aventureiros e levou a testa ao chão, fazendo um pedido de desculpas japonês típico.
“Ehhhh?!!” Novamente, todos gritaram em espanto.
— Mas o que diabos tá acontecendo aqui!? — O último grito do dia foi dado pela bruxa coberta de lama.