Príncipe de Olpheia Brasileira

Autor(a): Rhai C. Almeida


Volume 1

Capítulo 40: A Grande Caçada

KANARIS, ACAMPAMENTO IMPROVISADO

 


Muitas vezes, perguntamo-nos qual é nosso propósito em determinado lugar. É natural sentir-se deslocado, como uma peça errante em um tabuleiro cujas regras não compreendemos. Pertencer não é uma tarefa simples; demanda esforço, resiliência e, às vezes, sacrifícios que ainda não estamos prontos para fazer.

E é bem provável que um certo príncipe se sentisse assim; longe do seu lar e de tudo que conhecia, restando apenas a sensação frio intenso atravessar o manto rubro que o envolvia por inteiro. 

Raygan encontrava-se sob a armação da barraca que Daemis avaliava com uma incrível dedicação. Os galhos de pinheiro estavam bem fixos, formando uma cama improvisada que afastava o frio formigante do chão coberto de neve. 

O recruta, com a testa levemente franzida, conferia cada nó nas cordas, garantindo que nada desabasse com o próximo sopro gélido.

— Ray, veja só — apontou para a forragem de pinho. — Logo teremos um lugar decente para dormir.

Sentado com as pernas cruzadas, Raygan observava em silêncio. Daemis estava genuinamente empenhado, como um criado buscando aprovação; com uma determinação honesta, isenta da subserviência típica dos servos do palácio.

Além das barracas dispersas, a névoa acinzentada se erguia em espirais lentas, fundindo-se à vastidão nebulosa que envolvia todos os cantos da floresta. Próximo à fogueira central, cabeças juvenis se juntavam ao redor de um rapaz conhecido por sua habilidade quase mágica em dividir números e resolver cálculos que, para os garotos, pareciam  de outro mundo.

Mas para Raygan, tudo era uma grande besteira.

— Qual é a graça? — perguntou de repente, cruzando os braços sobre o peito. — Até você sabe contar.

Daemis, pensativo, olhou para o céu como se buscasse uma resposta entre as nuvens pesadas.

— Não deveríamos estar lá com eles? — questionou, lançando um olhar furtivo aos dois guardas posicionados à margem da floresta. — Sinto que estamos perdendo algo importante.

Raygan, descansando o cotovelo sobre uma das pernas, e apoiando o rosto na mão, soltou um leve bufar:

— Prefiro ficar aqui.

A proteção da barraca contra os flocos de neve, de certo modo, era mais convidativa que qualquer algazarra perto da fogueira. E Daemis, por sua vez, sacudiu os cachos escuros, limpando os cristais de gelo presos em seu cabelo.

— Consigo ouvir a voz dele — comentou, com o olhar fixo no prego de madeira que mantinha a barraca firme. — Parece o senhor Halcan falando.

A voz do garoto era clara, cuidadosamente preservada do desgaste. Além disso, cada palavra saía intocada pela dúvida — confiante, resoluto, como se estivesse à frente de um destino já escrito, aguardando apenas ser vivido.

Raygan inclinou-se para fora da barraca, vendo a sombra agachada de Daemis. O príncipe inclinou o corpo para frente, próximo da abertura da barraca. Algo havia mudado no semblante do garoto. Seus olhos verdes, normalmente cheios de ingenuidade e esperança, agora exibiam uma expressão difícil de definir. 

Assim, uma dúvida surgiu à mente.

— Você tem medo de ser esquecido pelo velhote? — supôs Raygan.

Daemis abaixou o olhar sereno para os galhos de pinheiro largados na neve.

— Tenho esse direito? — Um riso baixo escapou de seus lábios enquanto se aproximava da abertura. — Eu devo minha vida a ele. Não tenho motivo para reclamar.

Raygan, no entanto, franziu o cenho.

— Se continuar assim, sempre estará abaixo dos outros — disse, com uma provocação velada. 

— É assim que você vê? — indagou Daemis, sentando-se frente a ele. — Estive pensando… Você é como eu.

O rosto de Raygan mudou drasticamente, um tanto desacreditado.

— Suas comparações me enojam.

Mas indiferente a ele, Daemis apenas continuou, dizendo: 

— Mesmo assim, você continua aqui, debaixo da barraca que montei, confortável na cama que construí. E… protegido com a minha manta. — Abriu um sorriso travesso. — Se me odiasse tanto assim, já deveria estar longe, como todos os outros.

Em um segundo, Raygan sentiu o peito acelerar. Um sentimento que ele não conhecia tomou conta dele, espelhando a mesma tensão do debute de Thayrin, mas desta vez não havia nobres ou julgamentos. 

— Você só é capacho, apenas isso! — Desviou o olhar, irritado. — Sou um nobre, e você um forasteiro sem lar!

Era à toa. 

Não importava quantas ofensas fossem proferidas, o idiota mantinha-se sorridente.

Raygan queria encará-lo, mostrar a ele quais eram as funções de um servo. Entretanto, antes que pudesse contrariá-lo, passos abafados sobre a neve desviaram sua atenção. 

Raygan levantou-se, saindo da barraca com os olhos atentos ao horizonte.

— Ray? — Daemis o seguiu, confuso.

Cavalos galopavam, seus cascos fendendo a neve. Vozes fervorosas ecoavam pelo acampamento.

— Está na hora! — bradou um dos cavaleiros, sua voz reverberando pelo lugar.

— O que está acontecendo? — inquiriu um dos garotos, a confusão espalhando-se entre eles.

Oracis, emergindo da grande barraca ao lado do general, ergueu a voz com autoridade:

— Formação!

Enquanto isso, Joellis, ao lado do tio, levantou o rosto, tentando ler a expressão severa dele.

— Vá com ele — ordenou o general.

— Sim, senhor! — respondeu prontamente, marchando para a linha de frente.

Halcan avançou pelo acampamento, cortando o espaço entre as tendas agitadas. Jovens corriam em uma direção, enquanto ele seguia na oposta, como um rio que se recusa a dobrar diante da correnteza. 

O ar estava impregnado com o cheiro metálico de ferrugem, suor e terra revolvida. E à distância, a voz firme de seu sobrinho soava acima da confusão:

— Formem uma fila, por favor!

Oracis, ao lado dele, observava com olhos de falcão, implacável, não deixando escapar um único rosto. 

Halcan, ao mesmo tempo, desviou o caminho em direção aos três cavalos, onde os montadores seguravam as rédeas com mãos calejadas.

— Qual é a situação? — sondou a um dos cavaleiros ao se aproximar.

— Tudo limpo — respondeu o homem, com a voz cheia de cansaço. — Chegaram mais soldados de Jighal. Alguns feridos, outros só exaustos. A trégua deles é uma fachada. Estão só esperando a chance de nos pegar desprevenidos.

Halcan enrugou a testa, mas manteve o tom inalterável:

— Isso não vai acontecer.

O cavaleiro estreitou os olhos.

— E esses garotos? Acha que vão conseguir caçar alguma coisa?

Halcan riu, seco:

— Primeiro, eles vão conhecer a floresta. 

O homem sorriu, balançando a cabeça.

— Meio cruel deixá-los sem almoçar.

— Você ficará por perto — ordenou Halcan. — Já temos dois homens prontos para acompanhá-los.

— Certo, chefe.

Apesar da agitação entre os meninos, animados para o tão aguardando treinamento, Halcan notou dois garotos esgueirando-se entre as barracas. O cavaleiro seguiu o gesto, e atrás do garoto mais alto, ele arregalou os olhos, seu corcel sentindo a mesma tensão que ele, movendo-se.

— Senhor…?! — O homem engoliu em seco, puxando a rédea do animal bruscamente ao reconhecer o mais baixo, de feição nada amigável. — Ele… 

— Junte-se aos outros — cortou Halcan. — Isso é assunto para outra hora.

O homem hesitou, mas obedeceu, inclinando a cabeça antes de se afastar com o cavalo. 

O velho deu alguns passos, parando diante deles com uma expressão severa.

— Por que não estavam com os outros? — interpelou, direto.

Daemis se adiantou, a voz tremendo levemente:

— Senhor… eu…

— Porque eu quis — interrompeu Raygan, arrogante.

E por alguns segundos, o silêncio constrangedor emergiu sobre as copas das árvores.

— Daemis, deixe-nos a sós — mandou.

Relutante a princípio, Daemis seguiu como ordenado, lançando um último olhar para Raygan, que permanecia inabalável, os braços para trás da cintura e a postura desafiadora.

— Não podes esconder-se para sempre — advertiu o velho.

— Estou bem sozinho. — Raygan deu de ombros com desdém. — O cachorrinho que você me deu está fazendo um ótimo trabalho.

Halcan contraiu os olhos, e as rugas em seu rosto aprofundaram-se, marcando ainda mais em sua pele.

— Raygan… — suspirou, passando a mão pelo rosto, em seguida, pela barba espessa. — Preciso que coopere comigo. Não estamos em Ariuch, e não lhe darei tratamento especial. Preciso que obedeça. Não posso cuidar dos outros enquanto me preocupo com sua segurança.

— Alguém aqui pediu proteção? — zombou. — Se não consegue fazer seu trabalho, mande-me de volta ao antigo forte. 

Halcan bufou. Era exatamente isso que ele queria: fugir de suas responsabilidades.

Contudo, quando pensou em repreendê-lo severamente, Joellis surgiu correndo. A brecha que Raygan precisava para sair da presença do velho, bem como sua indiscutível autoridade, lhe permitia. 

— Senhor! Temos um problema!

— O que houve agora? — expôs com visível impaciência.

— Dois garotos estão faltando. Um ficou resfriado, e o irmão mais velho está cuidando dele.

Halcan massageou a têmpora.

— E Oracis?

— Ele xingou bastante — disse com uma careta. — Eu disse a ele para seguirmos com os grupos e que eu poderia acompanhar a dupla.

— Bem… então está disposto a acompanhar o príncipe? — sugeriu Halcan, com ironia.

A cor fugiu do rosto do menino.

— Perdão? — Sua face congelou. — E-eu… não! Claro que não! — gaguejou. — Eu posso acompanhar aquele garoto que o senhor resgatou!

O general ergueu o queixo em um gesto lento, indicando algo atrás de Joellis. 

— O problema é que… — Ele exalou profundamente, como se a própria explicação lhe custasse um pedaço da alma. — Daemis se apegou ao príncipe. E fará o que for preciso para que Raygan o veja da mesma forma que ele o vê.

Atrás dele, Daemis estava ao lado do herdeiro do trono, o sorriso largo e quase servil contrastando com a expressão séria do príncipe, cujo lábio se curvava em uma provocação tão ínfima quanto ameaçadora.

— Tipo o quê? Um servo?! — vozeou, a voz áspera. — Ele realmente agirá como se estivesse no palácio?

— Se for preciso.

— Isso…! — Seus punhos se cerraram, os nós dos dedos ficando brancos. — É horrível!

Halcan, porém, limitou-se a analisar calmamente a indignação do sobrinho. Então, numa voz séria, mas gentil, aconselhou:

— Joe, não permita que seus olhos se tornem uma arma para julgamentos. — Sua mão repousou no ombro direito de Joellis em um toque leve.

— Mas…! — Joellis gesticulou para os dois à frente, seu peito arfando com frustração. — Olha a maneira como ele nos encara! Como se fôssemos nada! Também somos nobres!

Halcan inclinou a cabeça, para perto do ouvido dele. 

— Ainda assim, você não é como ele. — Deslizou a mão sobre os fios da cabeça dele. — Ele é o príncipe, não se esqueça disso. 

Joellis queria discordar, protestar…

— Droga… — murmurou por fim, aceitando a amarga verdade que pesava sobre sua língua.

O som do anúncio reverberou pelo acampamento, como o toque de um sino distante que ressoava nas colinas. O burburinho inicial logo cedeu lugar à movimentação disciplinada dos recrutas, que se organizaram em grupos sob o olhar atento de Oracis. 

Ele se certificou de que nenhum grupo ficasse sem um guia experiente — alguém capaz de conduzi-los ao início do verdadeiro treinamento. Afinal, não havia época melhor para desafiá-los.

A hora da caçada havia chegado.

Diante dos jovens alinhados, Oracis ergueu a voz, firme como um trovão:

— Cada grupo terá um guia — declarou, o olhar implacável percorrendo os rostos tensos dos recrutas. Os guias, ao lado de seus cavalos imponentes, aguardavam em respeitoso silêncio. — Estes homens serão responsáveis por instruí-los: caça, orientação geográfica e sobrevivência.

Os olhos de Oracis se estreitaram, uma advertência que pesou sobre os jovens como uma lâmina invisível.

— Obedeçam.

Em seguida, um dos homens deu um passo à frente. Sua presença irradiava autoridade, e sua voz, ao contrário de Oracis, possuía uma cordialidade desconcertante:

— Sou Asher, líder dos caçadores reais do Império — disse, acolhedor. — Sirvo ao imperador em suas caçadas matinais.

Ele fez uma pausa, permitindo que os recrutas absorvessem a gravidade de suas palavras, antes de prosseguir:

— Estes são Clyvan, Paul, Gregori e Jerome. Eles os guiarão no primeiro treinamento. 

Um sorriso sutil cruzou os lábios de Asher.

— Haverá tempo para brandir espadas e medir forças. Mas, antes disso, precisam aprender a sobreviver.

Os jovens engoliram em seco, alguns inquietos, outros ansiosos. Nove deles deram um passo à frente para se apresentar, uns com confiança e outros hesitantes. O olhar de Asher varreu o grupo, até pousar em um garoto retraído.

Um garoto alto, de corpo saudável e forte, escondido atrás de um menino de olhar intenso, feroz e assustadoramente semelhante ao rei.

— Bem… — retomou o caçador, desviando o olhar. — Vocês, recrutas, já tiveram um vislumbre do que é guerra, graças a Jighal. Mas agora, vamos deixá-la para trás e nos concentrar em algo diferente.

Ele respirou fundo antes de finalizar:

— Prepará-los para um verdadeiro desafio.

O comando seguinte soou como uma trombeta:

— Estão prontos?!

— Sim, senhor! — gritaram os garotos em uníssono.

Como uma marcha sincronizada, eles se dividiram em grupos.

Clyvan, um homem de pele escura e cabelos encaracolados, assumiu a liderança com seu corcel de pelagem prateada. Jerome, o mais jovem entre os caçadores, com um rabo de cavalo desarrumado, tomou a dianteira do segundo grupo. Gregori, de feição severa e cabelo espetado, vasculhou os rostos restantes até seus olhos se fixarem em Thomaz, que sustentava um olhar obstinado.

— Suponho que você seja o mais velho.

— Recruta Thomaz, às suas ordens — respondeu o jovem, inclinando a cabeça.

Em outra área, Paul, de pele clara e cabelos lisos que caíam sobre os ombros, já organizava seu grupo quando Asher, um caçador robusto, que não sentia o peso de seu traje, se aproximou da dupla restante.

— Então, sobraram vocês… — falou, descansando as mãos sobre a cintura. — Você é o recruta? 

Daemis ergueu o queixo, encarando o caçador com uma sutil hesitação.

— Sim…, senhor.

Houve uma pausa pesada.

O príncipe… — pensou Asher, com uma ponta de inquietação. 

O garoto estava diferente: mais alto, as madeixas cortadas, e a expressão distante, quase fria.

— Serão apenas vocês dois?

Uma voz grave respondeu antes que Daemis pudesse falar.

— Está faltando um.

O velho general surgiu com um garoto, a mochila carregada com suprimentos. 

— Cuide deles.

— Com minha vida, chefe — prometeu Asher, inclinando a cabeça em respeito.

Halcan lançou um último olhar a Daemis, o semblante suavizado por um sorriso encoberto pela barba grisalha.

— Você sabe o que fazer.

Daemis apenas acenou, seus cachos se movendo junto ao gesto.

— Vamos! — comandou Asher, montando em seu cavalo com um movimento fluido.

E como um sonho prestes a ser realizado, os grupos partiram, todos tomando uma direção distinta. 

A marcha era abafada sobre o chão úmido da floresta. A neblina densa os engoliu em questão de segundos, transformando-os em vultos até que nada restasse além da quietude relaxante.

Oracis permaneceu imóvel, os olhos austeros seguindo os últimos traços dos jovens desaparecendo entre as árvores. Uma de suas mãos descansava no cabo da espada, mas não ameaçadora — um hábito comum, e até mesmo confortável. 

Adiante, reparou na figura do general se aproximando calmamente, com o peso dos fios brancos sobre a cabeça, e visível na forma como seus ombros ligeiramente arqueavam sob a capa gasta.

Ainda assim, restava um questionamento:

— Por que aceitou a proposta de sua excelência? — indagou Oracis, a voz baixa e respeitosa. 

A pergunta pairou no ar frio.

Ahoneu era exatamente o tipo de homem que faria uma proposta tão ousada, mas Halcan, sem dúvida, não a aceitaria com tanta facilidade.

— Você não colocaria esses pirralhos em perigo —  procedeu, sem arrogância. — Nem se fossem ordens diretas do imperador.

Oracis não escondia que estava curioso e ansioso para ver qual expressão Halcan faria diante de suas palavras.

— O treinamento será bom para eles — declarou Halcan, distante, como se falasse para o vento e não para o comandante ao seu lado. — Eles precisam aprender a se defender. 

Oracis, porém, não se deixou convencer. Seus olhos estreitaram-se, a voz ganhando uma gravidade ainda mais incisiva:

— Não conseguirá protegê-lo, não importa quanto tente esconder. — Sua voz agora era menos severa.

Halcan respirou fundo, a tensão percorrendo seus ombros por um breve instante.

— Eu sei.

Todavia, o comandante não acreditava que aquela admissão fosse suficiente.

— A voz e o corpo não mentem, senhor — afirmou, desviando o olhar para além das árvores antigas que envolviam o acampamento. — Ele não é mais um garoto, e quando menos esperar, estará lutando ao seu lado no campo de batalha.

Por um momento, o vento soprou entre eles, batendo contra os galhos gastos.

O veterano não se moveu. Uma expressão era um mistério, caminhando em direção à tenda. 

O comandante o observou afastar-se, o olhar se dissolvendo na linha indistinta do acampamento. A resposta silenciosa do general parecia persistir, rondando entre os pinheiros à beira da floresta, perdida no céu; fugindo da verdade que teimava em alcançá-la.


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Ribeira dos Desejos.

 

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