Volume 1
Capítulo 29: Trilha de sangue
Tem um som característico que, por mais ameaçador que seja, transmitia uma certa calma para mim que ouvia de longe, o eco dos tiros. Tentar decifrar o que acontecia no campo de batalha através deles me deixava entretida enquanto aguardava por ordens.
— Parece que estão tomando uma surra…
— O que esperava de vagabundos que acabaram de sair da cadeia?
— Pelo menos vão tirar a atenção dos homens de verdade.
Estávamos fazendo o reconhecimento de uma cidade que tentávamos capturar a semanas, atacando as defensas em ondas humanas compostas em sua maioria por presidiários que resolveram tentar terem as penas perdoadas caso sobrevivessem.
As palavras deles me ajudaram a ter uma visão um pouco melhor do que estava acontecendo. Os disparos incessantes eram a tentativa desesperada deles se manterem vivos.
— Sargento! Pegue seus homens, vamos avançar — falou o comandante pelo rádio a partir da outra equipe cobrindo o lado oposto da rua.
— Vamos, estão quase vencendo!
— Pra que colocar nosso pescoço na reta?
Meus soldados resmungavam inquietos, nada que um empurrão com a coronha da arma não resolvesse.
Diante de nós estavam as ruínas do que outrora foi uma cidade próspera, mas que agora não passavam de escombros, um cemitério para seus antigos moradores.
O som dos tiros foi ficando mais alto, porém menos frequente. O último reduto de resistência, um antigo complexo industrial, estava prestes a cair.
— Como têm tanta certeza que ele ainda vai estar lá?
— A inteligência diz que não o viu sair.
— E se já estiver morto?
O Cutuquei mais uma vez com a arma, no mesmo instante em que começou a diminuir o passo por conta da tagarelice.
— Soldados que fazem perguntas só atrapalham.
Ele me olhou com desdém, sabia muito bem que não gostava da ideia de receber ordens de uma mulher, ao mesmo tempo não era tonto pra seguir questionando.
Depois de alguns minutos, estávamos no flanco mais distante das nossas tropas, praticamente atrás das linhas inimigas, onde era possível observar um longo comboio de militares e civis evacuando a cidade.
Após observar com os binóculos, meu líder disse — Nem sinal dele. Pelo visto vai ser o último o sair.
— Quanto tempo vai levar?
— O comando estava prestes a lançar uma nova onda. Vão usar os pelotões penais pra quebrá-los e os mercenários vão aproveitar as brechas pra acertar onde doí mais, então, não muito, sargento.
Em pouco tempo de espera, o som dos tiros ficaram mais altos e a artilharia se tornou bem mais intensa do que nunca.
O comandante fez um sinal para prosseguirmos e trocar os uniformes.
Nosso equipamento já era em diversas formas semelhante, só precisamos nos ater aos detalhes, como as faixas em azul e amarelo, com uma touca para cobrir o rosto.
Continuamos por entre escombros, sabendo dos riscos. A artilharia já começava a ficar cada vez mais próxima, assim como o som das explosões.
Suficientemente longe dos olhos do inimigo, nos entrincheiramos a espera deles, com alguns punhados de drones de reconhecimento adaptados.
Haviam poucas rotas de fuga pelas quais nos dispersamos. Iriamos nos certificar de usarem aquela onde estariam mais vulneráveis.
— Parece que ainda estão teimando em resistir — Falou um dos nossos operadores.
— Mande corrigirem o fogo de artilharia.
— Droga! — Ouvi-se o som tiros vindos diretamente do headset dele, ao mesmo tempo que tentava arrancá-los — Já era, um Gepard me pegou.
— Da próxima corta o áudio. Não vale a pena ficar surdo — respondeu o segundo operador, ainda operacional.
Só depois do prédio começar a receber taques diretos e estar na iminência de ser cercado, o último comboio evacuou.
— Confirma o alvo?
— Vai ser difícil, o Gepard tá com eles.
— Deixaram mais alguma defesa antiaérea pra trás?
— Algumas fixas, provavelmente sem munição.
— Não desperdiçariam recursos valiosos por nada.
Bastou olhá-lo com um aceno de cabeça para que o soldado compreendesse a ordem. A tela do notebook se dividiu com a imagem de várias outras câmeras que espreitavam a formação por diversos ângulos.
— Quantos estão online?
— 22, senhor.
— Então maioria conseguiu passar.
Como lobos cercando as ovelhas, os drones começaram a avançar por entre as casas destruídas, indo de encontro com o Gepard que liderava o grupo.
Antes de poder atingir a torre, um Haumvee, que seguia mais atrás, disparou, arrancando um dos rotores, suficiente para mudar sua trajetória e causar apenas danos fagulhas que se dispersaram pela blindagem.
Tendo perdido o elemento surpresa, os canhões duplos do blindado apontaram para três outros pontos antes discretos no horizonte. As munições traçaram linhas vermelhas que terminaram em explosões em pleno céu, engolindo todas as aeronaves.
— Porra! Por que foi se apressar?!
— Se não fosse a metralhadora tinha, acertado a merda daquela torre!
— Foco!!
Os outros drones atacaram em ondas esporádicas, de tempos em tempos, até o som de tiros, motores e esteiras ficarem mais e mais destacado nos nossos ouvidos.
— Todos em posição? — Perguntou o comandante pelo rádio.
Com ele atentamente olhando pela janela em direção a rua de onde vinha o barulho, percebi que era melhor fazer o mesmo.
O Gepard vinha na frente, seus canhões girando, provavelmente pelas interferências no radar por conta dos prédios. Dois humvees o seguiam, atrás deles um caminhão de tropas. No meio, onde era previsto estar nosso alvo, se encontrava um BTR-80.
— Ao meu sinal, detone as cargas — disse o comandante tocando meu ombro.
Mais cedo ele havia me dado um detonador que explicou ser parte do motivo de precisarmos encurralá-los a seguir aquela rota especifica. Não vou mentir em dizer que meu polegar ficou incrivelmente trêmulo pela espera.
— Agora!
Duas explosões próximas aos eixos o fizeram o BTR deslizar sobre a estrada, com os veículos que seguiam atrás quase o atingindo.
Sem pensar duas vezes, eles deram a volta para socorrê-los, uma brecha muito bem explorada pela equipe que estava no topo de um dos prédios, que atingiu a lateral de um dos humvees com um RPG, fazendo-o capotar.
Infelizmente, o Gepard os avistou, disparando seus enormes canhões, levantando uma nuvem de fumaça e fogo que engoliu toda parte superior.
A sorte dele durou, pouco e rapidamente foi atingido por um drone, detonando a munição do canhão direito, os estilhaços abriarm na lona do caminhão ao lado, alguns corpos caindo para fora.
Nossos homens abriram fogo contra eles, disparando contra os poucos a alcançarem o BTR. Uma resistência fútil, não tinham mais como se recuperar.
Sem demora, corremos o mais rápido possível para resgatar o alvo.
Um soldado cambaleante abriu a escotilha. Quando constatamos não ser quem estávamos atrás, não tinha porque mantê-lo vivo.
Meus colegas apontaram as lanternas para dentro do compartimento escuro, atirando em todos os moribundos depois de serem identificados. Após o terceiro, o general surgiu tossindo, tentando levantar.
Ele foi arrancando de lá como um saco de batatas. Em seguida, jogaram uma granada para dentro para nos certificarmos de que não haveria testemunhas.
— // — // —
Na cozinha, Mutsuki permanecia rígida, escutando Asashio cabisbaixa que olhava para as mãos com um olhar distante.
— Depois disso, nós o… Interrogamos…
— Você o interrogou…? — perguntou baixinho, como se não quisesse fazê-lo.
A resposta foi o silêncio, junto da rigidez de sua postura.
— Quer falar sobre isso?
— Você não quer ouvir…
— Não, eu quero.
Asashio começou a esfregar as mãos com força, sem levantar a cabeça.
— Levamos ele até um lugar isolado no meio de um matagal e o amarramos numa árvore. Pra pouparmos tempo… — hesitou por um instante — resolvemos atear fogo nos pés dele e… e…
Ela começou a tremer, abriu os olhos. Após um algum tempo, retomou a calma e continuou em tom desinteressado.
— Ele era muito mais duro do que parecia, um homem que fazia jus a reputação de O Urso de Bakhmut. Despejei vodca por cima das feridas para ver se ele amolecia. Nunca vi tanto ódio transbordar de uma pessoa. No fim das contas não consegui arrancar nada dele. Seja de enfarto ou de choque, acabou morrendo antes de poder fazê-lo.
Levantou a cabeça para encarar Mutsuki nos olhos, a mesma segurando a mão direita trêmula com a arma ainda escondida.
— Está com medo? Falei que não ia querer saber.
Sua mão foi até a leteral da cabeça, soltando um gemido e de repente mudou sua expressão, de indiferente para o mesmo olhar baixo e melancólico de antes.
— Desculpa querida, desculpa… — continuou com uma voz chorosa — Não queria te chatear…
— Asashio… — engoliu seco — Quero que continue…
— // — // —
Na estrada, o som do ronco de um motor era acompanhado pela luz sobre o asfalto.
— Pegou alguma coisa no rádio? — perguntou o motorista.
— Bah, parece que deu um baita acidente mais pra frente.
— Tudo menos isso… — suspirou
— Mano, me fala pra que ir tão longe por essas gurias?
— Seria mais fácil abandoná-las, né? — sorriu melancolicamente — Tem um lado meu que fico feliz que tenha sobrevivido até hoje, minha ingenuidade. Não consigo desistir de ninguém até ter certeza absoluta de que não há mais salvação. Tantas pessoas desistiram de mim, me abandonaram por motivos que desconheço e os poucos que sei, são banais. Odeio tanto essas pessoas que não quero me tornar uma delas, então… Preciso ter certeza.
Guilherme ficou um pouco pensativo antes de responder.
— É muita sacanagem o que fizeram contigo.
De repente, apertou o fone contra o ouvido.
— Matheus… Encontraram um corpo.
Ele deixou sua frustração se dissipar acelerando a moto o máximo que conseguiu, cerrando os dentes.
Pouco depois, na cena do crime, os dois olharam alguns policiais cercarem o perímetro, enquanto outro colhia o depoimento de um senhor de idade.
— Deixa que eu falo com eles.
Ao se aproximar, o policial o olhou para com estranheza, tanto para suas feições estrangeiras, como, principalmente, para o braço esquerdo.
— Boa noite. Desculpe perguntar, mas aconteceu alguma coisa?
— Aparentemente uma briga de gangues.
— Briga de gangues?
— Foi, mas não posso lhe passar mais detalhes que isso — balançou a cabeça relutante.
— Oficial, já perdi muitas coisas nessa vida — falou olhando para a prótese — Só quero gostaria de saber se estou em segurança.
— Bom… — coçou a cabeça — Encontramos um membro de uma gangue local, morto. Ficamos sabendo que estava seguindo uma garota mais cedo. Acho que deveria ser parente de alguém da Yakuza.
— Da Yakuza?
Suspirou antes de responder.
— O jeito que deixaram o corpo… Não é coisa de um meliante qualquer.
Por alguns segundos permaneceu com o olhar distante.
— Sugiro que tranque muito bem a sua casa, não me admiraria das coisas escalarem.
— Eu vou… Muito obrigado.
Subindo de volta a moto, seu companheiro o perguntou.
— O que disseram?
— Não prestou atenção?
— Só ouvi a parte do Arigato. Esses caras falam baixo demais.
— Pra resumir, foi bom ter trazido meu fuzil…
Então deram a partida mais uma vez.
— // — // —
Num carro parado em um beco sujo com água empossada e cercado de lixo, quatro homens estavam a sua volta, alguns com cigarros em mãos e inquietos.
— Não acredito que fizeram isso com … — falou um deles levando a mão a cabeça e suspirando.
Outro veio chutar a roda com força, fazendo-o sacudir.
— Mas que merda! Ontem a gente tava enchendo a cara e agora alguém matou ele que nem um animal!
— Acha que foi a Yakuza, Haru?
— Não me interessa quem foi, Kenji! Eu quero quem quer que seja morto! Era o meu irmão cara!!
— Gente, acho que descobri uma coisa — falou um terceiro que segurava uma carteira — Antes da gente sair, achei essa carteira no chão.
O mais agitado arrancou o que estava segurando.
— Satsuki?! — esbravejou olhando para a foto na identidade — Vou fazer essa puta se arrepender amargamente!
— // — // —
A silhueta caminhava pelo quintal de uma casa ainda em construção, iluminada por uma mistura do azul da lua e carmesim do sangue.
No esqueleto do que viria a ser uma casa de dois andares, ela a observou com intriga, mesmo que com o olhar pouco emotivo e a movimentação lenta.
Quando entrou pelo marco grande o suficiente para uma porta dupla, repousou a mão sobre ele, para se segurar enquanto olhava para dentro.
— Saudade de brincar nas escadas. Eu ficava brincando de boneca nos degraus enquanto você lia aqueles seus livrinhos… Não acha que está confundindo as coisas?
O tom de sua voz ficou mais frio e lento.
— Quem costumava ler era eu e as escadarias ficavam no caminho para o colégio, perto da praça.
Ela levou as mãos a cabeça e cerrou os dentes, balançando de um lado para outro.
— Me deixa em paz!
Cerrando o punho direito e levantando a cabeça, sua expressão voltou a ficar mais calma.
— Não está curiosa em me conhecer melhor? Você sente essa curiosidade tanto quanto eu. Deu pra sentir você tremer de excitação durante o procedimento de mais cedo…
Seu punho foi direito contra a parede, machucando-o a ponto de deixar uma macha de sangue escorrendo por ela.
— Pode tentar disfarçar, mas teve a mesma curiosidade de quando se corta, de saber o quanto consegue machucar a si… Eu mereço o pior. A dor no meu corpo é a única capaz de me fazer esquecer…
Satsuki caminhou de volta ao pátio e ficou olhando para a lua.
— Bonita, não é? Me lembra até daquelas noites… Por favor…! No escuro sentindo o calor daquele toque, longe dos olhos de todos… — falou de forma que oscilava de chorosa a séria — Foi tão maravilhoso que mau consigo acreditar que foi feito com suas próprias mãos…Chega!!!
Tapando os ouvidos, ela correu desesperada rua a fora. Quando se deu conta, corria pelo meio da estrada, chamando a atenção de um carro que passava, o motorista pegando o celular e levando ao ouvido.
— // — // —
Continuamos a fazer operações de alto risco como esta por messes, a maior parte atrás das linhas inimigas e todas focadas no mesmo objetivo, inteligência.
A especial brutalidade dos interrogatórios e a indiferença a prisioneiros nos rendeu o apelido de Açougueiros das Estepes e eu era a responsável por grande parte desta fama, apensar de ser a que menos se envolvia nas trocas de tiros.
De uma garota pobre e sem futuro para um soldado de elite, temida e odiada, respeitada até pelos membros indisciplinados do esquadrão.
Não vou mentir, aprendi a gostar ainda mais do que fazia. Chegava a sonhar com aquilo que faria a seguir.
Em uma dessas noites, podia ver o som de tiros, gritos dos feridos, o calor das explosões, vozes me chamando. Aconteceu que não era um sonho.
Um dos meus solados me acordou gritando, comigo ainda sem entender o que estava de fato acontecendo. Na mesma hora, o sangue dele espirrou sobre mim.
Limpei meu rosto, coloquei o colete e peguei meu fuzil, em meio ao som de explosões e tiros que já acertavam a casa.
Estávamos nos escondendo em uma vila abandonada, usada como posto avançado, juntos de um grupo de mercenários. A hora não poderia ter sido melhor, no outro dia nos preparávamos para mais uma operação.
Corri de forma desengonçada até o QG improvisado e encontrei meus outros colegas tentando se organizarem, o comandante segurando um ferimento na cabeça.
— Será que foram os drones?
— Deve ter sido algum daqueles mercenários desgraçados postando foto no instagram!
— Chega! Preciso de todos em…
Ele nunca completou a frase… Um disparo de artilharia fez tudo desmoronar por cima de nós.
Acordei de manhã, sem conseguir sentir meu corpo, com a visão turva e quase surda.
Nos poucos vultos que percebi passar, pude ver capacetes e braçadeiras em tons de azul e amarelo, um deles apontando uma câmera para os corpos de meus companheiros.
Como não me viram, não sei dizer, talvez estivesse coberta de poeira demais e escombros.
Lá, passei muito tempo, muito tempo… Até finalmente conseguir voltar a me mexer.
Quando examinei meu corpo, percebi que tinha um pedaço de madeira cravado nas costas, logo abaixo do ombro direito. Minha sorte é que não estava sangrando, nem tinha perfurado o pulmão, ainda sim, precisa buscar ajuda.
Não ia me dar ao luxo de verificar meus colegas, até porque o inimigo já o tinha feito. Também estava tonta e confusa demais para pensar sobre isso; Agi por instinto.
Caminhei, caminhei e caminhei…
Por uma direção que vagamente lembrava ser importante.
Quando tombei pela estrada, logo entendi que não conseguiria mais levantar, então esperei…
Para minha surpresa, invés de congelar, logo senti calor. O calor dela, a pessoa mais importante de minha vida…
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