Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 1: Neurônios Espelho

Um capítulo novo toda sexta-feira!

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O lugar era movimentado, com vários transeuntes de todas as formas e cores cruzando umas pelas outras. Tratava-se de um shopping, com lojas capazes de oferecer todo tipo de serviço, desde venda de doces até atendimento médico básico.

Um local específico em seu interior se destacava por ter muito poucas pessoas, mas não por ser pouco movimentado. No interior escuro, com um cheiro característico de forro recém lavado e pipoca, iluminado por uma tela imensa, se passava um filme.

Seu início era em algum lugar da África extremamente pobre e miserável, com várias pessoas sendo massacradas por diferenças étnicas e religiosas. Gente magra até os ossos, mães correndo desesperadas para pegar comida para seus filhos famintos, homens armados disparando contra eles.

Era uma cena típica daqueles povos, mas um espetáculo que tirava o sorriso do rosto de quem assistia, a exceção desses que se mantinham conversando ou até brincando de cutucar o outro a sua frente, todos com uniforme da mesma escola.

Mas por que algumas pessoas se sentiam tão atingidas por aquela visão?

Nada disso estava acontecendo com elas e nem mesmo era real, embora retratasse um cenário sobre aquela região específica. Eram apenas atores contracenando, com sangue falso e maquiagem, mas o suficiente para abalar uma jovem.

O que foi Mutsuki? É só um filme — perguntou uma menina a seu lado.

Ele é muito triste, Kanae. Não consigo parar de sentir pena deles — respondeu limpando as lágrimas de seu rosto.

Que isso, também não é pra tanto. Aqui ó, pega esse milkshake e se acalma.

A garota em questão era Mutsuki Chikuma, uma estudante do ensino médio. Era uma menina de cabelos pretos compridos, com olhos azuis e um rosto bem carnudo, assim como seu corpo, em uma medida acima da maioria e bem elegante.

O responsável pelo seu contato emocional com aquele filme eram os chamados neurônios espelho, que faziam a pessoa se colocar naquela situação à sua frente de maneira instintiva. Era um dos pilares da empatia.

Algumas pessoas sentiam mais seus efeitos do que outras, mas todas tinham esta capacidade em alguma medida. No caso dos outros estudantes, essas cenas brutais não tinham qualquer impacto. De toda forma, o ser humano podia ser uma espécie extremamente egoísta.

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A luz do sol do meio-dia ofuscou a visão da jovem estudante ao sair do recinto pouco iluminado que ficava na cidade de Nagasaki.

E aí, Mutsuki. O que você achou do filme?

Você ainda pergunta, Mika? O professor Myoko que mandou a gente fazer um trabalho sobre aquilo pode ir se ferrar!

Ela e suas amigas estavam caminhando pela rua em frente ao shopping após o término do filme. Seu olhar era cabisbaixo e seus ombros estavam curvados, até começar a falar mal de seu professor de estudos sociais.

Hahaha, não fala mal assim dele. Você só tá brava mesmo porque ele te pegou matando aula esses dias.

Aff, Mika. Acreditam que ele até me puxou pela mão pra fora da padaria?! e o pior! Eu perdi toda a promoção de salgadinhos!

Credo, mas não se preocupa, eu tenho o remédio pra isso. Por que eu, você e a Mika não vamos para o karaokê mais tarde?

Ah, meninas, é que tenho que trabalhar. Sabem como é, meus pais são mesquinhos com dinheiro, isso que sou eu que arrumo a casa inteira porque eles tão sempre no trabalho e só sabem me dar ordens! Assim que tiver dinheiro vou vazar de lá!

Com o punho cerrado em frente a seu peito, Mutsuki abriu um sorriso de vitória, como se seu trabalho duro estivesse a caminho de ser recompensado. Suas amigas, para entrar no clima, lhe deram alguns tapinhas nas costas para ajudar com sua postura.

Assim elas percorreram seu caminho de volta para casa, com galhofas, camaradagem e a amabilidade de garotas no auge da puberdade. De fato, o barulho incomodava bastante os pedestres à sua volta.

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Ela trabalhava em uma loja de doces não muito distante de sua casa. O lugar era mais para o lado kawaii dos estabelecimentos com nomes de doces ao estilo kyun-kyun e moe-moe. Sua fachada era composta de um garota fofa lançando beijos, com vitrines amplas o suficiente para ver o que havia dentro. Uma televisão passava algum anime de garotas mágicas, que na verdade era uma propaganda de alguns de seus produtos, os mais melosos.

O que realmente chamava a atenção era um rapaz mais novo de óculos, acima do peso, com a fala completamente enrolada e uma atendente com uniforme de empregada.

Ah, mestre quer algo para adoçar sua boca ou aquecer seu coração?

Mutsuki ficou olhando da porta sua superiora atender um dos clientes, com um sorriso meloso e artificial.

O que você me recomendaria… Misazinha? — disse ele coçando a sua bochecha corada.

Ora, mestre, por que não leva os dois? Assim vai poder aproveitar tudo! — Ela inclinou a cabeça para o lado e colocou uma mão sobre o peito em uma postura submissa.

Então eu vou levar um de cada!

Ela era uma mulher de cabelos ruivos meio curtos, um pouco abaixo da altura dos ombros, que neste momento estavam presos com uma fita que combinava com o uniforme. Sua idade era na casa dos vinte e suas feições bem adultas, embora a maquiagem que usava em serviço a fizesse parecer mais nova, obviamente de forma intencional.

Mutsuki ficou sonhando acordada até o cliente passar por ela na entrada da loja e se dar conta que tinha esquecido do trabalho.

Chikazinhaaa!

Para com isso, Misato... — respondeu com estas palavras, de bochechas rosadas e começou a caminhar.

Se toca, esse é o melhor jeito de conquistar os fregueses — disse com os dedos em forma de V em um dos olhos.

É que o jeito que você faz é meio assustador de tão repentino que é.

Tá dizendo isso só por que te contei sobre o que eu gosto de aprontar no fim de semana? — Respondeu sua colega com um sorriso sedutor no rosto.

Mutsuki esperou levantar um par de divisórias no balcão para cruzar para o lado de Misato, enquanto ela permanecia debruçada sobre ele.

É… — suspirou enquanto fechava as divisórias um tanto pesadas e continuou — Você enche a cara e sai com um monte de caras na festa. Você já até me contou que brigaram por você e você só ficou rindo.

Ai, donzela. Só diz isso porque não sabe o que é ser o centro das atenções.

Aaaaa. tanto faz. Tenho mais o que fazer.

Mutsuki deu as costas e balançou a mão algumas vezes, dai foi em direção a sala dos funcionários para se trocar.

Na sala haviam vários armários, mais que a quantidade de funcionárias que eram apenas três. Não por isso, mantinha-se vários cartazes com algumas freses pré-prontas a serem ditas: Mestre, fofo, coração e, dependendo do dia, Nya!

Lembretes de postura mostravam como se curvar, cumprimentar e sorrir, inclusive quando mudavam o cosplay para uso de óculos com postura mais séria, lolita ou neko.

Antes de ir para o balcão, ela tratou de encenar algumas facetas no espelho, nenhuma das quais dignas de aplauso, embora seu uniforme estivesse bem arrumado, deixando-a com o mesmo ar do lugar. Depois de um suspiro, foi encontrar sua tutora.

Já do lado da vitrine, viu ela arrumando os doces nos devidos lugares, separados por tipos e perguntou.

Misato, não acha que ficar tão próxima dos clientes pode ser um problema?

Desde quando é problema chamar a atenção dos fregueses?

Não, é que eles podem ficar enchendo o saco depois, te chamando pra sair ou até ficar te stalkeando.

E daí? Faz um favor e vai separar as encomendas?

Mutsuki balançou a cabeça, pegou uma lista de cima do balcão e puxou um par de caixas debaixo de um armário próximo.

Acho que você anda meio paranoica. Esse negócio de ser a ‘donzela indefesa’ tá mais pra um clichê de manga, se não acha?

Mutsuki deu de ombros, nem negando nem confirmando a afirmação de sua colega. Deste modo, ela continuou.

Já sei! Por que não vamos pra balada no fim de semana? A Sachiko já disse que vai.

Mutsuki largou a bandeja de doces e virou com um olhar interrogativo.

Mas ela fica até mais tarde organizando no estoque.

Não se preocupe, ela vai adiantar tudo um dia antes pra poder ir.

Mutsuki se debruçou sobre o balcão, levou a mão no queixo e permaneceu olhando para a TV ao lado e os personagens que dançavam nela, pensando, até respondê-la alguns segundos depois.

Ok, eu arrumo um jeito de driblar meus pais.

Ah, que bom!

Misato deu um saltinho e bateu palmas. De repente ela limpou o sorriso do rosto e separou suas mãos antes de continuar — Tem certeza que eles não vão ficar sabendo e te enchendo o saco depois?

Mutsuki desviou o olhar e mordeu seus lábios, mas logo voltou a relaxar.

Não se preocupa.

. Eu não vou contar pra ninguém, nem pras minhas outras amigas. Conhecendo meus pais, se eles desconfiarem de alguma coisa, com certeza iriam colocá-las contra parede.

Muito bem então. Te espero no fim de semana, Chikazinha!

Algumas horas depois, quando a noite começava a dar seus primeiros lampejos, Mutsuki se despediu de sua amiga e partiu rumo a sua casa. As portas foram fechadas e as luzes do estabelecimento se apagaram.

Misato se encontrou nos fundos da loja com a já referida Sachiko que retirava o lixo. As duas estavam no beco ao lado, se ocultando entre as sombras, na lateral de uma lata de lixo, grande o suficiente para cobrir as duas, e falando baixo para não serem ouvidas.

Sachiko era uma garota um pouco mais velha que Mutsuki, com um semblante um tanto tímido, mas aparentemente simpático, cabelo curto e rosto redondo.

Com uma mão cobrindo a lateral da boca, ela indagou Misato — Você conseguiu?

Ela caiu como um patinho. Você acredita que nem precisei me esforçar? Ela veio com aquela historinha sobre os pais dela e fez questão de manter segredo.

Sachiko então olhou para a rua que acabara de acender as luzes e confirmou que não estavam visíveis, ainda que pedestres pudessem ser vistos caminhando.

Tem certeza que quer fazer isso?

Dinheiro é dinheiro, além do mais, o problema é dela em se deixar enganar. É até engraçado… Hahaha!

Sachiko virou seu rosto para garantir que ninguém havia ouvido.

Fale baixo! — disse ela sussurrando com energia e continuou — E se alguém tivesse ouvido?!

Misato não deu importância e prosseguiu — Disseram que vão pagar metade agora e metade depois. Finalmente vamos nos dar bem!

Após ouvir esta confirmação, sua ouvinte se virou em direção ao final do beco, apoiou sua mão na parede e falou em uma voz um pouco mais alta.

Não gostaria de arrastar ninguém pra esse trabalho sujo, mas preciso de dinheiro então…

É assim que se fala. Não se atrase.

Misato com um sorriso sórdido estampado no rosto deixou o local cantarolando com passos largos, já sua cúmplice, tinha um olhar mais pensativo e se manteve ali com as costas reclinadas na parede e suspirou fundo olhando para as primeiras estrelas que surgiam no céu.

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Alguns dias depois, Mutsuki e seus colegas estavam prestes a apresentar o trabalho em sala de aula sobre o filme que haviam assistido.

O tema era sobre quais lições extraíram dele e como poderiam usá-las em seu cotidiano. Quando ele foi anunciado, gerou muita polêmica pois parecia com um trabalho de interpretação da segunda série.

Um por um o professor viu os grupos apresentarem, com um olhar atento e com a mão cobrindo a boca, como se estivesse refletindo. Era um homem careca, grande, feio e sempre com um olhar austero.

Depois que as luzes da sala de video se ascenderam, tratou de chamar o próximo grupo.

Os próximos são Mutsuki, Mika e Kanae.

Todas elas se levantaram e foram para a frente da sala de aula, fazendo suas sombras cobrirem o quadro branco ao atravessarem o projetor.

A primeira a falar, assim que a escuridão voltou ao recinto, foi Mutsuki.

No filme entendemos que as condições de vida na África são muito severas, com disputas étnicas e religiosas fenômenos causando conflitos…

A apresentação correu nesse ritmo e com esse tom por aproximadamente quinze minutos.

Assim como nas outras apresentações, o professor se manteve calado, observando as alunas apenas com seu olhar fixo e pouco expressivo. Com o fim da apresentação de Mutsuki e suas amigas, ele mandou todos se sentarem e começou a falar sobre as apresentações de uma forma geral, sem se dar ao trabalho de levantar da cadeira onde estava.

A todos eu tenho a dizer que estou muito feliz… De já ter de antemão a intenção de não descontar pontos por esses trabalhos medíocres que me mostraram.

Várias expressões de indignação foram ouvidas. Suspiros, vozes baixas, até mesmo alguns materiais caindo das classes e rolando do chão. Mutsuki cerrou os dentes e quase levantou da cadeiras, as foi interrompida por suas amigas que lhe seguraram o ombro.

Eu não perguntei sobre as questões políticas, sociais e o raio que o parta. Eu perguntei sobre quais lições extraíram do filme e como poderiam usá-las em seu cotidiano e não sobre um monte de informações inúteis que não servem para nada.

Um dos alunos se levantou indignado, arrastando a cadeira no chão e subiu seu tom de modo a afrontar seu professor, deixando em segundo plano todo o respeito exigido de sua posição.

Mas nós nos esforçamos pra conseguir entender e compilar um monte de informações e é assim que o senhor nos trata?!

Com toda certeza, rapaz. Hoje em dia as pessoas pensam no social e em como ajudar a sociedade, mas se limitam a mensagenzinhas de paz nas redes sociais. Adianta falar que o lugar é miserável? Adianta dizerem que sentem muito? A única coisa que de fato tem utilidade é usar da experiência para melhorar o mundo ao seu redor, nosso cotidiano.

As pessoas começaram a olhar umas para as outras e a murmurar, até mesmo aquele que respondeu o professor ficou sem palavras.

É muito fácil falar daquilo que está acontecendo a 10 mil quilômetros de distância, difícil mesmo é dar importância aquilo que está acontecendo a seu lado. Não acham que o filme tocou algo mais fundo dentro de vocês? Não os fez sentir algo ou os inspirou a pensarem de maneira diferente? Não lhes deu vontade de tomar alguma atitude? Até porque Para que o mal triunfe, basta que as pessoas de bem façam nada.

Mutsuki ficou particularmente sentida com essa declaração. Ela colocou de lado sua expressão de raiva e deu origem a surpresa. De fato, ela estava visivelmente angustiada e muito imersiva no filme, mas no final, como Kanae disse, é só um filme.

Outro aluno indagou o professor, desta vez mais bem educado.

Professor, não acha exagero querer que nós nos aprofundássemos tanto em um filme? É só ficção.

Se eu me jogasse na frente de um carro para salvar uma criança, o que pensariam sobre isso?

Bem… Que é um ato nobre?

E por que se o que estou falando não passa de ficção?

O silêncio se abateu sobre a aula, com estas palavras tendo adentrado uma nova dimensão até então desconhecida para a maioria dos alunos. A garota a bem pouco indignada abriu sua boca e seus olhos, como se tivesse sido atingida por uma revelação.

Nos filmes nos é poupado de vermos de maneira nua e crua a realidade como realmente é, por isso eles tornam palatável o que de outra forma não conseguiríamos suportar, com a finalidade de usarmos dos conteúdos aprendidos para nos prepararmos para os obstáculos da vida.

Alguns longos segundos se passaram, com apenas alguns murmúrios podendo ser ouvidos, até que Mutsuki se levantou.

Professor Myoko, eu até pensei sobre isso, mas eu não levei a sério porque nunca havia pensado na ficção dessa forma. Eu pensei que queria fazer algo pelas pessoas do filme, mas não como se eu pudesse estar lá…

Exatamente. No fim das contas realmente é assim que funciona, mas é aí que entram os paralelos com a realidade. Se em vez de ser um soldado lutando na África você se torna policial local? É essa a lógica de se valer da ficção como uma ferramenta a serviço da realidade, por isso minha crítica quanto a o trabalho de vocês, porque vocês mantiveram aquilo que aprenderam bem distante, somente no campo das ideias.

Mais algumas pessoas começaram a conversar com o professor daqui e dali. Mutsuki se sentou e esperava pelo término da aula, murmurando algo em voz baixa, com um olhar sem brilho.

Fazer algo pelos outros… Lutar… Olha o que você fez…

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Um dia havia se passado desde então. A jovem colegial estava deitada em sua cama, com os primeiros raios de sol iluminando seu rosto. Ao ser atingida por eles, ela apertou os olhos e se contorceu.

Só mais cinco minutos — Murmurou baixinho.

De repente, a garota recém desperta levou a mão à cabeça e começou a gemer.

Que dor de cabeça… Que coisa molhada é essa na minha mão?

Mutsuki levou sua mão para frente do rosto e enxergou uma mancha vermelha com um cheiro de ferrugem. Então, ao identificar do que se tratava, ela deu um salto e olhou para o resto de seu corpo.

Sangue?!

Sua cama estava manchada, suas roupas embebidas e seus lençóis encharcados. Com suas mãos trêmulas, ela olhou para o seus arredores buscando por respostas e descobriu em seu despertador que a data era do dia seguinte ao seu encontro com suas amigas.

Mas o que aconteceu?! Eu não lembro de nada!!

Então o terror tomou conta dela…

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Aqui faço esta dedicatória para todas as pessoas que me ajudaram neste projeto ao longo do mais de um ano em que estive envoldido, todos, independente de ainda termos contato ou não.

Faço questão de destacar meu querido editor que me deu uma Luz e possibilitou, finalmente, a publicação desta obra.

Ainda que não saiba exatamente o que vai acontecer entre a primeira letra e o ponto final desta história, espero poder apoveitar o aprendizado que terei para tornar todas as que virão depois melhores, então não hesitem em criticar.

Agradeço a todos que estiverem lendo e àqueles que contribuiram.

Espero que tenham uma boa leitura!

                                                                                                                                    



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