Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Volume 1 – O Segundo Setor

Capítulo 27: Lembrando Errado

Somente a lua deixava o embate claro no meio de areia. 

Dourres cravava sua visão, sem piscar, no adversário de última hora. Calma e serenidade. Seu jeito de agir não era tão robótico, parecia mesmo que era alguém ali no corpo, um alguém que estava pronto para uma luta.

Num movimento fluido para o homem-estátua, preparou a guarda.

“Essa sensação…” Sentiu algo muito peculiar, que pareia uma nostalgia sem sentido. “Qual foi a vez que passei por isto?”. O escudo se desfez para meras luvas comuns.

— Olha só, vou ser direto. Eu tô aqui só pra incomodar um tiquinhozinhominho — O estranho aproximou o indicador e polegar, mostrando o vão o espaço quase invisível. 

Levantou da pedra e preparou o lança, girou numa velocidade impressionante e apontou novamente. Com o impacto do vento, jogou uma onda transparente e pequena, que logo foi esquivada com um singelo girar de ombros.

Parecia que seu alvo de incômodo não levava a sério ainda, mantinha a postura defensiva como se o pior fosse algo sem sentido. Dourres afinou a visão e tentou ver melhor. O suspeito apenas sumiu de sua frente. No lugar onde estava, o ar pareceu derreter feito uma miragem do calor. Surpreso, a sobrancelha andou ligeiramente pela testa do homem sem emoção.

De repente, o inimigo assumiu presença nas costas, a ponta da lança tinha com trajetória à cabeça. Dourres desviou o caminho com as luvas, que nem arranharam ou sujaram ao tocar diretamente com as mãos o ataque.

Um chute certeiro em contra-ataque. O pé saiu do chão e mirou no rosto, mas atravessou. Uma luta com o próprio vento. Virou para trás e lá estava quem notava tudo com o sorriso medonho. Dourres viu a cópia derreter novamente. 

A ignição verde surgiu ao redor e se condensou no estranho sentado. Com apenas o olho amarelo aberto, passou os dedos pela lança, que estava apoiada no colo.

— Acredite, hahaha! Só vou incomodar um teco.

A praça novamente se materializou ao redor do líder. “Uma ilusão”, percebeu ao notar que tudo estava igual quando chegou a suposta praça — inclusive o poste aceso e em ótimo estado. O ambiente em volta se materializava de cima a baixo, distorcida e ondulada até retomar uma forma consistente e sólida.

Estavam no lugar em que foi abordado, mas ainda permaneciam os inúmeros erros que afirmou anteriormente. A vista continuou a varrer o local incomum. O sujeito apenas ergueu o indicador e fez um trajeto de um zigue-zague pela sua visão até o dedo parar na cabeça do líder.

O oxigênio era cortado ao longe. Um zumbido aumentou a intensidade, destacando o reflexo do líder que olhou mais para cima. Logo acima do suspeito, outra lança voou na sua direção, repentinamente. 

A ignição de Dourres mostrou sua existência outra vez, as luvas ficaram mais grossas enquanto ergueu os braços. Agarrou a lança no ar, desviando do caminho, e usou sua inércia para arremessar de volta, como um arremesso de peso, naquele que ainda sorria.

O sorriso aumentou desproporcionalmente, o estranho tinha, de orelha a orelha, a aparência macabra ao ver a tentativa. Quieto, viu o objeto voar de volta para si… e o atravessou novamente, derretendo sua silhueta vil. A parede do mercado, logo mais atrás, foi destruída com poder penetrante daquele instrumento. 

Inúmeras ondas vieram dos céus, o suspeito flutuava sobre o lugar, lançando uma atrás da outra em giros intermináveis da arma. Mesmo com tantos projéteis, não conseguia acertar o líder do terceiro nível, que desviava como um verdadeiro acrobata.

Árvores caídas, fumaça, escombros, poeira e fogo. Uma cena de destruição se moldava com pouco esforço. Enfim, reparou nas falhas em sequência e desceu para o chão. A praça foi planada em poucos segundos. Lá estava os dois a se encararem novamente. 

Dourres podia permanecer sem alteração em seu rosto, mas uma intuição de algo a mais incomodava constantemente seus pensamentos: “Eu já vi isso?” Sem dar espaço para a fala repentina do adversário, estendeu a mão casualmente e apontou, dizendo:

— Apresentações, Estrela Sorridente.

— Que saco, hein! — soltou, irritado. — Hmm... — Pensava com as mãos sobre o queixo. — Acho que deveria te contar mesmo, Hihihi!

O estranho fazia o movimento de sentar-se e simplesmente se sentou no nada. O horizonte derreteu e revelou o deserto inabitado outra vez. As marcas de destruição estavam marcadas na areia, invés do concreto e árvores.

O líder estreitou suavemente os olhos, vendo que era um usuário de fato de uma energia ilusória a confrontar.

— “Vulax” é o suficiente. — Equilibrava o bastão com o dedo, brincando.

Passou o olho amarelo ao redor, passou o olho verde no adversário. As sobras da ilusão da praça viraram eletricidade verde e retornaram ao dono.

Sorriu de forma torta, inclinando a cabeça. Estava indeciso, cogitava muitas falas para dizer, entretanto, estalou a língua sem conclusão.

Nhá. Quero ver do que você é capaz.

 



 

— Presumo que devo o alertar que não gosto de interrogar cadáveres, é deselegante — disse Dourres, formando a guarda.

Vulax apareceu pelas costas ao derreter a cópia falsa, mas foi pego pelo olhar de Dourres, que o fitava ainda de frente como se esperasse tal movimento.

Com o soar de ferro rangendo, ignição amarela possuiu o seu corpo.

— Permissão! 

Ambas as luvas se personificaram em adagas completamente pretas, vazias de qualquer sinal de vida — chamava tanta atenção que podia fazer qualquer um engolir seco. Vulax tentou desviar, mas seu braço foi atingido por um arranhão que doía a ponto de querer arrancá-lo.

Aço reverberou e ecoou pela nada, seco e rápido. O líder balançou uma única vez a adaga e já estava coberta de sangue. No mesmo movimento, chutou e lançou Vulax para longe, que enfincou a lança no chão com o braço ileso para diminuir a distância.

 O embalo no ataque foi espantoso. A luta tinha agora ferimentos cravados na areia e Dourres apenas observava enquanto balançou as adagas.

— Podia ter arrancado. Mas. Se. Se-se segurou. — Apertava o ferimento com a mão enquanto seu sorriso aumentava. — Você tem um pouquinho de graça, sim! Sim e sim.

O dedo indicador veio e repetiu o movimento. Outra lança veio de muito longe feito um canhão. O ruído, que podia ser ouvido antes do impacto, desta vez, Dourres continuou a fitar o adversário machucado mais à frente.

Ações repetidas demais, o inimigo repentino não tinha maneiras ideais de luta. Dourres deixou seu olhar robótico cair novamente sobre sua alma, insatisfação corroeu por Vulax, que brilhava em verde.

Os cabelos prateados balançaram com a ventania, e a ponta da lança tocou finalmente a cabeça desejada, penetrando com total clareza. A lança se desfez após continuar sua trajetória, parando no meio do ar ao derreter como se fosse um vídeo pausado.

— De-descobriu?! 

Vulax deu um passou a frente e fitou o adversário. As adagas retornaram ao estado normal de somente luvas enquanto transmitia um ar de casualidade anormal.

— Se consegue criar cenários inteiros, consegue fazer danos falsos também. — Mostrou o indicador para uma duna próxima. — O mercadinho, numa simulação perfeita, estaria ali, porém, está tudo intacto lá. Dá para ver que não se atenta aos detalhes e que você não é desta cidade.

O olho verde tremeu, recuou singelamente ao notar a confiança daquele que se aproximava lentamente.

— Nem alguém como a mim consegue consertar um mero poste, o poste favorito que tanto presto atenção. Detalhe que malandros de bilionésima categoria, por sinal, sabem.

Seus cabelos arrepiaram, o tom suave de sua fala podia ser facilmente interpretado como a pior das ameaças.

— Não importa o quanto tente…

O adversário desapareceu de sua frente em meio piscar de olhos, mas, sem se interromper, Dourres desviou da lança e acertou o rosto com um chute poderoso, que fez o outro ser arrastado na areia e parou ao acertar a pedra que se sentou há pouco. As manchas de sangue nas roupas eram sérias, Vulax tossiu e cuspiu várias vezes.

— É uma questão de tempo para adivinharem os truques de um mágico, usuário de energia desconhecido.

O sorriso não diminuía com a dor incessante. Sangue jorrava de seu rosto e braço. Forçou as pernas para se sustentar antes de lançar a arma novamente, usou quase todas as suas forças para dar perigo ao lançamento.

O escudo veio novamente acompanhado da eletricidade amarela, fez a lança ricochetear e girar desengonçada no ar. O movimento não era natural, a deriva se tornou algo inteligente. A arma estava manobrando no ar. Apontando para o alvo, ela congelou ao fazer a ponta no rumo dos cabelos brancos.

Vulax, usando o braço machucado, ergueu o indicador que tinha ignição a correr pela mão. Invés de projetar um zigue-zague mental, apenas fechou o punho novamente e gritou:

— Perfure!

Similar a um raio, a arma ascendeu um brilho vermelho de aço em forja. Adquiriu uma aceleração instantânea, atingindo uma velocidade extremamente melhor aos lançamentos anteriores no alvo com um clarão verde.

O eco pelo deserto transmitiu um alerta que até os moradores da cidade mais ao longe ouviram. 

A areia subiu e a massa de ar surgiu. Vulax não sentia a sujeira entrar em contato com os dentes brancos, que eram um contraste dos faróis de cada olho na ligeira tempestade de areia que criou.

Ha, Há! Não contava com... essa.

A silhueta de Dourres com a lança encravada na cabeça surgiu como um sonho. Vulax se levantou, alegre. Foi numa pequena corrida examinar a vítima e… de fato, a lança atingiu o alvo, e somente isto.

Dourres tinha o cabelo liso completamente bagunçado, envolvido por uma massa preta que engolia a lança e absorvia toda a inércia melhor que o escudo — a lança estava enfincada, mas presa pela pelo material dinâmico antes eram luvas.

Dourres pegou com delicadeza a lança, as luvas se formavam durante o processo como se moldasse a suas vontades ao retirar, do lugar do impacto, e revelar o cabelo impecável que estava embaixo da massa. 

A massa preta dançava em seu corpo, era arma, era defesa, era vida, era uma ameaça. Bastava a energia do líder do Primeiro Setor ordenar em ignições que se adaptava as situações.

O sorriso de Vulax se desfez devido à raiva e viu seu alvo de incômodo levantar o dedo, que imitou a pose que também fez. Sem avisos, a máscara ligou o led e destacou os sentimentos que não eram claros.

— Nano máquinas, filho — comentou enquanto a máscara formou uma boca que dava língua.

Vulax caiu de joelhos, exausto. Ergueu a mão direita enquanto energia fluiu. A lança voltou em suas mãos, voou como se fosse um imã e…

— Crê…

A mente colapsou, caiu no chão e sangue flui-a por sua boa e nariz. A ignição piscava, falhava, tentava brilhar, era somente uma mísera faísca comparado a antes.

— Não force, chegou ao limite. — Dourres andou para mais perto. — Me contive o tempo todo, logo, se quer ser útil na sua missão, acredito que precisa me dizer algo antes de morrer.

Ahrg! Desgraçado engraçadinho! — Ajeitou a postura, tentando se sentar.

Vulax pegou um cristal do bolso e o estilhaçou ao apertar com as duas mãos. Luzes de diferentes cores no seu rosto apareceram, ainda havia energia nele. Uma descarga aconteceu, eletricidade fluiu dos cacos quebrados, iluminando tudo ao redor com verde e, agora… roxo.

Com ainda mais uma surpresa, Dourres viu suspeito desaparecer.

— Vo-você tem bastante graça. Só requer cuidado da minha parte… Hehe, uh — ecoou a voz em meio ao deserto, uma risada forçada seguida por um gemido de dor.

Virando o rosto em todas as direções, o líder procurou achá-lo. Só havia dunas, pegadas e a floresta. Entretanto, antes que fosse para dentro da mata, o comentário o travou no lugar.

— Tome cuidado, muito e muito cuidado. Beatrice não pode esperar tanto assim mais.

— Beatrice?!

A ventania aumentou, parecia um alarme singelo do alerta que recebeu. Curava as marcas dos danos que não eram ilusórios — pouco a pouco, a batalha foi sendo apagada pela areia em movimento.

Precisava reportar tudo que viu essa noite. Não podia arriscar perder as informações. Sabia o quão difícil seria achar alguém que pode se misturar — e misturar o nada a ele. Voltou seu corpo a trilha que passou há minutos e foi até a cidade numa corrida.

Na praça, estavam os erros acertados. A madrugada deixava ainda as ruas desertas. Olhou para o lado e atentou ao mais importante, o poste que piscava várias, várias vezes sem deixar o porquê.

No fundo, o banco em que viu Beatrice pela última vez estava idêntico da maneira que deveria. Apertou os punhos e a máscara fez o ranger de dentes de um cão no led.

— Retiro o que disse, talvez fosse melhor que tivessem feito nada.

— Ué, já voltou?!

— Mudou o percurso?

— Deve ter percebido as besteiras que faz.

O mesmo grupo de antes discutia. O líder estava sujo de areia, mantinha o rosto congelado e a máscara intacta. Passou a mão pela máscara, que virou uma massa preta, se unido a luva. Subiu ao último andar e chegou na sala do pai. Xerta o recebeu, pálida, estava feliz em o ver tranquilo.

— Usuário de energia.

Arregalou o rosto com a notícia, o ar entrou, de uma vez e ficou inquieta. Remexeu nas roupas e traduziu uma expressão feliz em, instantaneamente, triste ao mesmo tempo. Xerta, quem estava no comando, não tinha certeza de como reagir.

— Espera, como assim? Isso é impossível.

— Para onde Beatrice foi?!

Sabia que a pergunta viria, apertou a mão sobre o peito e tentou responder calmamente. Hesitou e hesitou em iniciar a resposta, entretanto, seus olhos vidraram num rosto preocupado, um rosto que tinha falta de costume de se expressar. Notou a reação incomum e disparou o pensamento por reflexo:

— Cidade Flutuante.

Dourres já saiu, rumo a porta. Não deixava nenhuma brecha para resposta — sempre muito direto.

Xerta, receosa, coçava o rosto que ardiam devido ao choro anterior. Pegou do bolso uma pedrinha que brilhava, que tinha semelhança com a que Vulax usou para escapar, pulsando de forma rítmica:

— Isto precisa acabar logo.

A novidade, vagarosamente, espalhava pela instalação. O simples caminhar de Dourres podia gerar espanto, embora não chegasse ao nível dos queixos caídos que percorriam os corredores junto dele.

HAN?! Perai, um momento! Repete isso ai! — Cortax jogou o controle para cima após escutar de seu líder. — Bia? Tipo, nossa Bia? Tu tá maluco das zidea. É muita coisa pra processar! Mas que…

— Por que Beatrice saiu?

— Me disse que foi visitar parentes, que nem faz todo ano. Foi um rolê danado pra conseguirem que ela fosse. A rivalidade é só parte do problema. Ah.  É… ela já fez isso antes, né?

— Ele...

O líder aproximava o rosto, esmagando-o com a proximidade de sentir respirações. Cortax tentava se afastar com passos descuidados antes de cair no chão. Naquele momento, Dourres emitia medo para todos.

— De onde conseguiram tais informações?

— Mano — ficou em pé, atônito —, não sabem, esse é o ponto.

— Sabem!

Cortax não tinha como retrucar. Não podia simplesmente negar como uma criança, precisava analisar com cuidado. Pensar que Beatrice pudesse estar envolvida de alguma forma era algo inacreditável.

— Esta semana, irei procurá-la. 

— Eu vou com…

— Still irá comigo, fique e proteja o lugar. Se a Estrela Sorridente realmente sabe de nós, sabe bem o quão poderoso e vital é sua energia. Compreende que é o único capaz de proteger esse lugar inteiro sozinho?

Não pode negar o que seu amigo dizia. Cortax apertou os lábios, insatisfeito. Caiu no sofá com a cara para baixo. Sem mais comentários. Aguentava as afirmações como uma criança mimada. Antes que Dourres saísse novamente do prédio, disse em voz alta:

— Não faz merda, por favor.

Queria que tudo ficasse bem com Beatrice. A existência de perigos que podem rivalizar terceiros níveis estava surgindo de repente. Os dois tentavam engolir essas coisas.

O líder do terceiro nível, outra vez no telhado do prédio, examinou o horizonte de da instalação.

“A Estrela começa a agir, Xerta e o resto começam a esconder assuntos, meu pai demora mais para retornar e agora existe um usuário que tem uma energia tão familiar”, pensou Dourres enquanto examinava as luvas.

A luz do amanhecer cobria as costas. Revirou para admirar o anunciar do sol para o novo dia. Colocou as mãos no bolso e encerrou o evento que começou na madrugada. 

— Preciso de uma satisfação convincente do Enerc.

FIM DO VOLUME 1


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