Volume 1
Capítulo 1: A verdade sobre o Céu
— Padre, eu pequei — disse um homem de cabeça baixa que escondia seu rosto.
— Todo pecado tem perdão diante de Deus… Eu acho — resmungou um homem vestindo uma batina.
— Como, padre?
— Nada! Pode se confessar e Deus te perdoará contanto que se esforce para isso, meu filho.
O homem estava tenso, ele apertava as mãos com força e rangia seus dentes, suava frio e gaguejava constantemente.
A cabine onde estavam era feita de madeira, por dentro parecia um cerco da idade média, o design era antigo e assustadoramente belo por fora.
— P-Padre, eu… traí minha mulher.
A santidade olhou para o homem com olhos cansados.
— Bom, nesse caso…
— Com a irmã dela — continuou o homem
— …
Que porra é essa?
Yuri Albertô, mais conhecido como padre Yuri, escutava pacientemente as confissões e focava em ajudar os fiéis que frequentavam sua igreja. Sua fama de um bom ouvinte se espalhava por todas as igrejas da cidade — Embora ele só fosse um bom ouvinte porque não sabia o que dizer a maioria das vezes, portanto sempre seguia o procedimento básico.
— Reze 15 pais-nossos e 17 ave-marias!
— Sim! Muito obrigado padre Yuri!
Cara... Eu odeio meu trabalho.
O padre saiu da igreja e correu para seu lugar favorito, o bar do Reiko. Um lugar velho
que cheirava a mofo, pouco frequentado pelos fiéis, logicamente. Um porto seguro para Yuri, onde ele poderia falar sobre todos seus arrependimentos enquanto bebia uma bela cachaça.
— Que porra eles acham que eu sou!? Meu trabalho deveria ser de conectar as pessoas com Deus! E não resolver casos de família, que saco! — resmungou Yuri, que afogava as mágoas em um belo shot.
— Deve ser difícil… — afirmou Maine, o bartender corpulento, que segurava garrafas e mais garrafas por aí.
— Eu não escolhi ser padre e escutar a merda dos outros! Meus pais que me obrigaram a seguir esse caminho, segundo eles é um negócio de família! Insistiram tanto que se escolhesse qualquer outra carreira seria odiado por eles.
— Você teve péssimos pais — admitiu o balconista.
Cada vez que Yuri reclamava, ele lembrava de seu passado. Se lembrou de quando sua mãe o viu andando com um amigo ateu, seus pais passaram horas e horas dizendo sobre o como ele iria pro inferno por falar com “esse tipo de pessoa”.
Sua família o fez viver em uma bolha, seus únicos amigos eram aqueles que ele conheceu na igreja, além de que estudava em uma escola católica. Isso apenas se amenizou quando ele se tornou um padre e seus pais manipuladores tiveram orgulho da pessoa instável que criaram.
Após passar um tempo vivendo sozinho começou a questionar sua religião.
No final, Yuri se tornou agnóstico, mas é claro, nunca confessou isso para ninguém. Na igreja ele apenas continuou o mesmo, sempre foi bem persuasivo. Seus discursos genéricos sobre como a bíblia muda vidas eram simples e eficazes, fingir ser um padre devoto era como atuar, coisa que ele fazia bem.
Sacudiu as memórias ruins para o alto e se zangou.
— Não quero mais pensar nessa merda! Hoje eu vou beber até morrer! — gritou Yuri, estendendo seu shot para cima e o tomando.
E ele realmente bebeu até morrer. Ninguém o parou ou avisou que estava bebendo demais, a causa da morte para a polícia foi óbvia, overdose de álcool.
Quando a notícia chegou os fiéis da igreja não conseguiram acreditar. Dias depois a família fez um discurso de duas horas em cima da morte de Yuri, dizendo que ele foi possuído pelo Diabo.
Falaram sobre como ele foi “honrado” e “amava” ser padre, todos aplaudiram e choraram pela morte trágica e prematura.
— ISSO MOSTRA PARA TODOS NÓS! ATÉ MESMO O MAIS CRENTE EM DEUS! PODE SUCUMBIR PERANTE A MALÍCIA DO DIABO! — gritou sua mãe.
— PORÉM IRMÃOS E IRMÃS! SE LEMBREM DO QUE YURI NOS ENSINAVA TODOS OS DOMINGOS SOBRE A VONTADE DE DEUS! AMÉM IRMÃOS!
Antes de sua morte, Yuri se sentiu afundado no chão e em plena escuridão, sem escutar mais nada, o tempo parecia inexistente, chegou a duvidar que estava até mesmo pensando.
Semanas, meses? Tudo era sem sentido, o tempo estava imóvel e ele estava imerso na sensação de descanso eterno. Até que uma luz o acordou de forma gentil e revigorante, como ser acordado pelo sol em um dia de verão após uma bela noite de sono.
— Bem-vindo, Yuri Albertô, estive esperando por você — afirmou uma voz doce, ela era o equilíbrio perfeito entre suavidade e autoridade, como um pai acordando um filho de um longo sono.
Yuri acordou confuso, tudo não parecia real. O chão se assemelhava ao infinito, ele se sentia equilibrado e desequilibrado ao mesmo tempo, até mesmo se assustou quando percebeu que não respirava e nem seu coração batia.
A presença do “ser” que estava na frente dele, se é que podia ser chamado assim, era bela, quase que um sentimento único, uma nova sensação, uma nova cor.
Estar na frente “dele” era a peça que falta para todo o quebra-cabeça da existência, como estar de frente para o próprio universo como um todo. Não tinha forma física, era mais complexo que isso, como um eterno paradoxo da vida e morte.
— P-PERDÃO SENHOR!
O antigo padre não tinha nenhuma dúvida, aquela imagem tão reconfortante e poderosa era única para todos os seres vivos, aquele era Deus, na sua frente, para seu medo ou para sua felicidade.
— Que reação engraçada! Espere um pouco, deixe-me fazer você se sentir mais confortável.
A essência da existência se transformou em um mero corpo humano, não era um velho clichê. Se tornou um homem negro com cabelos crespos e físico normal que parecia amigável.
— Se sente melhor agora? Não acho que você gostaria de ficar encarando coisas que ainda não entende — concluiu Deus.
— Bom, claro!
Yuri abriu a boca para falar algo, mas ele o interrompeu, como se soubesse o que o padre iria falar.
— Quero deixar claro uma coisa, eu sei de tudo. Você não está aqui por ter seguido as práticas religiosas ou coisa assim, eu não me importo com isso na verdade.
Yuri estremeceu, ele não podia respirar e não estava vivo, mas se estivesse estaria suando e tremendo.
— Então... o que realmente importa?
— Ser uma pessoa boa é claro! Quem se importa com crenças se todos praticam o amor no final do dia? Por mais que você realmente não gostasse do seu trabalho, você ainda ajudava os outros com seus problemas.
A entidade estava com um sorriso meigo e simples, repleto de carisma e empolgação. Parecia achar um pouco engraçado a reação do padre.
— Quero dizer, falando nos seus termos, em média 32% dos humanos são cristãos. Você esperava que eu fosse mandar o resto para o inferno?
O homem finalizou sua frase com uma risada enérgica.
— Eu não sei para ser sincero. Mas uma pergunta, eu estou no céu? Achei sinceramente que iria para o inferno.
— Claro que está! As pessoas que vão para lá são… tão ruins quanto “ele”.
— Tipo estupradores e gente que mata animais? — perguntou Yuri curioso.
— Por aí.
Yuri conversou com seu senhor por muito tempo, tirou todas as suas dúvidas em relação a vida até estar satisfeito, então começou a perambular pela sua nova “casa”.
Milhares de querubins voavam o tempo todo, a sensação era totalmente diferente de estar vivo. Semanas se passaram e Yuri conheceu pessoas novas. Todos eles eram extremamente gentis, alguns devotaram a vida toda para estarem ali.
As sensações presentes no céu eram diferentes, você se sentia bem apenas por estar ali. Todos existiam em paz uns com os outros, Yuri até mesmo esqueceu a sensação do estresse e de estar irritado.
Isso fez ele pensar sobre a sua vida passada. Não sentia fome nem desespero no céu, nem sequer podia, era literalmente a paz eterna.
Perambulou por toda a extensão da existência, conheceu famosos e pessoas de toda a história, até mesmo conversou filósofos que admirava.
Yuri viveu tanto tempo no céu que perdeu as contas, porém, começou a refletir sobre sua vida. Concluiu que não a aproveitou de fato, no céu ele andava eternamente, sem consequências ou conquistas, por isso, sentiu falta de quando vivia apenas buscando objetivos fúteis.
Morreu aos 25 anos, não pôde se casar com uma garota ou ter relações com uma, nem mesmo teve dinheiro direito, foi pobre a vida toda.
— Acho que eu não aproveitei muito… — resmungou ele.
No final Yuri se sentiu completamente arrependido. Viveu a vida inteira fazendo o que os outros queriam, viveu o sonho dos pais, mas não o seu. Lembrou de quando era criança e sonhava em ser astronauta, porém, a família logo cortou suas esperanças, dizendo que ele devia devotar sua vida à religião.
Ele desejou ter saído mais com seus amigos, frequentado a escola com mais ânimo, ter tido mais encontros com garotas.
O céu parecia monótono agora, era como se tivesse completado seu grande objetivo, mas não tinha o sentimento de realização, só sobrou o vazio depois disso.
Um dia, sua inveja e ódio atingiram o ápice e ele sentiu ser sugado para baixo com toda a força do mundo, era como se estivesse lutando contra a gravidade de um planeta. Tudo aconteceu em milésimos, porém, quando mais ele caia, mais o tempo passava lentamente.
Yuri perdeu a sensação mística de estar no céu, e um mau aterrorizante passou pelo seu ser, foi um milésimo, porém, na mente dele parecia centenas de anos. O padre passou pelo inferno no meio de seu caminho, não podia sentir mais incômodo do que isso, o inferno era bizarro, nojento e asqueroso.
Pode ouvir gritos e uivos de tortura, se sentiu espremido com toda a força contra o mais puro nojo, seu ser queimou de puro desconforto e ele quis gritar com toda a força que pode.
A sensação parou e ele retornou a sentir uma sensação confortável, calorosa, não como no céu, mas como se estivesse vivo.
Ele abriu seus olhos desesperadamente, respirou com força um ar que invadiu seus pulmões. Yuri sentiu seu peito arder, o desconforto de ter que respirar de novo o consumia, podia sentir a sensação incômoda do seu sangue bombeando pelas veias, estar vivo depois de morrer era quase como expor uma pessoa que viveu a vida inteira no escuro ao mais puro sol.
— AAAAAAAARGH! — gritou Yuri graças a dor no seu peito.
O antigo padre percebeu que sua voz saiu fina, infantil, olhou desesperado para suas mãos e notou que elas eram minúsculas. Acima das suas pequenas mãozinhas tinha um homem alto e musculoso, ele era moreno e tinha dreads estilosos junto com várias tatuagens vermelhas, do seu lado tinha uma mulher muito bela, morena e cacheada, olhos amarelos como de um gato, sua face puramente angelical e com uma pinta na bochecha.
Os dois usavam roupas simples e surradas, suas mãos eram calejadas, porém sorriam muito felizes para o seu bebê recém-nascido.