Volume 1
Prólogo
O bem e o mau podem mudar dependendo do ponto de vista. Estava tão cansado que essa frase filosófica, que normalmente nunca iria pensar, brotou na minha cabeça.
Minha vontade tinha esgotado ao ponto que… Eu já estava fazendo cara de paisagem por algumas horas. Queria me deitar e passar algum tempo com os mangás e animes que tanto amava ou então jogar algum jogo que tenha como público alvo os homens.
Com olhos de peixe morto, eu, um adulto funcional, estava jogando… um jogo otome1. Era um daqueles tão chamados dating sims2 parecido com os gal games3 que eram direcionados aos homens, mas ao contrário. A protagonista era uma garota. O público alvo era feminino, então os personagens namoráveis seriam homens.
O inverso disso, protagonista masculino e mulheres como personagens conquistáveis, era chamado de gal game.
Sim, durante o meu tempo livre, não estava jogando algo focado para o público masculino. Não era como se eu quisesse estar aqui, em primeiro lugar.
— Por que tenho que gastar minha manhã para tentar conquistar um gostosão simpático?
Não estava feliz por ver o personagem masculino do outro lado da tela corando. Para simplificar, todos os alvos desse jogo eram bonitos. Foram criados por um ilustrador popular e dublados por dubladores famosos. Se fosse um gal game… ficaria muito feliz ao ouvir as personagens femininas, mas a doce voz de um cara não me deixa feliz!
Com um olhar monótono, meu foco estava na tela de um celular. Como não tinha motivação, acabei contando com detonados para jogar. Quando selecionada uma escolha na tela, você saberia se o medidor de amor subiria, acompanhado de um efeito sonoro e uma pose que o personagem 3D faria. Dessa vez, ele tinha uma das mãos passando por seu cabelo, suas bochechas coravam levemente.
— Você é diferente das outras meninas. Deixe-me ouvir o seu nome.
Esse cara era o príncipe herdeiro — um dos alvos que apareciam no jogo — e estava estabelecido como alguém muito popular na academia. Essa era a cena onde a protagonista o encontrava por coincidência e, não sabendo que era um príncipe, interage com ele normalmente.
Já zerei esse jogo várias vezes. A única coisa que podia fazer era reclamar dessas cenas de primeiro encontro que vi até cansar.
— Você só pode estar de sacanagem. Não tem como alguém não conhecer o príncipe do próprio pais. Que menina sapeca…
Um movimento bem esperto da protagonista. E o alvo nem percebeu a personalidade maquiavélica dela.
— Ele está corando… esse príncipe precisa de um olhar mais perspicaz.
Passei meu desejado final de semana jogando um jogo otome. Já era meio-dia de um domingo. ‘Tava desde sábado tentando platinar aquilo sem parar. Estive muito ocupado por uns dias e não tive uma folga por um bom tempo.
Nesse momento, escutei o meu celular tocar. Quando olhei, vi que era uma mensagem com a imagem da minha irmã mais nova.
Só de ver o sorriso dela nessa imagem já fazia meu sangue ferver. Ela tá curtindo um hotel na praia com as amigas! Respondi com todo ódio: VAI SE FODER! Você não me forçou a jogar isso porque estaria ocupada?!
Nesse momento, estava jogando o jogo da minha irmã. No sábado, essa universitária que ainda vive com os pais veio visitar o meu apartamento. Não achei a situação estranha até que mostrou esse jogo para mim. Com um sorriso, ela disse: — Já que você tem tempo livre, termina isso para mim.
Esse “termina para mim” queria dizer fazer TUDO. Cada rota tinha suas próprias imagens, vídeos e cenas únicas. Tinha que jogar várias e várias vezes para ver tudo, e era isso que ela queria que eu fizesse.
Quer saber, que você mesma faça essa merda! Também enviei essa mensagem.
A resposta veio. Hã? Vai mesmo ser assim? Não vou resolver o mal-entendido com a mamãe e os outros então. Vou te dar um presentinho, então, por favor, termine ele.
PS: Se você não terminar antes de eu voltar, vou piorar tanto a sua situação que não vai nem conseguir sair desse apartamento. Com amor, sua irmãzinha querida. Gritei quando terminei de ler, lutava contra a minha vontade de tacar o celular no chão.
— Porraaaaaaa!
Queria parar de jogar isso. Contudo, minha irmã, que mora com os pais, tinha escondido vários livros pessoais dela no meu quarto. Os livros que ela gostava eram para fujoshis4. Minha mãe acabou os encontrando enquanto limpava e agora achava que eu tinha essas preferências. Tentei explicar, porém quanto mais tentava mais ela achava que eu estava tentando enganá-la.
Foi um pesadelo…
Acabei descobrindo que minha irmã era uma fujoshi como resultado disso. E talvez você possa dizer que era só falta sorte. No fim, as pessoas sempre acreditavam mais nela.
Mesmo da perspectiva de irmão, sua aparência era de outro nível e suas notas eram incríveis. Também ouvi conversas sobre sua personalidade ser gentil e amigável.
Na verdade, ela era apenas uma boa atriz e só me causava problemas. Só julgando por esse problema do otomege posso dizer que sua personalidade era uma merda. Sempre escondeu seus hobbies e, não importava o quanto eu explicasse, meus pais colocavam mais fé nas palavras dela.
Quando minha mãe tinha me ligado preocupada para falar sobre aquele assunto eu quase chorei. Naquele momento jurei que iria me vingar.
Segurando a raiva, voltei a minha visão para a tela. Depois de pegar o controle apenas pensei em terminar o jogo para acabar com o mal-entendido. Era irritante, mas meus pais acreditavam mais na minha irmã e ela prometeu acabar com esse problema se eu terminasse o jogo.
Não podia fazer nada a não ser zerar esse jogo… era frustrante, mas ela tinha lábia. Sábado de manhã, a menina se irritou por eu ter negado o seu pedido de dinheiro para uma viagem e me ameaçou para me fazer pagar. Era meio patético que acabei cedendo por conta do medo.
Mesmo assim, vou me vingar. Continuei a planejar enquanto enchia o medidor de amor desse cara do outro lado da tela
— Você vai se arrepender por ter despertado minha ira.
Desde pequena minha irmã tinha sido esperta o suficiente para conseguir tudo o que queria. Ela sabia que era fofa, o completo contrário de mim. Seu único ponto fraco era, provavelmente, o fato de que escondia seu hobby das pessoas. Franzi as sobrancelhas enquanto continuava a jogar, frustrado.
— Não posso continuar sendo controlado desse jeito.
Fui forçado a jogar essa merda. Algo projetado para ser um otomege maior que o normal, então tinha muita coisa para fazer. Minha irmã era do tipo que comprou a edição limitada por causa das ilustrações e dos dubladores. Contudo, mesmo sendo um jogo otome, havia elementos de RPG e até de estratégia. Como esperado, isso era estranho para um jogo focado no público feminino
Se passava em um mundo de fantasia com espadas e magia. Um cenário onde as pessoas vivem num mundo fantástico diferente da terra. Um mundo com nobres, onde mesmo que a sociedade não fosse muito desenvolvida ainda haviam navios voadores no ar e cavaleiros lutando em guerras com armaduras que pareciam robôs gigantes.
A protagonista era apenas uma menina simples do interior. Uma estudante que não era nobre, mas sim uma plebeia, e ainda assim, conseguiu o direito para se matricular. Como sua posição era especial, as estudantes a assediavam. Na escola acabou conhecendo o príncipe e outros garotos nobres, por conta disso, acabou se envolvendo em vários problemas, até na guerra.
De qualquer forma era um jogo de aventura e guerra misturados com romance escolar. Era um “mundo bem conveniente para as mulheres”.
No começo minha irmã também tentou terminá-lo sozinha, mas não era muito boa nas partes de estratégia e desistiu. Graças a isso, acabei preso a esse trabalho entediante. Ela disse: — Você só tem que zerar esse joguinho simples. Fácil, não é?
Bem, eu gosto de jogos, mas isso aqui era muito difícil até para mim.
— Ninguém quer esse tipo de coisa no meio de um jogo otome para começo de conversa.
Enquanto reclamava, eu olhava para a tela e mexia no controle. Nela um pelotão de navios aéreos se alinhavam, os designs deles pareciam com uma bola de rúgbi, quando terminaram de se mover, formaram linhas de grades hexagonais5. Era um combate por turnos onde você movia as naves aliadas para poder atacar com os canhões laterais e soltar cavaleiros sobre o inimigo, entretanto…
— Porra! Que tipo de habilidade o inimigo está ativando agora! Isso é difícil pra caralho. E eu ‘tô vendo o detonado para ajudar.
As habilidades e técnicas especiais do inimigo foram ativadas e os aliados no ataque recebiam muito dano. Quando o ataque acabou, eles tinham sido destruídos pelo oponente e afundaram… mesmo que habilidades e estratégias possam ajudar na vitória, o RNG6 que fazia as coisas ficarem difíceis. Minha irmã já teria desistido nesse ponto.
— Merda.
O navio voador que eu não podia perder, o que levava o príncipe, foi destruída em um instante. Vi as palavras “Fim de Jogo” na minha tela.
— Aconteceu de novo! É impossível jogar enquanto olho o detonado!
Suspiro.
Como queria fazer minha irmã desistir. Era só baixar o arquivo do jogo completo na internet, no entanto… esse jogo te deixava nomear a protagonista. Minha irmã colocou o nome dela. Ela queria ouvir os dubladores famosos sussurrando o nome dela, ou algo do tipo… Graças a isso, não podia resolver o problema baixando o arquivo. Tinha que zerar sozinho.
— Já fiz essa parte tantas vezes! Esse príncipe não para de morrer! É isso mesmo? Você quer tanto assim que eu faça as microtransações? É assim que quer ganhar meu dinheiro?
Mesmo sendo um jogo off-line, continha conteúdo pago para fazer melhorias. Foi algo que a empresa tinha feito em resposta as reclamações dos jogadores que não eram capazes de terminar o jogo… Será que foi tudo planejado?
Havia vários itens para deixar a parte da guerra mais fácil. Não queria ter que gastar ainda mais dinheiro com minha irmã, porém o que me fazia perder tempo eram as partes de luta e guerra. Tirando elas, seria apenas como um gal game normal. Nenhum problema iria acontecer desde que você fizesse as escolhas certas. Pausei o jogo e olhei para o conteúdo pago.
Um enorme número de itens apareceu na tela. Os preços eram em média 100 ienes7, mas coisas que ajudam em batalhas, como aeronaves e armaduras, eram estranhamente mais caras, por volta de 300 ou 500 ienes. Tinha até conteúdo por 800 ienes.
— É esse tipo de coisa que faz a reputação da empresa piorar…
No início, esse jogo foi duramente criticado por ser quase impossível de terminar sem microtransações e por elas terem valores absurdos, os preços foram reajustados. Mas, mesmo assim, ainda achava muito caro. Com esses pensamentos em mente, comecei a olhar os preços das roupas de banho masculinas.
— Não sou fã desse tipo de coisa.
O que estava a venda eram itens que faziam os homens aparecerem em shorts de banho. Ver isso me deixou com nojo. No entanto, se fosse um gal game e isso colocasse biquíni nas meninas, seria o tipo de coisa que eu com certeza compraria.
— Isso não deve ser tão atrativo para mulheres como é para nós homens.
Estava me sentindo cada vez mais cansado. Um sentimento de desconforto apareceu quando imaginei as jogadoras se masturbando para esses caras em roupas de banho.
— Imagino se mulheres sentem o mesmo com relação à haréns? Bem, não me importo muito com isso.
Um homem cercado por mulheres era um harém, uma mulher cercada por homens era um harém reverso. Se uma mulher visse um harém ou se um homem visse um harém reverso, acho que ambos se sentiriam desconfortáveis.
Estou ficando mais cansado por pensar nessas coisas. Vou apenas focar em terminar o jogo.
— Então o que posso comprar para terminar isso rápido?
Já que era conteúdo pago, deveria ser apelão. Armas especiais para os homens, equipamentos únicos para a protagonista e outras coisas estavam à venda. Queria só encontrar algo útil para a guerra e comprar qualquer coisa que ajudasse a progredir mais rápido na história.
— Esse aqui?
O que vi era uma nave, o item mais caro da loja. Ignorava os efeitos de status e a necessidade de reabastecer, Aquilo parecia bom demais para ser verdade.
— Mais do que um navio voador, isso parece uma nave espacial.
A aparência era metálica, completamente diferente das outras no jogo. O design lembrava o de um navio de guerra. Por 1000 ienes, não havia nada para criticar sobre sua performance. Olhando a descrição, era dos tempos antigos ou algo do tipo… de qualquer forma, estava escrito que era uma espaçonave aterrorizante.
— É mesmo uma espaçonave! Ou… só erro de digitação?
Pensei um pouco sobre isso, mas não me importava desde que conseguisse terminar o jogo. Só precisava saber se a compra iria deixar tudo mais fácil.
Agora, vamos ver uma armadura… mesmo que tenha esse nome, não parece nem um pouco com uma. Não sei porque não chamam simplesmente de robôs. Os caras que vestem isso no meio da guerra são… cavaleiros. Do ponto de vista de uma mulher, talvez, seja legal ver um homem lutando por elas?
De qualquer forma, com tanto dinheiro gasto, achava que podia terminar isso. Se fosse facilitar a minha vida, podia considerar isso como uma despesa barata. A armadura negra parece algo que um vilão usaria, mas não tinha problemas, heróis mais dark eram legais... Parando para pensar, esse design estava muito bom para algo vindo de um jogo otome.
Laminas eram fortes, no entanto um mestre espadachim não tinha armamento de longa distância. Sua fraqueza era a dependência nas armas, se o equipamento fosse ruim… seria apenas um idiota analfabeto estupidamente fraco que seria destruído. Por conta dos personagens estúpidos, tive que ver as palavras “fim de jogo” várias vezes…
— Tenho que terminar isso e não quero dificuldades enquanto o faço.
Vou perder meu precioso tempo livre jogando isso. Estava sem paciência, usando o conteúdo pago, continuei progredindo no jogo.
Antes da noite chegar, consegui liberar 90% dos eventos e cenas em computação gráfica. Tudo que faltava era o final do harém reverso, onde todos os personagens namoráveis casavam com a protagonista.
Esse era o final verdadeiro, mas não podia me importar menos com isso. Não joguei pensando em capturá-los. Nas partes de dia-a-dia, peguei os itens que ganhei de presente ao elevar o medidor de amor até um certo ponto e vendi tudo no mercado na manhã seguinte.
Se pararmos para pensar, a protagonista era a namorada desses caras. Não seria legal vender os presentes bem na frente deles, mas era só um jogo então não importava. Porém, se fosse um gal game, nunca faria tal ação. Mesmo que não fosse real, não poderia ser tão desalmado.
No entanto, isso é o otomege da minha irmã. Não me importo desde que consiga terminar. Continuei enquanto pensava nisso… antes de perceber, já era de noite.
Finalmente alcancei o final do harém reverso, o prazer da libertação foi acompanhado por uma sensação de vazio.
— Levou dois dias para chegar até…
Quando vi o final, sentimentos de raiva e tristeza nasceram. Porque tive que fazer isso? Salvei o jogo e, tendo mantido a promessa com a minha irmã, cai na cama. Olhei para o relógio, era muito cedo para dormir. Não tinha vontade de me mexer por conta do cansaço, no entanto a fome começou a me atacar. Colocando a mão em minha barriga lembrei que só tinha comido de manhã.
— E não tem nada na geladeira.
Pensei em ir ao mercado na minha folga, contudo, priorizei terminar o jogo, então minha geladeira continuava vazia.
— Um restaurante ia ser uma boa ideia?
Enquanto olhava meu celular, recebi uma mensagem da minha irmã.
Estou cansada depois de me divertir tanto. Vou voltar em alguns dias, então é melhor você ter terminado até lá. Se descobrir que não levou meu pedido a sério, nossos pais vão continuar achando que você tem gostos estranhos, meu irmão tolinho.
— Essa menina é o demônio.
Me forçou a trabalhar para caralho, enquanto curtia. E ainda extorquiu dinheiro de mim… de repente surgiu uma pequena pergunta.
— Ela arrumou um emprego? De onde veio a grana para ela viajar?
O dinheiro que dei não era o suficiente para isso. Talvez tenha trabalhado escondida por conta do seu orgulho idiota. Se trabalhasse depois da aula não teria tempo livre até bem tarde. Ainda mais, ela disse que não queria um emprego porque odiava se esforçar.
Agora que pensei nisso, minha mãe tinha comentado alguma coisa sobre isso.
— Ela disse que precisava de dinheiro para a carteira de motorista.
Parece que meus pais estavam pensando em pagar uma autoescola e prepararam o dinheiro para isso, mas pelo visto parte dele foi desviado para uma viagem. Tirei um print da conversa e a enviei para a minha mãe. Claro, junto com as fotos que ela mandou.
— Que idiota… Ela sempre me subestimou, vou mostrar pra ela quem é que manda.
Minha irmã me ameaça, vai viajar e acha que iria acabar assim. Quando meus pais virem isso, o que será que pensarão? Ela não iria conseguir inventar uma desculpa à frente de evidências. Então, depois de tantos anos, sua máscara finalmente cairia.
Um sorriso se formou em meu rosto quando pensei nisso, só então que percebi.
— Espera? Se eu tivesse feito isso ontem, não teria que passar por esse inferno… merda… não adianta chorar agora.
Depois de perceber o quão idiota fui, levantei e peguei minha carteira, já que a fome não acabou. Vou esquecer desse problema por enquanto e ir comer. Não quero mais pensar nesse jogo.
Depois de andar um pouco, percebi que meu corpo parecia mais leve. Era uma sensação estranha, lembrava a sensação de felicidade quando você chega em casa depois do trabalho.
— Tenho que comemorar, não vou ficar olhando os preços, hoje eu vou comer bem.
Sai do meu quarto babando só de pensar no jantar. Passei pelo corredor iluminado pelas lâmpadas florescentes, no entanto, enquanto estava descendo as escadas, o cenário que via começou a girar.
— O que… ‘tá acontecendo.
A força sumiu do meu corpo, como um fantoche com suas cordas cortadas, cai ali mesmo. Meus músculos não obedeciam e, para piora a situação, meu corpo caia escada abaixo. A cena que meus olhos viam girava ainda mais. Não havia dor, contudo, sabia que a situação não era boa.
— Não posso… morrer… desse jeito.
Minha irmãzinha acabou com a minha folga tão esperada e, quando pensei que tinha me libertado, essa merda acontece. Na verdade, as chances da minha vida estar em risco não devia ser pequena. Pensado nisso o sentimento que surgiu foi, por incrível que pareça, fúria.
O cenário ao meu redor ficava embaçado, meus sentidos estavam sumindo, um cenário apareceu em minha mente nesses últimos instantes — algo que não deveria acontecer muito com alguém em seus suspiros finais — havia um pedaço de terra se elevando do mar. Naves voando. E, quando vi o céu azul junto as nuvens brancas, minha consciência desapareceu.
***
Quando voltei a mim mesmo, estava deitado em uma colina. Havia o som de grama balançando e o cheiro da vegetação. Minha mão estava apontada para cima, cobrindo o sol, eu, Leon Fou Bartfort, senti meu coração acelerar. Comecei a suar, mas não por causa do calor, era um suor frio que não queria parar. Essa sensação estranha continuou por um tempo.
— O-o que acabou de acontecer?
Sentei de forma rápida por conta do susto, arrancando algumas gramas que então foram levadas pelo vento. Levantei minha cabeça quando a corrente de ar passou pelo meu rosto e vi um enorme navio voando por cima do local, o sol estava sendo bloqueado pela sua enorme sombra. Essa aeronave, que parecia meio malfeita, passava de tempos em tempos neste território. Contudo, senti como se fosse minha primeira vez a vendo.
Apertei meu peito tentando acalmar meu coração. Levantei e olhei para a direção que a nave ia, era possível ver o oceano indo até horizonte. Senti que algo estava errado, o mar parecia diferente.
— O que é isso? Porque o…
Fui andando devagar e acabei caindo. Olhando para baixo percebi que meus membros eram estranhamente pequenos. Estava certo de que este era meu corpo, mas, mesmo assim, continuava sentido que era muito pequeno.
Ao invés de se importar com isso, deveria checar a situação. Levantei e comecei a caminhar, lentamente acelerando meus passos, indo em direção ao oceano. Ainda sentia que algo estava errado.
Forcei ao máximo essas pernas infantis até chegar ao meu destino. O local, que tinha uma cerca para não deixar as pessoas caírem, não tinha nada fora comum.
— Certo, é apenas… uma ilha flutuante.
Um pedaço de terra voando a cima do mar. Flutuava de forma normal, mas não sabia se deveria ficar feliz por causa disso. Já tinha visto essa imagem milhares de vezes, entretanto queria confirmar mais uma vez essa visão.
Alguma coisa estava estranha. Quando levantei minha mão em direção ao sol a pouco tempo, várias imagens apareceram dentro da minha cabeça, parecia a vida de outra pessoa. Toda a história de um homem que não existia ali. Não havia nada demais, porém, parece que foi uma vida boa. Deveria ser apenas um sonho ou um delírio, no entanto, era estranhamente real. E, mesmo depois de ver tudo aquilo, não conseguia lembrar o nome daquele homem.
Segurei a cabeça com ambas as mãos. Era uma memória tão realista, então porque não consigo lembrar seu nome? Era como se tivesse lembrado das memórias de alguém que viveu muito mais que meus cinco anos.
Voltei a sentar, incapaz de entender o que aconteceu. Senti como se minhas memorias se fundissem com aquelas. Olhei para o céu atrás da cerca.
— O que está acontecendo comigo?
Eu não sabia para quem aquela pergunta foi direcionada.
***
Já que o sol estava se pondo, voltei para casa. Não estava com vontade de fazer isso porque me lembrei do motivo pelo qual eu estava naquele local, mas tinha que voltar para casa antes que escurecesse. Respirei fundo e continuei andando. Vi meu pai esperando na porta, era fácil ver que estava bravo.
— Moleque idiota!
Recebi um soco na cabeça, corri para casa enquanto segurava minhas lagrimas. Encontrei minha mãe dentro dela.
— Você voltou. Porque saiu correndo no dia em que a esposa veio?
Meu pai, Balcus, era um senhor feudal, um barão8. De repente, na minha cabeça, uma memória sobre o que eram nobres apareceu, passando uma imagem meio ruim sobre eles. Mas era estranha, nela, eles eram gordos e bem vestidos, já meu pai era um gigante musculoso com a barba a fazer, usava camisa, uma calça bege e botas, não era a vestimenta de um nobre.
Minha mãe era uma concubina chamada Luce, filha de uma das famílias de cavaleiros que serviam a casa Bartfort. Não vestia um vestido, usava roupas comuns das mulheres que viviam em cidades ou vilarejos. A “esposa” que ela comentou se referia a esposa oficial do meu pai.
— Des… desculpa.
Talvez, percebendo que havia algo diferente em mim, meus pais não falaram nada e começaram a me levar para onde eu iria dormir — não era na mansão — estavam me guiando para o armazém.
Uma mulher usando um vestido nos observava pela porta, olhando feio para mim, já que eu não deveria sair do quarto. E vestidos com roupas bordadas com joias, o filho mais velho, Rutart, e a filha mais velha, Merce, estavam olhando também. Eram os herdeiros da esposa oficial.
Atrás deles estavam homens altos, bonitos e com longas orelhas, vestindo ternos. Era possível ver o desprezo em seus olhos.
— Meu deus, uma criança mal-educada não é diferente de um animal.
Essa mulher, com os olhos semiabertos e cabelo preso, era a exata imagem de uma senhora nobre daquela memória. Meus irmãos usavam roupas caras diferentes das minhas.
Minha mãe se desculpou e meu pai continuou me levando para o armazém, se esforçando muito para não demonstrar emoções até chegarmos lá.
— Reflita sobre suas ações… mais tarde você pode ir jantar.
Quando meu pai terminou de falar, percebi que já havia um convidado no armazém. O segundo filho, Nicks, o irmão mais velho, que se vestia como eu, lia um livro sob a luz da lanterna. Senti uma sensação estranha quando vi ele.
— Você é um idiota. É só aguentar um pouco e aquelas pessoas vão embora — disse Nicks dando uma olhada rápida em nossa direção.
Quando percebeu que seu filho estava focando no livro mais uma vez, meu pai deu um tapa em sua cabeça.
— Nicks, ajude Leon com o estudo.
O rosto do meu irmão mostrava sua insatisfação, não parecia estar com vontade de me ajudar, mas, ainda assim, liberou um pouco de espaço na mesa para eu me sentar.
— Se você dormir vou te acordar no tapa — avisou o segundo filho.
Depois que percebeu que ele iria cooperar, meu pai voltou para a mansão. Agora eram apenas nós dois, meu irmão passou um livro, que foi lido tantas vezes que as páginas já estava se desfazendo e havia anotações por toda a parte.
Estávamos dentro de um armazém. Eu lia enquanto matava os mosquitos que não paravam de nos incomodar. Ainda me sentia estranho. Havia uma linguagem diferente em mim. Era muito diferente da que estava escrita nesse livro. Porém sentia que aquela linguagem era muito mais fácil.
Enquanto eu pensava sobre isso, meu irmão deve ter achado que eu estava tendo dificuldade na leitura.
— Pense um pouco mais. Se você não conseguir mesmo assim, eu vou te ajudar.
O tempo foi passando. Os insetos irritantes continuavam nos rodeando.
— Ei, aniki9.
Ele ficou um pouco surpreso com a minha fala.
— Aniki? Você não me chamava de nii-san10 até essa manhã?
Tentei me corrigir, contudo, meu irmão já tinha chegado a uma conclusão.
— Está tentando parecer mais velho? Bem, não faz diferença para mim. Tem alguma coisa que não conseguiu entender?
Neguei com a cabeça. Queria saber por que éramos tratados assim. Isso não tinha me incomodado até hoje, entretanto comecei a achar estranho depois de receber aquelas memórias.
Entendia o motivo do filho mais velho ser valorizado, mas porque só a gente foi mandado para o armazém? Também há filhas mais velhas e mais novas. E, mesmo assim, elas não estavam aqui, mesmo sendo ilegítimas como nós.
— Porque somos os únicos aqui?
Meu irmão começou a murmurar sozinho, dizendo: — Me disseram que ia ser só até ontem… — então largou o livro e olhou para o teto.
— É porque a esposa nos odeia.
— Por causa da nossa mãe?
Meu irmão colocou as mãos atrás da cabeça e se inclinou na cadeira.
— Você acha que tem alguma outra razão? Mesmo que sejam filhas de uma concubina, ela não pode mandá-las para o armazém, mas é assim que nós homens somos tratados.
E então meu irmão começou a explicar a situação da nossa casa. Ele, que tinha apenas 7 anos, parecia muito incomodado com o assunto e eu, o mais novo dos 3 filhos, teria que ouvir suas reclamações.
A família Bartfort era uma casa de barões que tinha uma ilha flutuante como território. No entanto, antigamente, era apenas uma casa de cavaleiros com o ranque de baronetes, nobres de baixo ranque, mas, por termos um território, tinham o título de senhores feudais
Parece que viviam de forma muito pacifica para uma casa de cavaleiros. Os meses e anos foram passando e antes de perceberem já haviam se tornado uma casa grande que precisava contratava soldados para ajudar a manter o feudo. Foi então que cavaleiros começaram a aparecer, querendo servi-los, fazendo a situação mudar cada vez mais.
A população aumentou, os campos para alimentá-la também, isso queria dizer que a área que os Bartfort tinham que governar havia crescido. Chegando ao ponto onde tamanho do feudo alcançara o mínimo necessário para ser considerado o território de uma família de barões.
Foi assim que chegamos a este ponto... Investigadores do Reino de Holfort foram para o local, quando o líder da casa ainda era meu avô, para verificar se o tamanho do feudo era digno de uma família de barões.
Depois de confirmar que o território era grande o suficiente para a promoção, começaram a explicar o que aconteceria dali em diante, mas parece que meu avô não tinha prestado atenção no que disseram. De qualquer forma, não foi uma promoção intencional.
Foi então que mais memórias ressurgiram. Ascender nos ranques não era algo bom? E também, iriam simplesmente decidir isso checando o tamanho do território? Não eram necessárias mais conquistas militares ou coisa parecida para aumentar nosso status social? Essas perguntas apareceram depois de pensar no assunto.
— Subir de ranque foi algo ruim?
Pela forma com que meu irmão contou a história e pela tristeza que meu pai demostrava quando o assunto era o feudo, não parecia ter sido algo bom.
— Houveram reclamações sobre o quão rápido foi a ascensão de nossa família e queriam que uma casa de barões contribuísse para o reino de forma apropriada. Apenas desculpas para conseguir nosso dinheiro. Por conta disso nossos cofres estão quase vazios.
O reino queria ganhar de acordo com o status da casa. Desta vez aquelas memórias me mostraram uma história. Uma família nobre que mal tinha dinheiro e outra que tinha mais que o necessário. A casa que tinha muito sobrando pagava os impostos e investia em outras áreas sem enfrentar problemas financeiros, mas a outra tinha dificuldade até para pagar os tributos. Simplificando, mesmo que nosso tamanho fosse o suficiente para sermos barões, não tínhamos muito poder.
E como se isso não fosse o suficiente, assim que nos tornamos uma família de barões. Tivemos que agir de acordo com nosso ranque, por isso pai teve que casar com uma mulher com o status social alto. Porém ela mal vinha ao território. O filho e filha mais velhos também.
— O pai… papai e a esposa são casados, não é? Porque ela quase nunca está aqui?
— Isso é normal para as mulheres de casas de barões e ranques mais altos. É algo detestável. Quando eu me casar, terei certeza de que ela seja no máximo de uma família de baronetes. Bem, as que tiverem o status mais alto que isso nem olhariam para nossa cara.
— Isso é normal?
— É melhor você começar a estudar logo. Ou será impossível de conseguir uma esposa no futuro, você tem que conseguir uma antes dos vinte. Se não conseguir uma noiva na academia, provavelmente será usado como marido-de-fachada para mulheres muito mais velhas. Isso não seria legal, não é?
Não conseguia esconder minha surpresa... Havia várias perguntas em minha cabeça, sobre a academia e tal… porém o que tinha me incomodava era a palavra marido-de-fachada. Não eram as mulheres que deveriam se casar o mais rápido possível?
— E-ei, nii-san?
— Está tudo bem se você quiser me chamar de aniki. O que foi?
— Homens são a figura central da maioria das casas, não é? Na verdade, me fale mais sobre isso de ser forçado a casar com uma mulher mais velha?
Meu irmão pareceu um pouco incomodado com a pergunta.
— É exatamente como disse antes. Há várias senhoras que não estão casadas, talvez seu marido tenha fugido, ou nunca tiveram um. Elas precisam de um homem pelo menos no papel para não passarem vergonha. Então existem várias mulheres mais velhas a procura de jovens para servirem de marido-de-fachada.
Ele respondeu com um olhar bem sério.
— Geralmente homens que tem a posição superior, não é?
Pelas memórias que recebi, tinha a vaga sensação de que eram os homens os líderes da família na maioria das vezes. Entretanto, parece que não era o caso aqui.
— É só olhar para o pai e você verá que são as mulheres que mandam. Também perceberá que não pode ir contra aquela idio- esposa.
Vendo como se corrigiu trocando “idiota” por “esposa”, percebi que meu irmão não gostava muito dela. Depois ele falou algo que me deixou preocupado.
— Você está estranho hoje.
Forcei um sorriso para a suspeita dele enquanto voltava minha linha de visão para o livro, mas eu não conseguia parar de suar frio.
Que estranho… esse mundo era muito estranho. Por causa deste conhecimento que consegui, me sentia desconfortável. Li o livro em silêncio por um tempo. E então me lembrei de algumas palavras do meu irmão. Palavras que, por algum motivo, não saiam da minha cabeça.
— Academia… Reino de Holfort? E os serventes da esposa, eram elfos? Hm? Não pode ser...?
Comecei a falar sozinho, contudo isso começou a incomodar meu irmão.
— O que foi.
— E-é, aqueles caras com ternos. Os elfos eram os amantes da esposa, não é?
Meu irmão manteve a compostura, mas era possível ver que estava levemente chocado,
— Não pergunte esse tipo de coisa. Vai, foco no estudo.
Aqueles elfos, que eram parte de uma outra raça, eram os amantes dela, servos que foram pagos para cumprir essa função … eu entendia isso, ou melhor, eu lembrei disso.
— Esse é o mundo daquele jogo otome — falei, enquanto jogava meu corpo na mesa.
As memórias começaram a ficar mais claras. E quando isso aconteceu, lembrei que esse cenário era a mesma que existia naquele jogo.
Meu irmão deu um tapa na minha cabeça.
— Não dorme! O que aconteceu com você hoje? Bateu a cabeça em algum lugar.
Levantei e olhei para os seus olhos. Um sorriso rígido se formou em meu rosto, meu irmão ficou surpreso e acabou se afastando.
— O-o que foi?
— Aniki… esse mundo é uma merda, não é?
— Hã?... sim, ele é.
Meu irmão, incomodado pela pergunta, voltou sua visão para o livro, como se tentasse fugir do meu olhar.
Nunca pensei que seria reencarnado em outro mundo. Ainda mais em um mundo de espadas e magia… no entanto, não queria que fosse esse mundo onde mulheres estão acima dos homens. Segurei a cabeça com as duas mãos e gritei: — Merdaaaaaaaaaaa!
— O que está acontecendo com você! Alguém faz esse cara calar a boca! — Meu irmão reclamou por conta do grito inesperado.
Eu, Leon Fou Bartfort, um antigo trabalhador japonês acabou reencarnou em um mundo de um otomege… porque não foi um mundo mais normal? Por que logo aquele jogo… me dá um tempo.
Notas:
1 – Jogos otome (também conhecidos como otomege)são jogos de romance voltados para mulheres, na maioria das vezes são simuladores de encontro com uma protagonista feminina, assim como nessa novel.
2 – Simuladores de encontro.
3 – Gal games (galge)são os jogos de romance voltados para o público masculino.
4 – Fujoshis são garotas que gostam de ver relações yaoi/homossexuais entre homens em manga/animes/novel.
5 – Dessa forma:
6 – RNG, Randon Number Generator, Gerador de Números Aleatório, é o que gera a aleatoriedade em um jogo.
7 – Aproximadamente 5 reais; Se formos comparar de outra forma é como se o japonês estivesse gastando um real.
8 – Nesta obra os títulos de nobreza são classificados nessa ordem:
Rei
Príncipe herdeiro
Príncipe
Duque
Marquês
Conde
Visconde
Barão
Baronete
Cavaleiro
9 – Uma forma que, na maioria das vezes, adolescentes usam para se referirem aos irmão mais velhos.
10 – Uma forma mais fofa de se referir ao seu irmão mais velho.