Volume 1
Capítulo 20: Falsas Dualidades
As ruas movimentadas e o acelerado fluxo de carruagens que iam e vinham pela estrada de calçamento marcavam a realidade rotineira de um prestigiado bairro localizado dentro dos limites que correspondiam às Casas Centrais, situadas nas cercanias do palácio da imperatriz. A região mais nobre de Vespaguem.
Essas áreas contrastavam com os dilemas vivenciados por grande parte da população, situada nos Ninhos de Impuros e nas regiões costeiras à Grande Barreira. O coração da cidade era sinal de prosperidade, nesse espaço, as grandes famílias e as ordens guerreiras mais elevadas colhiam seus frutos, coexistindo em harmonia.
Um ambiente aberto, situado de frente para a frenética avenida, era o local onde duas figuras ostentavam os luxos ofertados por um elegante restaurante que seguia os mais finos padrões de requinte.
Em uma mesa alocada na varanda do segundo andar, ao lado do peitoral, o cliente parou de apreciar a excelente vista e dispensou, com um gesto discreto, o atendente que terminava de entregar o pedido. A postura calma e os olhos aguçados sempre foram características de Latrev.
— É sempre bom desfrutar das regalias que a nobreza possui.
Mildifer apoiou uma das mãos no queixo enquanto analisava o comportamento do velho conhecido.
— Imagino que deve ser uma sensação nostálgica.
— Sou obrigado a confessar que meus dias na corte tiveram seus benefícios, mas isso ficou no passado. — Latrev apoiou as costas na cadeira e alongou os braços atrás da nuca. — Não há motivos para falar disso agora.
O nobre da grande linhagem dos Dorhen percebeu que, ao abordar o assunto, o aliado mantinha uma feição difícil de ler, contudo, não pretendia tornar desnecessariamente sua refeição indigesta.
— Bom… vamos falar sobre a questão que me fez chamá-lo aqui. — Se inclinou para frente e apoiou os cotovelos sobre a mesa. — Tenho novidades referentes a associação, achei melhor termos uma conversa antes de compartilhá-las com o conselho dos Kadiras.
— Vejo que um senhor de negócios não gosta de perder tempo.
— O primeiro ponto que quero abordar é sobre a incursão no complexo subterrâneo. Como já deve estar a par, os fiscais do império foram os incumbidos de investigar o ocorrido, porém nunca demonstraram ter muito ímpeto em esclarecer a questão. Ontem, os trabalhos foram encerrados e os túneis lacrados.
— O que ganham lacrando uma galeria que já está soterrada? — Quanto cuidado. Duvido que isso seja um mero acaso.
— No momento essa é a menor de nossas preocupações.
— Não perderia seu tempo comigo, se o assunto não fosse grave.
Mildifer sacou uma carta do manto e fixou seus olhos no amigo.
— Depois da última reunião, recebi esta mensagem, que tem perturbado meu sono. — Ele colocou a carta sobre a mesa. — Existe a possibilidade de haver um traidor entre nós.
— Qualquer um poderia tê-la enviado, qual o real motivo capaz de abalar um figurão como você? Já imaginávamos que um dia algo assim pudesse acontecer. — Latrev pegou a carta.
O nobre apertou os punhos.
— Está vendo esse emblema no canto superior? Esta é a mesma marca que estava no local em que meu filho morreu.
Ele avaliou o emblema negro que consistia em uma águia escapando de uma gaiola espinhenta.
— Esta questão está se tornando cada vez mais traiçoeira. Não bastavam esses curiosos sumiços e o caos da febre do demônio, agora os episódios ocorridos em Armeria voltam a nos assombrar.
Latrev olhou mais uma vez para a carta e escolheu com cuidado as palavras.
— Gragnir sabia dos perigos que corria quando começou a se envolver como uma peça no jogo de poder entre os seguidores da soberana e os apoiadores remanescentes do antigo imperador. Você se lembra, o avisamos que era muito arriscado.
— Não ouse falar dele! — Mildifer deu um tapa sobre a mesa. — Ele já pagou por seus erros…
— Aquele lugar cheira à morte, um apinhado conjunto de favelas que se perdem até onde a vista alcança. Ninguém de fora consegue descobrir muito sobre o que acontece em seu interior.
O nobre levou uma das mãos sobre o rosto.
— A menor ação exige a cautela redobrada, sempre que um assunto envolve esse distrito. — Respirou fundo e olhou nos olhos do companheiro. — Tem alguma sugestão?
Latrev sabia que um Kadira só teria a ganhar ao obter pistas sobre o inimigo, figuras influentes não seriam facilmente dobradas.
— Acredito que devemos ampliar as possibilidades. Pouco tempo depois do fatídico acontecimento com seu primogênito, os boatos de desaparecimentos surgiram pela cidade. Essa questão apenas cresceu e se tornou um dos pontos que motivou a criação da associação. Esse processo não ocorreu da noite para o dia, as tratativas de uma aliança entre os influentes na região geraram atritos, sempre pensamos na chance de alguma informação relevante ter vazado devido às desavenças entre os membros, cito tudo isso porque devemos considerar a possibilidade desse espião estar impregnado no cerne da associação.
— Desconfia de um Kadira?
— É apenas uma hipótese, nada mais que isso.
— De todo modo, isso certamente abalaria o conselho.
O Caça-contrato levantou-se e colocou uma das mãos no ombro de Mildifer.
— Esse não é o primeiro problema que enfrentamos juntos e com certeza não será o último, já vi de perto você contornar situações ainda mais complicadas. — Ele começou a se retirar.
— Vou convocar uma reunião para os próximos dias, nos vemos em breve — disse para o amigo que saía.
Fora do restaurante, Latrev deparou-se novamente com o esplendor da parte mais afortunada de Vespaguem. Instintivamente a caminhada o remeteu as nostálgicas lembranças do período que serviu como um exímio guerreiro imperial.
Ainda se recordava de seus dias dourados quando enfim deixou para trás os limites das Casas Centrais. Olhou para os ponteiros do grande relógio situado na lateral de um dos prédios, adentrou os fundos do beco ao lado e descobriu um símbolo em sua pele que estava oculto por sua manga direita. Era um marcador de Teslan. No instante seguinte, acabava de aparecer no pátio de treinamentos, situado no interior da sede dos Caça-contratos.
Com sua viagem instantânea, atravessou a cidade em um piscar de olhos. Manteve-se calmo, apesar de tal recurso fugir da normalidade, evidenciando que já estava habituado em utilizá-lo.
Latrev passou a caminhar naturalmente pelos corredores rumo a seus aposentos, porém, ao avistar a comitiva de Teslan, que preparava-se para partir, decidiu cruzar o pátio.
— Vejo que já estão prontos para partir.
— Nunca estamos totalmente prontos para adentrar no desconhecido. — Teslan pegou a mochila, ao ver seus companheiros, com semblantes preguiçosos, se reagruparem.
— Cada um tem que enfrentar seus próprios problemas — disse cabisbaixo, antes de encarar o amigo mais uma vez. — Por que a demora? Já deviam estar longe a essa hora.
— Já que falou de problemas… tornará mais fácil a sua conversa com Dibian. Pela madrugada surgiu um problema que estou indo resolver. Gostaria de explicar melhor, porém aqui não é o lugar mais apropriado. Dibian o deixará por dentro do assunto.
Latrev compreendeu o comentário e começou a avaliar aqueles que compunham a expedição. Momento em que passou uma das mãos sobre a testa, assolado de forma repentina por terríveis dores de cabeça.
— Talvez eu deva parar de recorrer a seus marcadores por um tempo.
— Você está bem?
— Nada que mereça preocupação, somente tive a sensação de que estou esquecendo algo importante.
— Procure repousar, minha expedição partirá em poucos minutos para acompanhar o décimo primeiro esquadrão de Coletores. Voltaremos em três dias.
Latrev consentiu e deixou o local.
Com a chegada dos demais, Teslan deu suas ordens:
— Como já sabem, hoje, ultrapassaremos a Grande Barreira, contudo, surgiu um contratempo de última hora e faremos um pequeno desvio. Passaremos no posto de espólios para aclarar esse imprevisto.
Não houve nenhuma objeção. Assim, o grupo seguiu até a área de troca, na superfície.
Essas instalações eram peculiares e movimentados pontos situados nas cercanias da muralha, as quais costumavam ser os estabelecimentos mais visados para negociar os objetos encontrados durante as explorações realizadas fora dos muros da cidade-fortaleza. A cúpula imperial, por intermédio desses comerciantes e de alguns fiscais da corte, gostava de usar seu poder para vigiar as descobertas de quem se arriscava nas sombras em busca de achados capazes de mudar sua vida.
Como suas bases estavam estrategicamente acomodadas em espaços próximos da Grande Barreira, para facilitar o deslocamento e as atividades de exploração, as classes guerreiras mais baixas marcavam presença constante nos Postos de Trocas. As redondezas desses estabelecimentos eram marcadas por uma disparidade econômica, que causava um abrupto contraste na paisagem. Nessas áreas, havia prédios bem mais altos, se comparados com o tamanho das construções comuns, que se destacavam como verdadeiros pilares. Esses pequenos arranha-céus eram luxuosos refúgios para residentes de posses, normalmente propriedades privadas de Demônios de elevadas classes guerreiras, incumbidos de serem os olhos e ouvidos da corte de Vespaguem, enquanto as ruas movimentadas e repletas de Impuros retratavam a pobreza existente.
Não demorou para os Caça-contratos alcançarem a zona de transações.
— Um lugar caótico, como sempre — disse Barock, procurando algo que chamasse seu interesse.
— Viemos a trabalho, não temos tempo para perder com coisas perigosas. — Teslan apontou para as costas do colega. — Tenho certeza que carrega mais que o necessário dentro dessa mochila de ferro.
— Já entendi, mas seja rápido, odeio ficar parado. — Ele viu seu líder se afastar e entrar no prédio mais alto nas proximidades, sozinho.
Largados perto da entrada, o restante da unidade logo foi atraído por uma moderada agitação.
— O que está acontecendo lá na frente? — perguntou Esfer.
Olfiel se virou e deu meia dúzia de passos.
— Parece que punirão um ladrãozinho.
— Acho melhor relembrarem como funciona a lei de Vespaguem — falou Galezir para os dois novatos.
Ao ouvirem essas irônicas palavras, passaram a entender a situação, um Impuro acusado de roubo estava prestes a ser punido. Serviria de exemplo para manter inabalável a autoridade dos Demônios.
— Minha intenção não foi roubar… — alegou o acusado.
— Calado, seu verme, vou te aplicar uma lição que o fará nunca mais voltar aqui — afirmou um dos vigias do ponto de transições.
— Por favor, seja compreensivo.
— Me recuso a continuar perdendo meu tempo com alguém como você.
Os Caça-contratos olhavam a cena, mas não moveram um dedo sequer para intervir.
— Deixarão as coisas seguirem o próprio caminho? — perguntou Esfer para os companheiros.
— Antes ele do que a gente. — Cão virou-se de costas e buscou um ponto mais afastado onde aguardaria até o retorno de Teslan.
— Vejo que devem apreciar o pequeno espetáculo. — Esfer franziu a testa e levou uma das mãos ao rosto, conforme conversava com os Caça-contratos percebia que mais adiante os ânimos continuavam aflorados.
— Eu não retornarei aqui — suplicou o acusado que procurava uma brecha para se soltar e fugir.
— E não vai. — O vigia sacou a espada que mantinha consigo e iniciava o movimento para apunhalá-lo quando foi impedido por fios similares a uma teia, que envolveram seu braço.
— O que está acontecendo aqui? Poderia me contar? — Uma terceira figura acabava de interferir na discussão. Era apenas mais um Demônio que aos olhos de todos demonstrava nada de especial.
— Ele roubou, estou agindo de acordo com os meus direitos.
— Que conveniente.
— Por acaso vai defendê-lo? Quem é você afinal?
— Esse é um termo muito forte, apenas desejo resolver a situação. Tenho certeza que ele não fez por mal.
— Peguei esse nojento roubando, isso é um fato inegável.
— Mas quem está segurando o saco é você, no mínimo isso me causa uma certa estranheza.
— Deveria evitar de se intrometer nos assuntos dos outros.
— Senhor, isso me pareceu uma ameaça — disse um guerreiro alto e moreno, que surgiu poucos metros atrás do agressor, ostentando parte da espada para fora da bainha.
O Demônio antes sob o comando das ações, agora olhava para ambos os lados com um semblante acuado.
— O que você ganha ajudando esse estorvo?
— Me pergunto isso todos os dias. — As linhas ao redor do corpo do manipulador começavam a movimentar-se de forma ameaçadora.
— Não pense que isso ficará assim, vamos nos encontrar novamente. — Ele empurrou e derrubou o Impuro no chão. O jovem logo fugiu, em disparada, do local.
— Estou ciente disso — falou Sirum enquanto via seu mais novo desafeto trombar em um dos pedestres e se afastar com passos raivosos.
— A partir de hoje você deve ser mais cuidadoso por aqui — alertou o servo.
— Talvez você esteja certo, Snofer. Vamos logo sair daqui.
Os dois deixaram a área.
O grupo de Caça-contratos parecia surpreso com o desenrolar dos fatos, principalmente Esfer, que refletia sobre a situação, recusando-se em acreditar na bondade do Demônio, enquanto se recordava de tudo que já havia passado.
Barock se levantou.
— Eu achava que já tinha visto de tudo, mas sou obrigado a confessar que essa é nova para mim. — Ele alongou os braços e apoiou as palmas das mãos sobre a nuca, despreocupado.
— Talvez ele pretendesse fazer certas coisas com o Impuro. Esfer, por que você não vai atrás dele? Talvez descubra, entre quatro paredes. — Olfiel soltou um sorriso malicioso.
— Me recuso a ouvir mais uma palavra. — Esfer virou as costas e se afastou balançando a cabeça.
— Viram como o Impuro saiu correndo? — comentou Sark, com um sorrisinho debochado.
— Parecia Galezir, quando vê Calisto passar por perto — alegou Olfiel, alfinetando o colega.
Ele respirou fundo. Uma veia começava a dilatar em sua testa.
— Isso não é verdade, se fosse fugir de alguém, seria de você. Consegue esmurrar até os próprios pretendentes.
— Desgraçado! — Ela balançou a manopla de ferro no ar, em ameaça.
— Cuidado, ele pode ser seu próximo pretendente — disse Sark, apreciando a cena.
Do ponto em que repousava, isolado, Esfer ainda conseguia ouvir a bagunça dos colegas, enquanto olhava para o céu de Vespaguem, acreditando que sua busca parecia cada dia mais distante do seu objetivo. O Impuro remoía esses pensamentos sem esperar que em breve um perigo inimaginável colocaria em questão todas as suas aspirações sobre o mundo que acreditava conhecer.