Volume 1
Capítulo 3: Correndo pelas beiradas
Arredores de Riverline, por volta das 7 da manhã.
Acordei com as costas moídas, mesmo tendo dormido sobre uma cama de folhas. O desconforto me pusera de pé mais cedo do que planejava.
Preciso acabar logo com esta missão, antes que eu me acabe!
Enquanto intentava recompor-me da injuriosa noite mal dormida, ouvia ao longe alguns barulhos estranhos que vinham da direção de Riverline.
Rapidamente montei Vento-Galopante e berrei o nome da cidade na esperança de que o corcel entendesse a mensagem. Felizmente o cavalo seguiu mata afora rumo a Riverline.
A poucos metros do destino percebi que a algazarra tratava-se de um ataque, a julgar pelos gritos de agonia e tiros de pistola.
Saltei da montaria e corri até a igreja em busca do pastor. No percurso via-se corpos ensanguentados estirados pelo chão.
A vida fora sugada dali.
O cenário desolador conferia a Riverline a estética de uma cidade fantasma.
Enquanto dirigia-me à igreja, avistei na praça central um grupo de pessoas, mais precisamente cinco homens e uma mulher, com tochas nas mãos em plena luz do dia.
Vestiam-se como caçadores, sobretudo preto, lenço cobrindo o rosto e chapéus desgastados. As tochas não aparentavam estar ali para de iluminar o caminho, mas a postos para queimar alguns sujeitos amarrados em estacas.
O pastor e os homens de branco! Droga, a minha presa! Preciso correr lá antes que o queimem!
— Ei...! — Um grito impulsivo saiu da minha garganta. Não tinha mais volta. Os homens sinistros viraram seus rostos em minha direção.
Um intuito assassino pairava no ar.
— Restou alguém vivo? — disse a mulher. Uma outra bela mulher, diga-se de passagem. Tinha uma cara de durona, mas nada que destoasse de seu harmonioso rosto. Trajava uma vestimenta preta que combinava com os cabelos longos e os olhos negros.
— Ele não parece ser daqui... — falou um homem loiro magrelo.
— As roupa são de caçador! — Outro sujeito, gordo e com os dentes amarelos desgastados, replicou.
— Ele chêra como um...— Um terceiro homem, negro e de barba farta, complementou.
— O que faz aqui, caçador? Esta é a nossa área! — disse a mulher.
Ufa...
— Olá, amigos! Desculpem-me atrapalhar sua caçada, mas esse homem vestido de reverendo é uma das minhas cabeças-prêmio!
— Esse? — A mulher apontou para o pastor que já estava morto amarrado na estaca.
— S-sim...
— De que cidade você vem, caçador?
— D-de onde eu venho?
O que eu deveria responder?
— Ele é de Lost Sun! Tem chêro de Lost Sun! — falou o homem negro.
De novo esse negócio de cheiro?
— Há! Há! Há! Há! O pessoar de Lost Sun num é brincadêra! — O gordo ria como se soubesse de algo.
— Você faz ideia de quem são esses homens pendurados aqui? — A mulher manteve-se séria.
— E... eu deveria?!
— Novato...
Todos começaram a rir, menos a moça.
— Só pelo seu culhão de vir enfrentá-los eu permito que fique com a cabeça do pastor. Distúrbio, desça a caça!
— Sim, senhorita Óbice!
— V-vocês não são de Lost Sun?
— Não.
— Quem são esses homens amarrados? Conhecidos...?
— Pegue a cabeça e caia fora daqui...
Que impaciente!
— Tá certo...
Retirei a cabeça do homem e coloquei na minha bolsa. Montei em Vento-Galopante e parti em retirada de Riverline.
O peso imensurável dos mortos caiu sobre minhas costas ao sair daquele lugar. Era como se a culpa por fazer parte daquela chacina esmagasse os meus ossos.
Mulheres, crianças, inocentes de todo o tipo foram mortos pelos caçadores. Nada restou. No entanto, o que eu poderia fazer? Seria apenas mais um no monte de corpos se contrariasse a vontade deles...
Lost Sun. Um tempo depois...
— Ora, ora... e não é que você consegui passar pelo segundo teste? — O maldito Xerife-da-Noite esboçou mais um daqueles sinistros sorrisos. Daria a minha alma para poder socar aqueles dentes amarelos. — Alegre-se, não são todos os que conseguem!
Tecnicamente eu não o matei, mas quem precisa saber, né?
— Tome!
Tlin!
O xerife colocou outras duas fichas de crédito na mesa.
— Vai querer pagar por mais respostas?
“Quem eram aqueles homens de branco?”, “Existem outros caçadores fora de Lost Sun?”, “Por que matamos pessoas inocentes?”, “Por que essa maldita neblina nunca dissipa?”, “Como eu vim parar aqui?”, “Que diabos é Lost Sun?”
Eram tantas as perguntas que eu não saberia por onde começar, contudo precisava alimentar-me direito e dormir uma boa noite de sono numa cama confortável.
As respostas deveriam esperar um pouco.
Saí da delegacia e segui para a hospedaria. Por sorte o serviço de quarto servia uma bela sopa. Comi rapidamente e capotei.
Os incessáveis pesadelos consumiram a minha mente.
Após algumas horas dormidas, levantei-me da cama um pouco mais disposto e segui em busca do meu terceiro teste.
Na delegacia encontrei-me novamente com Escorpião-Sorrateiro, um dos caçadores que conheci no primeiro teste. Estava sentado na cadeira à frente da mesa do xerife discutindo os termos da sua última empreitada antes de tornar-se oficialmente um dos lacaios de Lost Sun.
— Coiote-do-Deserto! Que bela surpresa!
—Ah, olá! Lembro-me de você... e vejo que também lembra-se de mim...
— Conseguiu passar pelos testes desse demônio?! Há! Há! Há! Há!
— Olhe como fala, maldito! — disse o Xerife-da-Noite. — Sente-se, Coiote-do-Deserto. Discutiremos os termos do seu último teste.
— Não seria melhor encerrarem a conversa de vocês antes?
— Não, preciso falar com os dois ao mesmo tempo. O terceiro teste é feito em conjunto.
— Entendi. — Sentei-me numa cadeira ao lado de Escorpião-Sorrateiro.
— Muito bem. Não sei se repararam, mas todos os testes feitos até agora possuíam caráter progressivo de dificuldade. O primeiro foi uma caçada simples sem muita dificuldade de pessoas sem importância e com um dia de deadline; o segundo consistia em uma presa mais importante, com um nível de complexidade maior contando com dois dias de limite; e seguindo a lógica, o terceiro e último é um ainda mais perigoso e significativo. Vamos aos termos.
O xerife pegou dois caderninhos em sua gaveta e colocou sobre a mesa.
— Este é o roteiro da missão. Em cada um desses diários está escrito o que deve ser feito. Vocês podem até compartilhar as informações de cada caderneta com o outro, mas os alerto de antemão que se isso for feito comprometerá a missão do companheiro, eu tenho quase certeza que não é isso que querem, não é? Hé! Hé! Hé! Hé!
Mais um desses joguinhos!
Escorpião-Sorrateiro entreolhou-me discretamente. Peguei a agenda e guardei no bolso do sobretudo.
— Desta vez não há mais limite de tempo. Contudo, não podem retornar sem cumprir o teste. O objetivo dessa última etapa é o de desestabilizar uma pequena cidade para que a dominemos!
O quê?
— Vocês precisarão agir com cautela, ou seja, infiltrar-se nas instituições, ganhar a confiança dos líderes locais e matá-los! Os nomes e informações dos alvos estão nos diários, divirtam-se!
***
Dirigi-me ao estábulo imediatamente após a conversa com o xerife. Escorpião-Sorrateiro acompanhava-me segurando uma lanterna.
A neblina já nem me afetava mais, meus sentidos acomodaram-se à ela. Era o “charme” desgraçado que tornava Lost Sun peculiar.
— Olá novamente, cavalheiros! — Virgil saudou- nos com um sorriso simpático. — Suas montarias estão de prontidão nas respectivas baias.
— Obrigado, Virgil! — Escorpião-Sorrateiro sorriu de volta e acenou com o chapéu balançando a cabeça.
Vento-Galopante aparentava estar feliz em ver-me. O cavalo pulava e relinchava alegremente. Também estava feliz em vê-lo. O animal salvara a minha pela na última missão.
— Vejo que leva jeito com eles, senhor Coiote-do-Deserto — disse Virgil. — Nossos animais não são do tipo afetuosos.
Permaneci calado e acariciei o cavalo.
— Como ele se chama? — falou Escorpião-Sorrateiro.
— Vento-Galopante.
— Prazer, Vento-Galopante! Eu sou o Mar... digo, Escorpião-Sorrateiro. — O caçador afagou a montaria meio sem jeito por quase deixar escapar seu nome verdadeiro.
Dei um leve sorriso.
— Isso também acontece comigo. Ainda não me acostumei com o codinome.
— Pois é. Acontece... Ah, esse é o Peso-Leve. — Escorpião-Sorrateiro apontou para o seu cavalo. Era um animal magro, aparentava mal alimentado e tinha uma pelagem cinza.
— Prazer conhecê-lo, Peso-Leve.
— Muito bem, senhores... — falou Virgil. — Fiquem à vontade. Se precisarem de mim, é só chamar!
O cuidador de cavalos despediu-se e desapareceu na névoa.
— Bem, acho que essa é a nossa deixa! Vamos lá?! — disse Escorpião-Sorrateiro.
— Vamos!
— Ah, Coiote-do-Deserto. Ia me esquecendo... acha que deveríamos compartilhar as informações dos nossos diários?
Parei por um instante. Refleti acerca daquelas implicações e por um momento levei a mão no bolso do sobretudo.
— Acho melhor não, né?
— Hé! Hé! Hé! Esperto...
Encarei Escorpião-Sorrateiro por alguns segundos no intuito de ler suas intenções.
Não posso confiar em ninguém!
Partimos para a terceira e última missão.
A insanidade escalava cada vez mais. Será que no meio de tudo aquilo eu havia perdido a minha? Entrei nessa história como um homem da lei e afundava-me cada vez mais numa terrível vida de assassinatos terríveis no afã de libertar-me daquela loucura.
Será que eu sou um psicopata enrustido?
Talvez não. Possivelmente o meu medo de ser morto é que me mantém emaranhado naquela teia de aranha maldita.
Quanto tempo se passou desde que tudo isso começou?
Não conseguia mais distinguir os dias. Para mim passaram-se muitos, mas em Lost Sun era sempre uma eterna sexta.
Aquilo deve ser um teatro. Eles sempre fingem e dizem que é sexta para me enganar! Como não sei se é dia ou noite, isso passa batido!
— No que está pensando? — disse Escorpião-Sorrateiro. Seu cavalo embora aparentasse desnutrido não tinha nenhuma dificuldade em acompanhar a alta velocidade de Vento-Galopante.
— N-nada demais...
Pensei um pouco.
— Aliás... tem algo sim! Estou pensado em como Lost Sun nos engana! Gostaria de saber quanto tempo se passou desde o dia que cheguei lá. É impossível mensurar devido a névoa densa, e sempre que pergunto, as pessoas dizem que é sexta. Falam que sábado eles poderão descansar e por isso vivem comemorando no saloon e palas ruas.
— Acho que isso é um ambiente criado para nos desorientar...
— Foi exatamente isso que eu pensei!
— Como eu te disse da última vez que nos encontramos, nada me tira da cabeça que aquele local é uma seita de matadores...
— É verdade! Você disse isso mesmo! Além do mais, fez mais algum progresso em descobrir os mistérios do lugar? Em que gastou seus créditos?
— Créditos?
— Sim, o dinheiro que o xerife te oferece quando leva uma cabeça até ele... com os créditos você pode comprar coisas na cidade ou obter respostas...
— Estranho... — Escorpião-Sorrateiro abaixou a cabeça por um segundo. — Ah, sim! Os créditos...!
Notei de relance a dúvida no olhar do caçador. Era como se soubesse de algo e disfarçou no intuito de esconder a informação.
— T-tem alguma ideia de onde estamos indo? — Mudei o tópico do assunto a fim de finalizar o silêncio constrangedor que pairou no ar.
— Não... mas esses cavalos são quase mágicos. Nos levam e trazem sem precisarmos guiá-los.
Era impressionante. Vento-Galopante e Peso-Leve mantinham o pique constante desde que saímos de Lost Sun sem pestanejar.
— Você se lembra de como foi parar em Lost Sun? — disse meio sem esperança de resposta apenas para continuar a conversa.
Escorpião-Sorrateiro respirou fundo.
— Eles atacaram a fazenda do meu patrão. Mataram minha mulher e raptaram meu filho.
— Entendo. Me lembro de você ter dito que era um contador de uma fazenda em Prudence....
O caçador abaixou a cabeça e olhou fixo para o nada.
— Aconteceu algo?!
— Não. A verdade é que eu menti naquela vez. Não era um contador, na verdade eu era o chefe da segurança da fazenda.
— Hunf! — gungunei pra mim mesmo. — Então você criou um belo de personagem, pois não tem os trejeitos de um capanga. Sua fala é polida, se veste bem...
— Você também não parece ser um xerife...
O caçador olhou-me como se escrutinasse a minha alma a fim de encontrar algum segredo escondido.
— E você, Coiote-do-deserto? Como foi parar em Lost Sun?
— Não me lembro muito bem. Na verdade eu era um xerife num destacamento de um pequeno condado no Colorado. Vivia uma vida tranquila e preguiçosa, resolvendo apenas pequenos delitos com bêbados e “meliantezinhos”. Na verdade eu queria ser advogado. Estudei muito para isso. Lembro-me de ter sido transferido para Whitegrass, que embora também fosse uma cidadezinha, era muito mais complicada, um território de bandidos e foras da lei da pior estirpe! Desconfio que os meus superiores me viam como um inútil e me enviaram para a morte certa. Recordo-me de ter sido atacado por um grupo de bandidos antes de aparecer em Lost Sun. Mas é tudo muito fragmentado.
— E acredita que esses “bandidos” sejam na verdade caçadores?
Assenti com a cabeça.