Volume 1
Capítulo 2: Os dentes de um cavalo dado
Encontrava-me nu mais uma vez. Parecia estar preso no dia da marmota! O loop das desgraças da minha vida.
Inferno! Não deveria confiar naquele bandido desgraçado!
Apalpei meu corpo e não senti as marcas de bala.
Será que o tiro pegou de raspão e eu desmaiei no susto? Será que os caçadores me resgataram e me jogaram novamente na entrada de Lost Sun? Ou será que eu realmente morri e Lost Sun é de fato o inferno?
Alguns lapsos de memória começaram a aparecer em minha mente. Não correspondiam às memórias do momento em que tomei o tiro do barman. Eram de antes.
Uma emboscada. Cinco caras vestidos de preto e com o rosto coberto. Atiraram em mim!
Talvez tenha sido esse o motivo de eu ter aparecido aqui pela primeira vez! Seriam esses caçadores de Lost Sun? Teriam os mesmos me raptado e jogado aqui?
Preciso ir até o maldito xerife!
Apressei-me até a delegacia. A neblina pregou-me diversas peças, dentre elas uma pancada no muro de uma casa qualquer. Todos zombavam daquela situação ridícula!
—Toda sexta é a mesma coisa! Há! Há! Há! Esses caras bebem até ficarem nus!
Sexta? Ainda é sexta?
Pedi ajuda a um transeunte com um lampião na mão. Mesmo a contragosto, mas no clima festivo, ele me ajudou a chegar à delegacia.
— Coiote-do-Deserto — disse o xerife — você falhou em sua missão!
Miserável!
— Que se dane a missão! Como um agente da lei eu exijo explicações!
— Você não tem nenhuma jurisdição e muito menos moral aqui! Além do mais, me deve seis almas!
— Seis?
— Duas do contrato anterior, duas de juros por não ter cumprido o contrato anterior e mais duas do novo contrato de hoje!
— Eu não vou mais fazer parte desse seu joguinho!
— Você não tem escolha, senhor Kennedy Vincent Ryan! Se não cumprir a parte do seu acordo nunca mais sairá daqui!
— C-como você sabe o meu nome?
— Sei muito mais do que imagina!
— E-eu não me importo com as suas chantagens! Não vou mais fazer parte desse tetro barato!
— Acha que se debandar nós deixaremos barato? Pense em Whitegrass! Nas pessoas que você ama, afinal, eles devem estar preocupados com o seu sumiço!
Eu sabia!
— Vocês me raptaram, não é? Me prenderam nessa seita maluca para realizar os assassinatos!
— Há! Há! Há! Que mente fértil!
— Admita, desgraçado!
— A realidade tende a ser decepcionante e ainda mais assombrosa... Há! Há! Há!
— Pare com esses enigmas idiotas e me diga o que fez comigo?
— Não está em posição de fazer exigências. Acho melhor você se aprontar para correr atrás do prejuízo, sua dívida comigo é alta e eu cobro caro!
Estava aprisionado. Naquele momento eu era a droga de um coelho encurralado no pesadelo mais real da minha vida!
Vesti-me novamente com o manto negro da morte e saí para ceifar as vidas na terra da desolação. Meus antigos companheiros foram substituídos por outros aos quais eu não conhecia os nomes e não tinha mais interesse em saber. Segui viagem na “embarcação” do Caronte calado como um túmulo.
Com seis cartazes na mão eu me assemelhava aos pivetes que entregavam panfletos nas esquinas dos mercados de Whitegrass. Que falta eu sentia deles!
Aqueles cabeças-prêmios representavam meus tíquetes para dar o fora de Lost Sun. Pelo menos em teoria, pois não acreditava em nenhuma palavra do maldito Xerife-do-Diabo-a-Quatro. Não deveria mais bancar o misericordioso. Da última vez que tive pena, quase fui morto.
Ingressei na missão focado. Ao sair da charrete peguei minhas pistolas e parti para cima dos procurados.
Primeiramente, dirigi-me ao maldito barman traiçoeiro que me atacou quando estava distraído e o executei à frente de outros cinco que bebiam no saloon. Os homens levantaram-se furiosos e começaram a atirar em mim. Pulei por cima do balcão e abriguei-me atrás do esconderijo. Revidei à altura e executei os malditos, que para minha sorte — diga-se imensa coincidência — era os demais procurados.
Um momento... o que significa...? Quais as chances...? Ah, por que eu estou reclamando?
De acordo com as orientações do Caronte, os cabeça-prêmio deveriam ter as cabeças, literalmente, arrancadas e colocadas em uma repartição da carruagem.
Seria por conta do espaço que um corpo inteiro ocupava?
Antes de conseguir os “prêmios” da caçada, escondi-me esperando uma retaliação dos homens da lei. Curiosamente ninguém apareceu. Tive tempo de comer um tira-gosto, tomar alguma bebida e sequestrar um charuto sobre a mesa.
Estava quase cochilando quando ouvi um transeunte adentrar o bar.
— Ei, desgraçado! Tamo te esperando pra ir embora! — Um dos caçadores que vieram comigo entrou aos berros no saloon.
— Como sabia que eu estava aqui?
— O carrocêro me contou. Ele pediu pra se apressá!
Coletei as cabeças-prêmio e guardei todas em um saco. O bar tanara-se um cenário desolador. Corpos mutilados e sangue por toda a parte.
— Por que ocê demorô? — O caçador me questionou.
— Estava escondido temendo que os homens da lei contra atacassem!
— Ah, isso num ia acontecê...
— Como?
— Eu matei o xerife!
— Quê? Desde quando matamos autoridades?
— Matamo quem nos pede pra matá!
Lost Sun. Horário indeterminado...
Caronte já estava a postos. Naquele dia apenas eu e o caçador que veio ao meu encontro no saloon saímos com a pele intacta da missão. No percurso de volta a Lost Sun, tentei espiar pela janela da carruagem a fim de me situar. Contudo fui impedido por uma cortina preta que encobria a abertura. Tive receio de retirá-la e ser repreendido uma outra vez.
Na delegacia entreguei as cabeças ao Xerife-da-Noite. O sujeito esboçou um sorriso sinistro que me arrepiou a espinha.
— Muito bem, Coiote-do-Deserto! É assim que se faz! Confesso que não acreditei que conseguiria trazer todas as seis cabeças de uma só vez! Parabéns, você passou no primeiro teste!
Primeiro o quê...?
— Não me venha com essa! Não pense que caio nessa armaçãozinha barata!
— Armação?
— Sim! Aquela do saloon...!
— Admito que não estou conseguindo acompanhar o seu raciocínio...
— Qual é a chance de todos os procurados estarem no mesmo lugar naquele bar? Vocês os colocaram lá de alguma forma, não foi?
— Nós?! De maneira nenhuma! Digamos que foi apenas uma maravilhosa coincidência!
Blan!
Tlin!
O homem colocou duas fichas de um metal dourado na mesa.
— O que é isso?
— Sua recompensa! São dois créditos em Lost Sun! Com uma você pode pagar uma refeição e com a outra um lugar para dormir, ou se preferir... — O xerife fez uma pausa dramática — com as duas eu posso te oferecer uma resposta que você tanto deseja!
Maldito, logo quando estou com fome e com sono!
— Você falou ante que eu passei no primeiro teste. Que teste é esse? O que é Lost Sun? Como eu vim parar aqui...?
— Eu disse uma pergunta... e sim, como eu disse, você passou no primeiro teste. Alegre-se! Muitos dos caçadores de recompensa que saem em busca dos cabeças-prêmios não obtém o mesmo êxito nas caçadas e com isso adquirem uma dívida muito grande comigo. Quando a dívida atinge dez cabeças eu julgo que o pistoleiro não tem o dom e ele deverá trabalhar para o Senhor-Sangrento como escravo aqui em Lost Sun. Para sempre...
—Senhor o quê?
— Senhor-Sangrento! É o homem mais importante de Lost Sun. Se tiver sorte, talvez nunca tope com ele...
— Mais enigmas...! Pare com esses malditos enigmas!
— Você mesmo viu. Não há como sair daqui sem que eu autorize! E mesmo que consiga, eu possuo uma grande rede de mercenários que o perseguirão aonde for! Mas não se desespere... Hé! Hé! Hé!
— Novamente, não estou entendendo nada...
— Seria muito chato se só eu ganhasse no jogo! É o seguinte, se conseguir cem cabeças eu te concedo uma passagem para fora de Lost Sun!
Calei-me por um instante.
— E aí?! — O homem estranho estendeu-me a mão direita — Feito?
Que opção eu tenho?
— Feito!
A mão do xerife ficou no vácuo.
— Bem, voltemos aos negócios. — O homem baixou a mão, pegou um novo cartaz e entregou-me.
— Só um?
— Este é o seu segundo teste. Se passar estará habilitado à terceira e última avaliação para tornar-se um dos caçadores de Lost Sun e assim comprar sua passagem para fora daqui. Boa sorte!
Saí da delegacia com o novo cartaz na mão andando a passos cuidadosamente lentos no intuito de não trombar em nada.
Adentrei-me em um beco e deitei-me na calçada. O tempo estava muito frio e resolvi dormir para passar a fome.
Levantei-me um tempo depois sem saber quantas horas haviam se passado. A neblina ainda mantinha o tempo indistinguível.
Andei até o ponto de encontro do carroceiro, disposto a cumprir meu segundo teste. Chegando lá, encontrei-me com um homem de lampião não mão. Ao aproximar-me, vi que não era o Caronte.
O sujeito tinha a pele negra e uma careca lustrosa. Usava óculos escuros, uma calça preta com suspensórios e uma camiseta branca de manga longa, além de uma gravata borboleta vermelha.
O estranho esboçava um longo sorriso branco, e cordialmente acenou para mim.
— Onde está o carroceiro?
— O senhor Caronte está ocupado guiando os novos caçadores aos seus respectivos objetivos, mas não se preocupe, vim aqui para ajudá-lo! Me chamo Virgil.
— Kenny... desculpe, Coiote-do-Deserto!
— Venha comigo, senhor Coiote-do-Deserto. Venha até o estábulo.
Pensei que não tivessem cavalos aqui...
Virgil transitava por Lost Sun como se a névoa não fosse um empecilho. Era como se tivesse decorado a rota de tanto fazê-la. Seguimos até o estábulo e fui apresentado aos belos cavalos de Lost Sun.
— Como você passou pelo primeiro teste, terá direito a um cavalo. Contudo, deixe-me explicar algumas regras. Você tem até dois dias para trazer as “almas”. Esse cavalo é um cavalo diferenciado que te guiará até o destino e retornará na data limite. Ele é especialmente treinado para tal propósito. Se tentar fugir sem o animal, prepare-se para ter a sua cabeça a prêmio e ser caçado até o inferno pelos nossos pistoleiros.
Não preciso ir pro inferno, já estou nele!
— Alguma dúvida? — Virgil esboçou novamente um grande sorriso simpático.
— Não. Cavalo inteligente, recompensa, dois dias, blá, blá, blá...
— Muito bem.
Fiiiiiiiu!
Virgil deu um longo assovio e um cavalo surgiu da névoa. Era um garanhão preto e musculoso com uma crina bem escovada e brilhante.
— Este é o Vento-Galopante. Ele será seu companheiro de viagem.
Fiz um carinho antes de montar a fim de criar um vínculo inicial. O animal rejeitou minha abordagem.
— Apenas monte — disse Virgil.
Subi no corcel. A cela era bastante confortável.
Distraído, enquanto ainda ajeitava-me, Vento-Galopante partiu em disparada. O animal não se intimidou com os obstáculos e sua visão não parecia limitada pela névoa. Eu, por outro lado, não enxerguei nada até sair das mediações de Lost Sun.
O pique de Vento-Galopante era contínuo. Nunca montara um cavalo tão resistente.
Que pena não poder roubá-lo para mim!
Certo tempo de cavalgada depois a neblina dissipara. Podia ver mais claramente as paisagens áridas do deserto do oeste.
Era mais um dia ensolarado e pelo posicionamento do sol aparentava ser umas nove horas da manhã.
Vento-Galopante diminuiu o ritmo quando aproximou-se de uma cidadezinha. Na placa lia-se Riverline.
Desci da montaria e amarrei o cavalo em um dos piquetes próximos a uma farmácia.
Riverline era bem pequeno e quase desértica. Um estranho como eu atraiu todos os olhares curiosos.
— Ei, forastêro! — Uma voz ecoou da varanda de uma das casas. — Acho mió ocê dá o fora daqui!
Mas eu nem cheguei direito...
— Olá, amigo! Mal lhe pergunte, qual o motivo de tamanha hostilidade? — falei.
— Não gostamo de gente esquisita!
Olha quem fala! Um velho calvo com uma verruga no nariz e sem os dentes da frente!
— Estou apenas de passagem! Não vou perturbá-los por muito tempo!
— Ocê fala muito bunitu. Ser acha melhó que nóis?!
Mas que diabos?!
— Não, senhor! Desculpe-me!
— Eu é que peço perdão, sinhô! — disse uma moça que saiu da casa e pegou o velho pelo braço e o colocou para dentro da casa. — Meu pai está com medo por causa dos constante ataque de bandido por essas banda. Ele acha que todo estranho é um deles...
— Entendo... — Retirei o chapéu e saudei a jovem. Era uma bela moça.
— O que faz nesse fim de mundo, sinhô?
— M-me chame de Kenny!
— O que faz neste fim de mundo, sinhô Kenny?
— Eu...
Eu assassino pessoas a serviço de uma seita diabólica chamada Lost Sun. Gostaria de tomar um café comigo?
— Eu sou um agente da divisão dos Texas Rangers. Procuro um malfeitor que pode estar rondando por essas bandas. —foi a melhor desculpa que consegui pensar. Era um xerife, então era uma meia verdade. Apanhei o cartaz da minha bolça de couro, aproximei-me da moça e mostrei o desenho do procurado na esperança de que ela o conhecesse e facilitasse o meu trabalho. — Viu este homem?
— Sim! — A jovem arregalou os olhos. — É o pastor Roy! M-mas ele é um homem de Deus...
Um pastor?!
— E-eu num sabia que ele era um procurado da justiça... ai, meu Deus! — A mulher ficou desorientada.
Não poderia voltar atrás na mentira, o mal já estava feito.
— Ora, vejam só! Que crápula maldito! Disfarçou-se de clérigo para passar incólume pela justiça! — Meus dotes de ator desabrocharam naquele dia. — P-peço que não diga isso pra ninguém! Esta é uma missão confidencial. Posso confiar em sua discrição?
— M-mas...
— Se disser algo, posso prendê-la por obstrução da justiça! — Tive receio de que a moça desse com a língua nos dentes. — Poderia me dizer onde encontro o homem?
— N-naquela igreja, sinhô!
— Obrigado. — Fiz um sinal com o chapéu e me despedi.
Caminhei até a capela. Para minha sorte as portas estavam aberta. Entrei no local e sentei-me em um dos bancos de madeira.
O lugar estava vazio. Mapeei a região e aguardei alguns minutos para ver se o cabe-prêmio aparecia por ali.
— Muitos demônios tem assombrado esta cidade ultimamente... — Um homem gordo trajando um terno branco sentou-se ao meu lado. Aparentava uma pessoa de posses e tinha um broche dourado com uma insígnia do sol do lado direito do peito. — ... Que Deus guarde as nossas almas...
Ignorei o sujeito. Fechei os olhos e fingi estar orando.
— Sabe onde está o pastor da cidade? — O homem insistiu na conversa.
— Não sou daqui, senhor. Também estou à procura dele.
O sujeito encarou-me outra vez.
— Sente esse cheiro esquisito?
— Não estou entendendo o objetivo desta conversa...
— ...cheiro de algo podre....
Cheirei minhas roupas discretamente, mas não sentia nada.
— ... cheiro da morte!
Levantei-me do banco e andei até o púlpito para livrar-me do inconveniente.
Uma pessoa entrou pela porta lateral no fundo da igreja. Era uma pessoa alta, de cabelo liso grisalho e uma barba farta. Usava uma roupa preta com o colarinho de clérigo.
O cabeça-prêmio!
— Pastor Roy, fuja! — O homem de terno branco gritou e apontou uma arma em minha direção.
Escondi-me atrás de um banco enquanto era alvejado por balas. Corri para a porta lateral e saquei minhas duas pistolas. Apressei-me no encalço do clérigo que fugiu do meu campo de visão.
Droga!
O meu algoz continuou a atirar. Lembrei-me do cavalo e assoviei sem nem mesmo saber se funcionaria. O cuidador de cavalos de Lost Sun fez isso da outra vez.
A adrenalina consumia meu corpo.
Continuei a correr em ziguezague na esperança de desviar das balas. Outros dois sujeitos vestidos com ternos brancos apareceram e encurralaram-me com seus cavalos. Levantei as minhas mãos e larguei as pistolas.
Enquanto estava rendido, como um sopro de esperança, Vento-Galopante surgiu e passou por entre aquelas pessoas. No momento exato em que o animal aproximou-se, agarrei-lhe o pescoço e montei o mais rápido que pude. Os homens tentaram nos atingir, mas não lograram êxito.
O coração saia pela boca. Certamente fora uma fuga bem sucedida. Parecia mais um bandidão de primeira, mesmo contra a minha vontade!
Escondi-me em uma mata densa e esperei a noite passar. Fiz um carinho em Vento-Galopante e agradeci pela salvaguarda.
Como se não bastasse, a fome começava a apertar.
Ainda tinha mais um dia para poder capturar o cabeça-prêmio. A pergunta era, como passaria pela escolta daqueles esquisitões? Além do mais, como eles sabiam que eu estava procurando o pastor?