Volume 1

Capítulo 13: O Nascimento de um Servo

paladino sm. ‘guerreiro errante dotado de um rigoroso código de conduta moral, seja individual ou religioso’ ‘nobre que perdeu ou abandonou o sobrenome e passou a viajar como herói da justiça’ | 611, palatine 446 | Da ling. a. palatinus, deriv. ling. a. palatium (v. palácio).

Dicionário Onomástico-Etimológico das Línguas Zinnegameanas, Ágnes del Rubio.


A aurora no oeste indicava o fim de uma longa e cansativa noite de Dies Violaceus. Os raios solares invadiam o topo da Torre de Babel, onde um grupo de cinco estudantes descansava.

Encostado na amurada, com os cabelos esvoaçando, Henry observava o horizonte. Ainda respirava em um ritmo acelerado. Seu corpo estava bastante desgastado pelo combate. De repente, ele se voltou para os colegas e disse:

— Nossa missão principal foi cumprida. Vocês fizeram um ótimo trabalho. Meus parabéns.

Depois disso, deslizando as costas pela superfície de pedra, deixou-se cair sentado no chão. Ele inspirava e expirava em um ritmo desregulado. Ágnes moveu-se para seu lado, com os lábios torcidos. Seus olhos cintilavam enquanto contemplava o sol se assomar acima da chapada.

— Esta situação toda é incompreensível... — suspirou.

— Tente não pensar muito sobre isso. — Henry a aconselhou. — Ansiedade só a prejudicará. Deixe a investigação para a Guarda Provinciana.

Sem ânimo para confrontá-lo, Ágnes concordou com a cabeça e repousou os cotovelos na amurada.

Adélaide prestava os primeiros-socorros a Leonard, que havia entrado em estado de Exaustão Mágica. Ela corrigira sua postura e o alimentava com frutas ricas em Numen. Após a fuga dos inimigos, Rozalia solicitara, com suas últimas energias, uma equipe de curandeiros. Agora ela estava deitada ao lado do irmão, inconsciente.

Não demorou mais do que alguns minutos para os curandeiros aparecerem e os transportarem para a Ala Verde, onde receberiam os cuidados necessários.

Na enfermaria, após uma breve triagem, Ágnes e Adélaide foram liberadas para seus quartos. Os ferimentos de Henry foram suturados por feitiços e envolvidos com tiras de tecido branco. Graças a sua constituição e à «Armadura de Ájax», não sofrera ferimentos graves. Porém, quando foi liberado, foi-lhe recomendado que evitasse fazer esforço pelo resto do dia.

Por causa dos remédios mágicos, Rozalia se recuperou com rapidez, mas optou por fazer companhia ao irmão. A condição de Leonard era séria. A estimativa era de que ele precisaria ficar a semana inteira internado. A boa notícia era que ele não corria risco.

 «Encontre-me sozinha atrás da Fonte de Hipérion, no Pátio dos Ipês, às cinco em ponto», era o que dizia o bilhete assinado por Henry.

Encontrar...? S-sozinha?! Ágnes corou. Acabara de retornar da Torre de Babel quando achou o pedaço de papel dobrado no chão do quarto, inserido por baixo da porta. N-não pode ser. Henry, me convidando para um encontro? Deve ser uma pegadinha. Mas e se...

Tomada por uma súbita animação, Ágnes se dirigiu para o banheiro, onde se despiu e depositou o uniforme em um cesto de palha. Em sua pele, branca como o algodão, era possível distinguir o contorno de suas veias.

— Hua... — Ágnes suspirou ao ver a banheira. Quando se tratava de banhos, ela enfrentava os mesmos problemas que Henry.

Tchibum!

A água transbordou pelo piso e molhou as paredes... Graças aos espíritos, a água hoje não está tão fria. Enquanto mergulhava a cabeça na água, a imagem de Henry batalhando com Kenshi veio a sua mente. Seus cabelos esvoaçantes, seus movimentos velozes, seu olhar indomável...

Fechando os olhos em um «><» e com um sorriso bobo no rosto, Ágnes começou a se mexer de um lado para o outro, com as mãos nas bochechas. Mas, quando abriu seus olhos... Ah, como pude me esquecer? Sou apenas uma tábua pequena e irritante... De fato, seu busto era quase reto e poderia ser descrito, a grosso modo, como uma tábua, se não fosse por um modesto par de saliências.

Ágnes se encolheu em posição fetal e abaixou a cabeça, de modo que seu nariz estava paralelo com a água. Alguns minutos depois, lavou-se propriamente e saiu da banheira para se arrumar.

* * *

No final do dia, o sol tingia o céu de um forte tom alaranjado. Ágnes, que havia chegado ao local combinado meia hora antes, não conseguia conter sua ansiedade. Conferia o relógio de bolso a cada cinco minutos. Para passar o tempo, ela fazia cachinhos nas pontas de seus cabelos.  

— Bu! — Henry agarrou seus ombros delgados pelas costas.

— Hia?! — Pulando como uma gata assustada, Ágnes virou-se, eriçada.

— Huhu. — Ele riu com o nariz. — Você deveria ter visto sua cara.

A surpresa de Ágnes se transformou em fúria e uma veia em forma de cruz saltou em sua testa.

Bam!

Utilizando a sola da sapatilha, Ágnes esmagou, com requintes de crueldade, o pé de Henry.

— Ouch! Por quê?!  

— Como pode um servo pregar uma peça em sua mestra! Reflita sobre suas atitudes, plebeu!

Desde quando isso se tornou uma ofensa? Henry revirou os olhos e suspirou. Seu comportamento não passou despercebido; Ágnes cruzou os braços e inflou as bochechas como uma criança birrenta. Henry se sentou ao lado de Ágnes e, após alguns instantes, declarou:

— Para ser honesto, eu a convidei para cá porque gostaria de agradecê-la. — disse e olhou para o chão. — Você fez um excelente trabalho na Operação Pesadelo. Se não fosse por sua intervenção, eu estaria morto. Obrigado.   

— Hã? Err... n-não, eu apenas fiz minha parte. — Ágnes ficou encabulada com tamanha gratidão. — Se não fosse por sua liderança, nós quem estaríamos mortos. O mérito pela vitória é seu.   

— Pode ser que seja verdade, mas não muda o fato que eu devo esta vitória à coragem de vocês. 

Ágnes não respondeu de imediato. Pensou por um tempo e comentou:

— Você seria um ótimo comandante, Henry. É de pessoas como você que a Hispania carece. Aprecio sua gratidão. Conte sempre comigo.

As palavras de Ágnes fizeram surgir um sorriso em sua face e seus olhos brilhavam com ternura. A Operação Pesadelo fortalecera o vínculo entre Ágnes e Henry. Afinal, eles arriscaram suas vidas juntos, em prol de uma causa comum.

Fuuuuuuuuuuuuuuuu...

As flores douradas dos ipês-amarelos foram sopradas pelo vento, espalhando-se pelo Pátio dos Ipês. Iluminadas pelos raios solares alaranjados, as flores flutuantes criaram uma atmosfera mística.

Ouviu-se, então, uma bela melodia. A música era calma e tocante, adequada para acompanhar uma peça romântica. Um violinista? Ágnes e Henry entreolharam-se. Todavia, assim que seus olhos se encontraram, eles se viraram.

— Henry, aquele espadachim se referiu a você como «servo»... O que isso significa? Por acaso você já é leal a outra garota? 

A pergunta apanhou Henry desprevenido. Ágnes o observava com seus olhos esmeraldinos. Confrontado por aquela expressão inocente, um tanto entristecida, Henry engoliu em seco e desviou o olhar.

— Não, não é isso — respondeu após uma longa reflexão. — Eu sou, de fato, um servo. Entretanto, não sou um servo comum. Eu possuo um pacto com um espírito maligno.

— Hã...? — Ágnes franziu o cenho com ceticismo. — Um pacto com um espírito maligno? Como assim? Pode me contar mais sobre isso?

—  Meu conhecimento é limitado. O que eu sei é que estou ligado a um espírito e que, em troca da minha servidão, fui agraciado com algumas bênçãos.  

— Quer dizer aquela magia esquisita que você utiliza?

Naquele momento, a música de fundo mudou. A nova música passava uma sensação melancólica, ideal para uma ambientação dramática.

— «Trigger Happy Acceleration» não é uma magia, mas sim.  

A curiosidade inata de Ágnes a fazia querer bombardear Henry de perguntas, mas ela resistiu à tentação e evitou de estragar o momento. Aquilo poderia ficar para outra ocasião.

— Quase me esqueci... — Henry fez uma pausa intencional e olhou nos olhos de Ágnes. — Obrigado pelo que fez na enfermaria.

O-o quê?! — Ágnes quase desmaiou. — Eu fiz...? — Sua temperatura corporal aumentou ao ponto de que o suor de sua testa começara a evaporar.

— Não fique constrangida... Eu reconheci a sensação quando a abracei no quarto de Rozalia. Naquele dia, seu calor aliviou minha mente. Por isso, mais uma vez, obrigado.

O cérebro de Ágnes quase saltou de sua cabeça e voou em linha reta para o céu para explodir como um fogo de artifício. Enquanto estava paralisada, Henry se levantou e se ajoelhou diante dela.

— Ainda sobre a enfermaria, peço desculpas por minha rudeza. Você não estava em pleno controle de suas ações.

Os olhos de Ágnes se umedeceram. Lágrimas deslizaram por suas bochechas e caíram sobre a saia de seu uniforme.

— Sniff... Sniff-sniff...

Perplexo, Henry ergueu a metade superior de seu corpo e a encarou. Ela estava cabisbaixa, encostada no banco, e suas mãos apertavam a minissaia azul-marinho.

— Sniff... N-não se preocupe com isso, idiota. A culpa também foi minha, sniff, não...? 

Comovido, Henry se levantou e apalpou sua cabeça. De repente, Ágnes agarrou seu uniforme e pressionou o rosto contra seu peito.

— Buáááááá! Buááá! Buáááá!

— Ei, não chore...

O choro de Ágnes não era escandaloso. Era provável que apenas Henry fosse capaz de ouvi-lo. A cada soluço dela, Henry sentia como se seu coração fosse esfaqueado. Ele conseguia imaginar o motivo daquela emoção. Somente ele estava acostumado a vivenciar situações de vida ou morte. Não era algo simples de se digerir em um curto espaço de tempo.

Ela deve estar ansiosa. Talvez não se sinta mais segura. Pode ser que ainda tema por sua vida, ou pela minha... Henry supunha enquanto acariciava o emaranhado de cabelos negros de Ágnes.

Ele não estava completamente errado. Contudo, não estava completamente correto. Henry havia ignorado um certo fator, que talvez fosse tão importante quanto os demais. Na última semana, Ágnes e Henry passaram muito tempo juntos. Durante aquele período, Ágnes experimentou, pela primeira vez, uma ampla variedade de sentimentos e de situações.

Da mesma forma, pela primeira vez em sua vida, ela havia se sentido necessária. Alguém havia reconhecido seu valor e a elogiado por seus feitos! Agora seu coração estava leve como uma pluma.

O violinista foi embora e o Pátio dos Ipês estava silencioso. Ágnes havia parado de chorar. No entanto, ela ainda segurava com firmeza no uniforme de Henry. A lua vermelha já estava no céu, lançando sobre os amigos uma penumbra escarlate...

— Escute-me, Henry. Tenho uma proposta. Eu o perdoarei, mas com uma condição.

— Vá em frente, senhorita. Estou disposto a colaborar.

— Très bien. Torne-se meu servo e jure lealdade a mim.

— Hein?

Ah... Acho que não tem problema, não é? Não é muito diferente da minha atual função, de qualquer forma. Determinado, Henry balançou a cabeça e se levantou, de peito estufado. Desembainhou uma espada imaginária e afastou as pernas, fincando-a na grama com as duas mãos. O que ele tentava reproduzir era a pose heroica de um paladino.

— Eu, Henry Atwater, juro, pelos Sete Reis Celestiais, a minha lealdade à garota conhecida como Coelha Rebelde. Agora, minha senhorita, como prova de minha palavra, beijarei seus lindos pés.  

— Henry...!

Dij! Dij! Bam! Dij! Bam! Dij!

Logo após ter se tornado um servo, o primeiro presente que Henry recebeu de sua senhorita foi uma bela surra. Mesmo assim, Ágnes não conseguia esconder sua felicidade e Henry não tardou em percebê-la. Por isso, não se incomodou.

Eles corriam como crianças pelo Pátio dos Ipês, em uma perseguição engraçada. Estavam ambos ofegantes e suados. Entretanto, irradiavam alegria e sorriam um para o outro.



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