Volume 2
Capítulo 118: O Preço da Vitória
Sariel jogou suas costas contra o corpo de Feykron e permitiu o cansaço tomar conta, respirando e suando pesadamente após se esforçar tanto naquela batalha.
— Ah... Essa foi... minha segunda... batalha mais difícil da minha vida... — disse entre cada respiração.
— Segunda? Como poderia haver algo mais difícil que lidar com o cadáver de um Semideus da Escuridão? — perguntou o dragão curioso.
— Dessa vez eu tinha aliados ao meu lado... — respondeu Sariel. — Mas essa é uma história para outro momento...
O grupo todo se reuniu com o viajante, ainda cuidadosos e atentos com Ymir.
— Você está bem, Sariel? — perguntou Feng Ping.
— Sim... Mas estou esgotado de magia... — respondeu o viajante. — Mais um pouco e minha vida poderia realmente entrar em perigo.
— Feykron, o que faz aqui? — perguntou Luna.
O dragão virou o rosto para a princesa, encarando-a profundamente.
— Me senti atraído pela grande quantidade do elemento Natureza neste local, por isso decidi procurar por outro dragão por aqui — respondeu Feykron. — Vocês têm sorte que eu estava por perto, caso contrário, isso teria terminado muito pior.
— De fato, muito obrigada pela ajuda — agradeceu Luna com gentileza.
— Fico feliz que tudo acabou bem — disse Leif entristecido. — Contudo, o número de casualidades nessa batalha foi terrível...
Após o Jarl ter dito isso, todos se lembraram da destruição causada por Ymir e da imagem das construções e milhares de pessoas caindo para suas mortes.
Um gosto amargo terrível tomou conta de todos, mesmo que tivessem alcançado a vitória, muitos morreram vítimas daquela luta.
— Se eu tivesse atacado Ubel antes... — lamentou Sariel, lembrando de seu golpe que quase cortara a cabeça do vampiro.
— Não... a culpa foi nossa por não o segurar o suficiente para que seu golpe o matasse... — retrucou Luna, sentindo-se culpada por não ter feito muito naquela batalha.
— Não devemos nos culpar pelo que aconteceu, fizemos o melhor que podíamos afinal — disse Feng Ping. — Não assumam a responsabilidade por algo que não tinham controle.
Um breve silêncio tomou conta, com o viajante e, principalmente, a princesa culpando-se em silêncio pelas consequências daquela luta.
— É melhor não demorarmos muito aqui — disse Aegreon. — A destruição causada por Ymir certamente chamou a atenção da Vigília, então em breve estarão aqui. Devemos partir agora.
— Tem razão... — concordou Sariel. — Preciso da minha arma de volta...
— Eu posso buscá-la junto de... Feykron, correto? — perguntou Leif encarando o dragão que, por não entender a língua humana, apenas o olhou por reconhecer seu nome ser chamado.
— Não se preocupe, eu sei bem onde ela está — disse o viajante conforme ajeitava sua postura nas costas do dragão. — Feykron, pode me levar até aquele local? — perguntou na língua dos anjos ao mesmo tempo que apontava para um ponto distante.
— Certo. — O dragão logo levantou voo e se dirigiu ao lugar indicado.
Observando ambos partirem, Shiina se virou na direção onde Raymond e os cavalos estavam: — Vou procurar Raymond, estou um pouco preocupada com sua ausência. — E em seguida partiu.
Em pouco tempo, graças à velocidade de Feykron, ambos chegaram rapidamente na beira de uma enorme cratera no qual era possível ver Alfheim logo abaixo, bem ao lado do esqueleto de Ymir.
O viajante desceu das costas do dragão, se dirigiu até uma pilha de rochas e detritos, e começou a vasculhar.
Em pouco tempo encontrou sua lâmina, o que despertou a curiosidade de Feykron.
— Como sabia que estava aí? — perguntou.
— Posso sentir sua localização — respondeu Sariel. — Não sei explicar o porquê.
O dragão fez um som semelhante a um murmúrio conforme pensava profundamente sobre algo.
— Isso é estranho... você não criou esta arma, correto?
— Sim, como sabe? — perguntou o viajante se aproximando de Feykron.
— Creio que sua glaive é uma arma especial criada pelos anjos... Porém, não consigo lembrar exatamente quem criou, ou qual sua função...
— Hmm... — Sariel encarou com curiosidade sua arma. — Sua memória realmente foi gravemente afetada, hein.
— De fato, por isso estou tentando encontrar outros dragões — respondeu Feykron. — Há muito que não consigo lembrar devido meu ferimento, coisas que sei que são importantes para sua jornada.
— Já fizeste muito por nós nessa batalha... — disse o viajante com um sorriso de gratidão no rosto. — Não sei o que teria acontecido aqui sem você...
— Quando algo assim acontecer novamente, apenas me conjure.
— Certo. Oh? — Sariel se aproximava do dragão para montá-lo, quando percebeu a arma de Feng Ping caída próximo.
O viajante caminhou até a lança do Pilar e estava prestes a pegá-la, contudo, algo chamou sua atenção.
Sentindo uma quantidade grande do elemento Gelo concentrado ali perto, vasculhou o local e cavou o chão, quando eventualmente encontrou o objeto.
Se tratava de um grande pedaço de minério bruto de cor azulada congelado em uma grossa camada de gelo resistente. Seu tamanho quase igualava de um adulto.
Feykron, também notando a concentração de Gelo naquele objeto, se aproximou.
— Ora, mas que achado! — exclamou. — Com esse tipo de material será capaz de criar uma arma tão poderosa quanto dos Pilares.
— De fato, mas posso sentir um pouco do elemento Conjuração... — disse o viajante apreensivo. — Acredito ter se originado do cadáver do gigante. Sua proximidade com veios e seu poder elemental deve ter enriquecido o minério com Gelo...
— Ainda assim seria um desperdício deixar isso para trás...
— Concordo, por isso levarei isso — disse o viajante enquanto colocava o objeto por cima de um dos ombros e pegava a lança de Feng Ping.
Montando novamente nas costas de Feykron, ambos retornaram aonde o resto do grupo se encontrava, surpreendendo-os com a velocidade que encontraram as armas.
— Sariel, o que é isso? — perguntou Luna percebendo o item que o viajante trouxera.
— Sua nova arma — respondeu Sariel com um sorriso ao mesmo tempo que devolvia a lança de Feng Ping.
A princesa estava prestes a fazer mais perguntas, porém o Pilar do Vento falou antes.
— Muito bem, aqui é onde nos despedimos. Gostaria de continuar minha jornada com vocês, mas não posso ficar longe de Shiroi Tate por muito tempo... — explicou. — Além disso, terei que permanecer aqui para me certificar de que ninguém tente algo com o gigante novamente.
— Agradeço por sua ajuda até agora, Feng Ping — agradeceu o viajante conforme fazia uma reverência. — Infelizmente precisaremos de seu auxílio para executar nosso plano em afastar Koeus de Acrópolis...
— Não se preocupe, esse é um plano onde ambos os lados se ajudam — respondeu o Pilar educadamente. — Aliás, vocês que se colocarão em maior perigo ao invadirem os aposentos pessoais de Koeus... Tudo que farei nas minas Belvuch será lutar.
Sariel encarou Feng Ping por um breve momento, sorrindo suavemente conforme se lembrava do quanto havia mudado desde que se conheceram.
Antes, o único motivo para encontrá-lo era para extrair informações do Conselho, ou seja, usá-lo.
Entretanto, em pouco tempo a relação de ambos evoluiu para uma amizade em que ambos se confiavam cegamente.
Com uma voz calma e contendo uma certa felicidade, o viajante disse: — Ainda possuí a pedra que lhe entreguei?
Como resposta, o Pilar apenas retirou de suas roupas uma pequena pedra emitindo um brilho marrom.
Sariel estava prestes a se despedir quando Sleipnir se aproximou, permanecendo logo ao seu lado.
Leif encarou o animal com admiração, deixando escapar um suspiro.
— É ainda mais magnífico de perto...
— Parece conhecê-lo... — disse Aegreon. — Pode nos explicar o que é isso?
— Bem... não sei dizer suas origens, mas um dia relatos sobre um suposto cavalo de 8 patas extremamente veloz e capaz de voar começaram a se espalhar por Helheim — explicou o Jarl. — Inicialmente achei que eram apenas lendas, mas eu mesmo o vi pessoalmente em uma de minhas caçadas.
— Então não sabe nada sobre ele? — perguntou Luna a Leif, que apenas respondeu negativamente com a cabeça.
Sariel, curioso com aquele animal, decidiu tentar conversar com ele.
Entre trocas de palavras e relinchos, o viajante não tardou a ficar surpreso com o que ouvira.
— Parece loucura o que direi, mas... — disse tentando manter a compostura. — Creio que ele é mais uma vítima das loucuras de Nergal...
— Está dizendo que ele veio de outro mundo?! — perguntou Luna surpresa.
— Sim... E o mais impressionante é que ele deu sorte de Nergal só ter colocado patas extras nele. Apesar de seus poderes, não é diferente de um cavalo normal...
Todos encararam surpresos e, consequentemente, apreensão o animal.
A maioria das criações de Nergal terminavam assim como o criador: seres bizarros enlouquecidos que serviam apenas para causar o caos.
Raramente — e muito raramente — podia ocorrer do Deus do Caos criar um ser totalmente lúcido e “bom”, sendo Sleipnir provavelmente um exemplo perfeito disso.
Luna estava prestes a dizer algo quando Shiina retornou com Raymond acompanhando-a.
Logo todos perceberam que ambos apresentavam uma expressão triste e olhar baixo.
— O que houve? — perguntou Feng Ping. — Aconteceu algo?
Raymond, fazendo um grande esforço, encarou o viajante nos olhos e, com a voz carregada de culpa, disse: — Sinto muito, Sariel...
— Por que está se desculpando? — perguntou o viajante totalmente confuso com aquele comportamento estranho.
Mais uma vez, o guarda-costas precisou reunir forças para que conseguisse dizer aquelas palavras tão pesadas.
— O ataque de Ymir que nos atingiu... minha barreira conseguiu bloquear o dano e salvar os cavalos, mas logo veio o deslizamento de terra... — disse entre várias pausas. — E Su-en... — Sua voz falhou e não conseguiu continuar sua frase, contudo o viajante logo entendeu o significado daquilo.
— Não... — disse Sariel com a voz trêmula e disparando até o local onde Raymond estava.
Inúmeros pensamentos, memórias dos bons momentos que passara com seu amigo equino inundaram sua mente.
Seu grande companheiro de viagem, sempre ao seu lado, pedindo e oferecendo carinho, amando-o incondicionalmente e alegrando seus dias.
A sensação do calor de seu corpo e seus pelos macios e bem cuidados vieram à tona, principalmente quando dormiam juntos e Su-en deitava a cabeça sobre seu colo, um local que lhe trazia segurança e conforto, apesar do viajante dormir desconfortavelmente.
Lá no fundo, Sariel esperava que tudo era apenas um engano, e que seu amigo talvez estivesse vivo, mesmo sabendo que — se fosse o caso — Raymond já teria o curado.
Em poucos segundos chegou no local, deparando-se com os outros cavalos olhando para um mesmo ponto com uma postura melancólica.
Encarando o mesmo ponto, o viajante se deparou com o que já esperava encontrar, mas se recusava a acreditar.
Su-en estava caído, imóvel e com sangue por todo o corpo.
— NÃO! — Apesar de claramente sentir que seu amigo se fora, Sariel se ajoelhou ao seu lado e tentou curá-lo em vão.
O resto do grupo chegou logo depois, apenas observando e respeitando o momento do viajante.
— Não, não, não... Isso não pode ser verdade... — disse em estado de completa negação. — SU-EN, ACORDA!
Lágrimas caiam profusamente de seus olhos, logo congelando devido ao frio e afetando sua visão.
— Acorda... POR FAVOR! — Naquele ponto, Sariel não conseguia mais abrir os olhos, que haviam se congelado com suas lágrimas, mas não parava de tentar curá-lo.
Sua magia se esgotava cada vez mais, e o frio do local já começava a penetrar seus ossos, fazendo-lhe tremer.
— Por favor... — disse o viajante em uma voz debilitada, como se estivesse prestes a desmaiar.
Luna, percebendo que o poder mágico de Sariel estava perigosamente baixo, se aproximou e o abraçou pelas costas.
— Sariel... Pare, por favor... — pediu com uma dor profunda em sua voz. — Ele se foi...
O viajante, ao sentir os braços da princesa envolvendo-o e seu calor acariciá-lo, se acalmou aos poucos e desabou completamente em prantos.
— MERDA! — Sariel socou o chão em frustação, abrindo uma cratera com sua força. — Eu nem estive ao seu lado nos momentos finais...
Luna continuou a abraçá-lo por um bom tempo, oferecendo o conforto que precisava.
Ambos permaneceram desse jeito por quase meia hora inteira, e todos aguardaram respeitosamente, mesmo que precisassem partir o quanto antes.
***
Uma chama alta fornecia calor ao grupo, que estava em pé ao lado de uma grande fogueira.
Sariel encarava as chamas sem piscar, vendo seu companheiro de anos se reduzir aos poucos em cinzas.
Luna permaneceu ao seu lado o tempo todo, e as mãos gentis dela unidas com as suas.
Todos sentiram pela morte de Su-en, contudo, por conseguirem se comunicar com os animais, a princesa e o viajante foram os mais afetados.
Não observaram o cavalo queimando como se assistissem o funeral de um animal, e sim, como o de um amigo indispensável.
Quando o fogo começou a consumir o corpo, Luna pôde sentir Sariel apertar a mão inconscientemente e, apesar de doer um pouco, nada disse.
Afinal, a dor pelo qual o viajante passava agora nem se comparava com a dor que sentia em sua mão.
Apesar de decorrido um bom tempo, para Sariel era como se tudo tivesse acabado em alguns minutos.
As chamas logo se apagaram, deixando apenas brasas e as cinzas de seu amigo.
O viajante não moveu um músculo desde então, encarando fixamente e de maneira vazia as cinzas.
A princesa aguardou respeitosamente, porém, o tempo foi passando e Sariel permanecia imóvel como uma estátua.
Eventualmente, Luna decidiu que seria melhor fazer algo.
— Sariel... Não vai guardar as cinzas? — perguntou em um tom como se pedisse desculpas por interromper o momento.
O viajante despertou de seu transe e lançou um breve olhar para a princesa, um olhar carregado de pesar.
Aquilo imediatamente fez Luna sentir como se seu coração fosse perfurado por milhares de agulhas, arrependendo-se por ter falado.
— Tem razão... — Entretanto, Sariel não a culpou por isso e se aproximou dos restos da fogueira.
De sua bagagem removeu um vaso pequeno e nele, com cuidado extremo, colocou o que restara de seu companheiro.
Toda vez que tocava as cinzas e as levava ao vaso sentia uma parte de si morrendo, despedaçando-se.
Quando terminou de guardar as cinzas, encarou o vaso por um longo momento e, segurando o item com cuidado, pendurou ao lado de sua mochila.
Sariel se virou para o grupo, cujos olhares simpatizavam com sua dor.
— Me desculpem pela demora... — Sua voz saiu fraca, como se estivesse cansado demais para falar. — É melhor irmos antes que a Vigília chegue...
— Não se desculpe por isso, o mínimo que podíamos fazer era aguardar — disse Feng Ping se aproximando devagar. — Tem certeza de que está pronto para partir?
O viajante apenas acenou com a cabeça em resposta.
O Pilar se demonstrou apreensivo com aquela resposta, mas respeitou sua decisão.
— Bem, então será aqui que nos despedimos — disse Leif aproximando-se do viajante. — Eu... sinto muito por isso... Se não tivesse envolvido vocês nisso, ele ainda estaria vivo... — desculpou-se sentindo que todo o peso daquela morte fora por sua culpa.
— Não... Está tudo bem, Leif... — disse Sariel ao Jarl. — Você não tem culpa... — Em seguida, reuniu suas coisas para partir.
Seguindo seu exemplo, todos fizeram o mesmo silenciosamente.
— Eu sinto muito por isso, Sariel — disse Feykron com empatia. — Tenho certeza de que fizeste dele uma alma feliz.
O viajante travou por um breve momento, sentindo as lágrimas tentando escapar novamente.
— Obrigado, Feyrkon...
— Eu... terei de partir também... — disse o dragão com cuidado. — Se Kura desejar, ainda nos encontraremos novamente.
Sariel balançou a cabeça levemente como um aceno, e Feykron começou a se preparar para voar.
— Feykron, espera! — disse a princesa lembrando-se de algo. — Há algo que gostaria de perguntar...
— Sim? — respondeu o dragão curioso.
— Por acaso... É possível ver o futuro? — perguntou Luna com apreensão, sentindo que acabara de dizer algo estúpido.
Feykron, contudo, a encarou surpreso por um momento.
— Bem... na verdade, sim — disse após uma longa pausa. — Por que perguntaste isso?
A princesa, em choque com aquela resposta, não foi capaz de responder.
O livro negro de seu subconsciente imediatamente veio à sua mente, lembrando-se da imagem de Sariel perfurando-a com uma espada.
— Ah... por nada — disse Luna de uma maneira nada convincente.
O dragão estranhou aquilo, mas nada disse.
Entretanto, uma outra pessoa teve uma reação parecida com a da princesa.
Seus olhos estavam totalmente arregalados, sua respiração ofegante e seu corpo inteiro tremendo.
Sariel conseguiu se controlar o suficiente para que ninguém percebesse, porém não podia deixar de se lembrar da memória do livro negro, onde estava dentro de uma Seita e sacrificava a sangue frio um homem inocente...
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