Volume 1

Prólogo

— Ei, Otto! Traga mais três cervejas! — gritou um homem barbudo. Ele estava sentado em uma mesa com outros dois homens: um com um bigode escuro e o outro era careca.

— A caminho! — O taverneiro se apressou para encher outros três copos e levar para a mesa.

Otto colocou as cervejas na mesa e disse: — Aqui estão suas bebidas, aproveitem. — E em seguida retornou para trás do balcão.

Devido a possibilidade de uma guerra, a taverna agora estava quase abandonada, com pó se acumulando nas mesas e no balcão, teias de aranhas se formando nos cantos e um cheiro de mofo que se tornava cada dia mais forte.

Otto nem considerava abrir seu estabelecimento hoje, mas como seu amigo insistiu que ele o fizesse — para comemorar a gravidez de sua esposa — decidiu fazer este favor.  Contudo, bastou alguns copos e o trio já conversava sobre os problemas.

— Eu espero que esta não seja a última cerveja que eu beba em minha vida — suspirou o careca em um tom cansado. — Seria péssimo ter sobrevivido à guerra com os Anjos apenas para morrer em uma outra por causa da falta de juízo de nosso rei.

— Não se preocupe, Peter, tenho certeza de que o Conselho e a Vigília irão nos poupar. Afinal, o problema é apenas o rei e o povo não tem nada a ver com isso tudo — disse o homem com bigode.

— Exato! Ardos jamais permitiria a morte de civis inocentes que são apenas vítimas dos delírios daquele velho caduco! Além disso...

Nhéé!

Porém, antes que continuasse, o ranger da porta abrindo interrompeu a conversa. Todos que estavam presentes — o taverneiro e os três homens — olharam para a entrada e viram um homem com roupas de viajante se aproximando.

Devido ao seu manto castanho não era possível ver o que vestia por baixo, exceto suas botas cinzas que estavam um pouco sujas com lama seca. O rosto era a única parte que estava a mostra, e ele era extremamente belo e com feições faciais suaves. Os olhos eram azul-claro e os cabelos, escuros e longos o suficiente para começarem a cobrir as orelhas.

— Finalmente encontrei uma estalagem aberta! — O viajante se aproximou da mesa em que os três homens estavam. — Se importariam se eu me sentasse aqui?

— Claro que não! Sente-se! Ei, Otto! Traga outra cerveja! — disse o barbudo enquanto olhava para o taverneiro.

— É bom que me pague, Rolf!

O barbudo se virou para o viajante e disse: — Essa é por minha conta, mas se quiser beber mais que isso, terá de usar seu dinheiro.

— Obrigado. — O viajante se sentou na mesa. — Foi difícil encontrar uma taverna aberta, além disso o povo parece bem agitado... O que está acontecendo?

— Você não sabe? Pelas suas roupas suponho que não seja daqui.

— Exato, cheguei hoje. Achei que não conseguiria entrar inclusive, os guardas estavam bem rigorosos.

— Então você não sabe de nada... bem, se soubesse estaria bem longe daqui. — O taverneiro colocou a cerveja para o viajante na mesa. — Aqui está sua bebida, aproveite!

— As coisas estão tão ruins assim?

Ao dizer isso, todos os presentes, incluindo Otto que já estava atrás da bancada, suspiraram juntos.

— Estão péssimas graças ao nosso rei que manteve escondido uma mulher anjo por 20 anos desde o fim da guerra...

— Ardos descobriu sobre isso e obviamente ordenou que o rei a entregasse, mas ele disse que jamais entregaria sua “filha”. — Rolf disse “filha” com bastante desprezo e nojo. — Vê se pode! Nós quase fomos extintos pela raça dela!

— Você está exagerando! Uma mulher linda como ela jamais seria capaz de fazer algo de mal! — disse o bigodudo.

Mais uma vez, todos — exceto o bigodudo — suspiraram juntos. A maneira como eram capazes de suspirarem em sincronia era quase cômica.

— Ugh, você deveria consertar este seu hábito, Thomas. Basta uma mulher ser bonita e você ignora qualquer outro detalhe.

— Mas estou mentindo? Se a tivesse visto, perceberia que ela jamais seria capaz de ferir alguém.

— Ah claro! Não é como se Ardos estivesse disposto a enviar o mais poderoso exército de todo o mundo apenas para lidar com ela.

— Ardos pretende envolver a Vigília nisso? — surpreendeu-se o viajante.

— Isso mesmo, depois de tanto solicitar que o rei entregasse este anjo, Ardos perdeu a paciência e deu um ultimato: “se não a entregar até o fim do mês, enviarei a Vigília e o Conselho para pegá-la a força”.

— Ah, agora compreendo o motivo de toda agitação... E o motivo dos guardas terem sido tão rigorosos... provavelmente acharam que eu era da Vigília já que restam apenas 5 dias.

— É por isso que rebeliões estão se formando numa tentativa de derrubar aquele velho do poder! Se eu pudesse invadia aquele castelo e arrastava pelos cabelos este anjo até Ardos...

— Você teria de lutar comigo para isso! — respondeu Thomas.

— Com prazer! Seria uma ótima oportunidade de colocar algum juízo nessa sua cabeça!

Rolf levantou-se da cadeira e ameaçou avançar na direção do amigo, o que obviamente era uma encenação, já que, apesar de detestar esse lado dele, jamais brigaria com ele.

— Ei, ei! Eu estava apenas brincando! Haha... — Thomas riu nervosamente.

Rolf se sentou enquanto encarava o amigo.

— De qualquer jeito, ainda estamos no meio disso tudo... ah como eu queria ter dinheiro para deixar este reino... você deveria fazer isso — aconselhou Rolf. — É melhor ir embora antes que as coisas compliquem mais ainda.

O viajante se manteve em silêncio e pensou por algum tempo. Após uma breve pausa, ele bebeu toda a cerveja de uma vez e com um semblante decidido.

— Tem razão, creio que partirei agora mesmo. — O viajante se levantou e foi em direção à porta. — Adeus! E torço para que Deusa Kura lhes abençoe!

— Obrigado! Aliás, qual seu nome mesmo?

— Sariel — disse o viajante enquanto passava pela porta.

 

***

 

— Obrigada pela preferência, volte sempre! — Uma vendedora entregou uma pequena caixa de madeira com algumas frutas a uma mulher.

— Eu que devo agradecer. Se não fosse por seu desconto, não teríamos comida hoje à noite. — Outra mulher, gravida de cerca de 8 meses, pegou a caixa com dificuldade.

— Isso é apenas por nossa amizade. — A vendedora sorriu. — Mas tem certeza de que não precisa de ajuda? Onde está Rolf?

— Meu marido saiu pra beber, disse que queria comemorar.

— E ele te deixou sozinha a essa hora da noite?

— Está tudo bem, você sabe que o trabalho dele não tem ido bem. Agora, tenho que ir.

— Certo, tome cuidado!

Com isso, a gravida deixou a feira — que já estava em seu fim, com poucas pessoas ainda transitando — e caminhou de volta para casa.

Ela caminhou pelas ruas ladrilhadas que estavam desgastadas devido ao uso constante pelos soldados do reino, e em pouco tempo chegou à periferia de Fordurn, onde sua residência se encontrava.

Alguns guardas patrulhavam as ruas principais com espadas bem amostra, sinalizando que estavam o tempo todo em alerta.

Já nas ruas estreitas, eram completamente desertas e assustadoras.

As ruas ali eram apertadas, escuras e cheiravam a dejetos, um lugar nada apropriado para alguém como ela.

Naquele ponto, já se sentia cansada por ter de caminhar enquanto carregava o peso de uma vida e das frutas ao mesmo tempo. Seus passos estavam lentos e parava toda hora para recuperar folego.

De repente, ouviu sons de passos atrás dela. Assustada, por pensar se tratar de um bandido, se virou rapidamente.

Imediatamente percebeu que não havia motivos para se preocupar, pois se deparou com um homem de altura média, cabelos escuros, olhos azul-claros e vestindo um manto castanho.

— Com licença, sabe dizer a direção para o palácio real?

— Ah, claro... Se seguir esta direção... — A mulher apontou para o norte —, chegará lá.

— Obrigado, precisa de ajuda?

— Sim, por favor. — Ela esboçou um belo sorriso de agradecimento.

O viajante se aproximou dela e ergueu a mão direita para pegar a caixa que carregava. Contudo ela mudou de trajetória e se dirigiu ao seu pescoço.

A grávida, surpresa pelo movimento súbito, não teve tempo de reagir e foi suspendida no ar. Tentou se livrar, entretanto a força daquele homem era sobre-humana.

— Me... solte... Por favor...

— Hmm? Então você ainda consegue falar? — No entanto, o homem apenas apertou ainda mais seu pescoço, impedindo completamente que ela implorasse mais por sua vida.

A visão da grávida escureceu aos poucos conforme sua vida se repetia em sua mente. Hoje era para ser apenas mais um dia normal, onde ela compraria frutas e receberia seu marido, que a ajudaria a fazer o jantar, para depois dormirem juntos.

Lágrimas escorriam pelo seu rosto que já havia adquirido uma coloração vermelha. Suas pernas balançavam freneticamente na tentativa de se libertar, entretanto foi tudo em vão.

— Dá pra morrer logo? — irritou-se o viajante, que aplicou ainda mais força e quebrou o pescoço da mulher.

A cabeça dela pendeu mole e sem vida, e o homem a colocou no chão cuidadosamente.

Foi então que uma dor aguda percorreu sua cabeça, e sua consciência vacilou. Vozes carregadas de maldade e que não conhecia ecoaram em sua mente.

O que faremos?

Este ataque nos pegou desprevenidos, mas felizmente contornamos a situação. Estamos livres para fazemos o que quisermos. Focaremos em obter mais membros, expandir nossa influência, conseguir sacrifícios e aprimorar as passagens.

Mas depois que tudo isso acabar não estaremos com problemas?

Até lá já teremos recuperado nossas perdas. Sumiremos do mapa por enquanto e quando retornarmos estaremos em nosso ápice novamente! Mesmo que encontrem alguns de nós eles não serão capazes de nos derrubar. É apenas uma questão de paciência para obtermos nossa glória!

Exato, e ainda temos materiais para cumprir as ordens de nosso mestre. Como estamos em um local isolado poderemos criar um grande exército a partir de já. Vamos nos apressar.

— Sim... Vamos... — sussurrou o viajante, esquecendo-se de que a única pessoa que podia ouvir aquilo era a mãe que acabara de matar.

A dor de Sariel começou a passar e sua consciência retornou. Quase havia desmaiado por causa desta dor súbita.

— Tsc... isso de novo...

Enquanto isso, o trio na taverna comentava sobre o viajante.

— Um homem estranho ele, não acham? — perguntou Thomas um momento após Sariel ter deixado a taverna.

— Sim... — Peter apalpou seu bolso para pegar seu lenço e tirar um pouco do suor de sua testa.

Porém sentiu algo estranho em seu bolso.

— O que é isso? — Tirou um objeto pequeno e olhou contra a luz. — Uma moeda de ouro?! Como veio parar aqui?

— O que? Pensei que seu salário fosse apenas algumas moedas de bronze.

— Mas é mesmo! Esta moeda não é minha! — O homem mordeu a moeda para testar o material. — E é ouro genuíno! Como?

— Isso... — Rolf tateou seu bolso inconscientemente e sentiu algo também. Ao retirar o objeto percebeu que era outra moeda de ouro. — O que? Como?

Ao verem isso, Peter e Otto também checarem seus bolsos e, assim como os outros dois, encontraram uma moeda de ouro.

— Mas como?

— Será que não foi aquele homem?

— Como? Eu só me aproximei para entregar a cerveja, eu teria notado ele colocando isto no meu bolso.

— Bem que achei que havia algo de errado com ele... o que será que ele veio fazer em Fordurn? Será que ele é do Conselho?

— Nunca ouvi falar sobre alguém do Conselho com este nome.

— Talvez ele seja um dos membros secretos.

— Mas porque ele fez tantas perguntas então? Ele com certeza saberia as respostas.

— Talvez ele estivesse tentando nos contar algo secretamente.

— Se for isso significa que estamos a salvo! Além disso, ele nos deu estas moedas que é mais do que o suficiente para deixar este reino! Agora andem logo e saiam daqui, pois fecharei a taverna e irei embora ainda hoje!  

Otto, que antes imploraria para seus clientes ficarem mais tempo, agora estava expulsando seus únicos clientes depois de dias, afinal queria deixar o reino com sua família o quanto antes.

— Ei! Nos deixe pelo menos terminar nossa bebida! Por que você não aproveita e bebe conosco como comemoração? Não usará este bar depois de hoje mesmo.

— Bem... tem razão! — Otto então pegou sua melhor bebida e começou a beber junto com seus amigos enquanto sentia um alívio indescritível que era compartilhado por todos.

 

***

 

Horas depois, Rolf se despediu de seus amigos e caminhou para seu lar animadamente. Naquela mesma noite, ele organizaria seus pertences e deixaria Fordurn com sua esposa.

Enquanto andava, percebeu um grupo de pessoas reunidos perto de algo. Sua curiosidade foi atiçada e ele se aproximou para descobrir o que estava acontecendo.

Ao se aproximar, se deparou com seu pior pesadelo imaginável.

Sua esposa, com quem havia passado décadas ao seu lado, jazia morta no chão.

— MIA! — apavorou-se ao mesmo tempo que se ajoelhava ao lado dela. — ACORDA! POR FAVOR, ACORDA!

Rolf chacoalhava sua esposa, com esperança de que se tratava apenas de um mal súbito e que ela estivesse desmaiada.

— Por favor... — Lágrimas começaram a escapar de seus olhos. — Isso não pode ser real... não agora... ACORDA! AMOR, SOU EU! ROLF!

Mas era inútil. Rolf tocou seu rosto gentilmente e percebeu que já estava frio.

Insatisfeito, Rolf tateou todo o corpo de sua amada esposa, como se não confiasse no que seus olhos vissem e precisasse confirmar o que via pelo tato.

Após tateá-la por um tempo, percebeu algo bizarro.

A barriga de sua esposa — que estava normal horas atrás — não possuía nenhuma protuberância. Não havia sinais de corte, sangue ou mesmo de que um parto fora realizado.

Seu filho, que durante todo este tempo fora carregado no ventre dela, havia desaparecido como se nunca tivesse existido.


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