O Primeiro Serafim Brasileira

Autor(a): Anosk


Volume 1

Capítulo 67: Flor Imperfeita

Após uma breve caminhada, os três retornaram para a moradia de Feng Ping, que havia sido bem danificada pela batalha.

Os muros haviam caído em vários pontos, e qualquer pequena construção foi arremessada para longe pela força do vento.

Já a construção principal estava em um estado um pouco melhor: o vento destelhou o telhado e bagunçou as salas cujas janelas estavam abertas no momento — dando a impressão de que um furacão havia passado por ali —, enquanto as paredes foram esburacadas por qualquer coisa levada pelo vento, mas conseguiram resistir.

As áreas ao redor da batalha sofreram ainda mais danos, com uma grande cratera formada na montanha e com deslizamentos de neve que ainda ocorriam, mas com menos intensidade.

Felizmente não havia nenhuma vila ao pé daquela montanha, caso contrário teria sido totalmente soterrada. Talvez o viajante levou o Pilar para aquela montanha justamente para evitar casualidades.

Yuu e Sariel caminhavam relaxadamente, enquanto Feng Ping não podia deixar de se manter cauteloso.

Assim que chegaram no salão de entrada, perceberam o interior tão bagunçado que o pensamento de ter de arrumar aquilo seria o suficiente para levar à loucura.

Alguns dos pilares de madeira haviam caído, móveis estavam quebrados ou derrubados, e a neve havia invadido o interior.

A pequena estátua de Kura que sempre ficava ao lado de dois incensos estava caída no chão e partida ao meio.

O único item que parecia relativamente intacto era a armadura vermelha — que estava caída no chão —, apesar de que ela já estava danificada antes da batalha.

Ao ver aquela cena, Feng Ping se esqueceu de sua preocupação e suspirou audivelmente.

Entretanto, apesar daquela bagunça, o Pilar teria retirado seu calçado antes de entrar.

Na verdade, estava prestes a fazer isso quando percebeu que ainda estava de meias, pois havia saltado através da janela quando percebeu o viajante lutando contra Yuu.

Ao olhar aos próprios pés e percebendo suas meias sujas, suspirou novamente e entrou.

A aprendiz retirou suas getas e as deixou perto da porta, e o viajante seguiu o exemplo.

Yuu se apressou até a cozinha, mas foi logo parada pelo viajante.

— Ah, apenas para avisar, não consumo nada animal — comentou.

— Certo, terei isso em mente. — A aprendiz foi embora, deixando Feng Ping e Sariel a sós.

— Siga-me, por favor — disse o Pilar.

— Estarei sob seus cuidados — disse o viajante respeitosamente.

Ambos subiram as escadas — que também foram danificadas e com degraus faltando — até a sala onde Feng Ping normalmente ficava.

Ao chegar lá, era a uma das salas que estavam relativamente bem, já que a janela não estava para o lado de onde os ventos vieram.

Havia alguns vasos quebrados e pinturas rasgadas, mas a estrutura e os móveis estavam intactos.

— Sente-se ali, por favor — disse o Pilar enquanto apontava para a mesa aquecida.

— Obrigado. — O viajante se aproximou do kotatsu e se sentou.

Feng Ping se sentou de frente para Sariel enquanto evitava demonstrar sua preocupação através de seu olhar.

O viajante olhou ao redor da sala e disse: — Este lugar é bem bonito... Peço perdão pelos estragos.

— Não se preocupe com isso — respondeu o Pilar. — Agora, sobre o que gostaria de conversar?

— Apenas gostaria de conhecê-lo, claro — respondeu Sariel. — Fiquei curioso sobre os boatos de que não usava magia. Alguns até achavam que não fazia mais parte do Conselho, apesar do que disse mais cedo provar o contrário.

— Me conhecer? — Por um breve momento, Feng Ping se esqueceu de sua preocupação e sentiu a raiva começar a surgir novamente. — Me fez quebrar minha promessa apenas por isso?

— Bem, uma batalha é sempre uma ótima opção para se ter noção de quem estamos lidando. Além disso, tenho certeza de que, mesmo tendo quebrado sua promessa, percebeu algo útil, certo?

Tsc! Que seja... — reclamou o Pilar.

“Oh? Por essa reação talvez ainda não tenha percebido...”, pensou Sariel.

Neste momento, uma leve batida pode ser ouvida da porta.

— Mestre, o chá está pronto — disse a aprendiz.

— Tudo bem, entre, Yuu.

A porta correu e a aprendiz entrou com uma bandeja com chá e dois pratos de madeira com alguns tempurás — uma espécie de monte de legumes fritos.

Yuu colocou a bandeja na mesa e serviu Sariel e Feng Ping.

— Se o senhor não souber usar o hashi, posso buscar talheres — sugeriu a aprendiz.

— Não é necessário, obrigado.

Após isso, a aprendiz se curvou e deixou o aposento.

Sariel experimentou o chá e a comida, deixando escapar um suspiro de satisfação.

— Bem, de qualquer maneira, realmente não pretende voltar com suas atividades no Conselho?

— Não... Os anjos foram derrotados e o portal foi fechado, o Conselho não necessita de mim — respondeu o Pilar.

— E quanto aquele anjo em Fordurn?

— É apenas um único anjo que nem despertou seus poderes — disse Feng Ping. — Apenas a Vigília já seria o suficiente para lidar com isso.

— De fato, e é por isso que acho tudo estranho... — disse Sariel com uma expressão pensativa. — Por que Ardos apenas faz ameaças ao invés de agir? Este problema já era para ter sido resolvido a um bom tempo.

— Não faço ideia do motivo. — O Pilar desviou do assunto, temendo revelar qualquer informação sobre o Conselho.

O viajante observou Feng Ping por alguns segundos em silêncio.

“Não pretende revelar nada, huh? Troquei meu elemento para Ilusão para ser mais fácil de convencê-lo, mas mesmo assim está sendo cuidadoso... Preciso ganhar sua confiança para conseguir informação sobre o Conselho... mas como farei isso? Deveria revelar meu segredo?”

— E quanto sua promessa? Manterá mesmo depois de hoje?

— Não voltarei a usar magia não importa o motivo — respondeu o Pilar com convicção.

— E se Yuu estiver em perigo novamente? — provocou Sariel.

— Isso jamais acontecerá visto que as únicas pessoas mais habilidosas como ela são os outros Pilares ou membros do alto escalão da Vigília — respondeu Feng Ping com calma.

O Pilar poderia não estar lutando mais, entretanto sabia muito bem das capacidades de Yuu e de sua habilidade. Não estava mentindo quando disse que apenas o Conselho representaria perigo.

E, visto que não haveria nenhum motivo do Conselho querer a morte dela, então era muito improvável que sua vida ficasse em perigo futuramente.

— E quanto às Seitas? — perguntou o viajante em um tom mais sério.

A expressão calma do Pilar se tornou preocupada por um breve momento, mas ela logo retornou.

— Então sabe sobre elas... — disse Feng Ping enquanto olhava atentamente para Sariel.

— Claro que sei, já lidei com muitas delas em Eribur. Tanto que os arredores de meu reino são os mais seguros já que foram todas eliminadas... mas a influência delas me preocupa um pouco...

A voz do viajante parecia compatível com o que dizia, mas o Pilar não podia confiar nele.

Afinal, ele era bem capaz de passar falsas intenções.

Contudo, mesmo Feng Ping — que a muito não lidava com as Seitas — soube por meio do Conselho de que Eribur foi capaz de eliminar todas as Seitas descobertas, portanto era uma boa oportunidade para investigar mais a fundo e descobrir se aquela pessoa realmente foi responsável por isso ou estava apenas mentindo.

— Com quais Seitas lidou? — perguntou enquanto mantinha seu olhar afiado e seus sentidos prontos para sentir qualquer mentira.

— Bem, a Seita de Elgor é a que mais tive que lutar, já que esse Deus é bem agressivo — disse Sariel. — Mas já tive que lidar com a Seita de Nergal e com a Seita de Freya.

— Hmm... o Deus da Guerra, o Deus da Loucura e a Deusa da luxúria... — murmurou o Pilar.

— Guerra, loucura e luxúria? — perguntou o viajante.

— É como o Conselho definiu estes Deuses pelo comportamento deles.

— Hmm... parece correto, o que fazem condiz bem com estes títulos.

— E como lidou com todas essas Seitas? — perguntou o Pilar ainda desconfiado. — Elgor e Nergal eu consigo entender, mas as devotas da Seita de Freya usam, em sua maioria, magia de Ilusão. Como lidou com isso?

Após ouvir isso, Sariel permaneceu em silêncio por um tempo enquanto ponderava sobre algo.

“Não adianta, precisarei contar sobre eu ser um Volátil e torcer para que seja o suficiente para que confie em mim... É uma aposta arriscada, mas preciso obter informação sobre o Conselho. Tudo que preciso é da informação, não importa muito se ele falar sobre mim a Ardos, não é muito difícil se manter escondido sendo um Volátil”

Feng Ping aguardou pacientemente enquanto o silêncio se prolongava, quando o viajante segurou o hashi diante de seu rosto.

De repente, a madeira mudou de aparência, adquirindo um tom prateado e brilhante.

O hashi de Sariel flutuou até o Pilar, que o pegou e sentiu que havia se tornado 10 vezes mais pesado.

— Isso é... prata... — comentou.

O viajante então abriu seus olhos subitamente.

E, para a surpresa de Feng Ping, eles haviam se tornado castanhos.

— Sim, Alteração é um elemento bem útil, não acha? Posso transformar qualquer coisa em prata ou ouro, portanto nunca me falta dinheiro.

Ao perceber aquilo, Feng Ping não conseguiu se conter e deixou uma expressão de surpresa tomar conta de seu rosto.

— Você... é um Volátil!? — perguntou com a voz espantada e quase se levantando.

— Sim, foi assim que lidei com a Seita de Freya. Foi uma tarefa cansativa já que tive que investigar todos os possíveis envolvidos.

O Pilar se conteve e sentou-se novamente.

“Por que me revelou isso? Ainda mais usando este nome...”, pensou.

Enquanto ponderava, o viajante lembrou que estava sem um hashi e começou a levitar e aproximar um tempurá de sua boca.

— Não teme que eu diga ao Conselho sobre você? — perguntou com um tom extremamente sério e quase ameaçador.

— Por que eu temeria? — perguntou Sariel em um tom totalmente honesto e curioso.

“Espere, será possível...?”, uma hipótese passou pela mente de Feng Ping.

— Ardos poderá querer encontrá-lo... — disse enquanto tomava cuidado para não deixar o viajante perceber seus motivos escondidos nessa fala.

— E isso seria um problema? Na verdade, estou até curioso em conhecê-lo também... — disse com o mesmo tom honesto e desinformado, para logo em seguida morder o tempura que fez flutuar até ele.

“Não resta dúvidas... Ele não sabe o que seu nome significa...”, concluiu o Pilar.

Esta era a única explicação possível. Se Sariel soubesse o que seu nome significava, jamais teria se apresentado com este nome, muito menos revelado ser um volátil.

Então, a possibilidade de que ele estava falando a verdade era altamente provável.

“E se ele descobriu esse nome em algum lugar e está usando?”, ponderou.

Era uma possibilidade, mas o conhecimento daquela pessoa, o fato de ser um volátil e não ter continuado a lutar contra ele tornava essa hipótese improvável. Sem contar que a informação sobre as Seitas eram extremamente confidenciais e pouquíssimas pessoas sabiam sobre elas.

— O que você quer afinal? — perguntou Feng Ping com uma curiosidade genuína, sentindo-se inclinado a confiar nele.

— Bem, agora que sei sobre sua situação posso dizer um pouco mais — disse Sariel. — Estou indo para Fordurn averiguar a situação com o anjo. Dependendo do que eu descobrir posso acabar decidindo em ajudar ela ao invés do Conselho.

— Não acha que é uma péssima ideia me dizer isso?

— Sua fama era de ser uma pessoa calma, inteligente e que considera cuidadosamente uma situação difícil. E pela nossa conversa e luta, creio que grande parte disso é verdade. Portanto creio que não dirá nada ao Conselho.

“Então está apostando algo tão importante baseado em uma suposição?”

— O que pretende fazer com o anjo?

— Aprender sobre ela, é claro — respondeu Sariel. — É muito melhor compreendê-la e torná-la uma aliada da humanidade do que matá-la.

“Está me fazendo perguntas demais, não deu certo? Mesmo com magia de Ilusão?”

— O Conselho não pretende matá-la — retorquiu Feng Ping.

— Mas não é o que parece pelos relatos que ouvi... Por que o Conselho ameaçaria enviar a Vigília se seria muito melhor se Ardos, um anjo, visitasse Fordurn para conversar com alguém da própria raça? É muito melhor ter outro anjo como aliado da humanidade.

O Pilar do Vento permaneceu em silêncio por um tempo. Até o momento esteve ignorando o assunto sobre o anjo, pois estava focado em buscar sua própria paz, portanto ignorou e não deu atenção aos detalhes sobre esse acontecimento.

Era de fato estranho que o Conselho estivesse ameaçando Fordurn quando poderiam simplesmente ter enviado uma carta convidando o anjo para conhecer Ardos, ou até informar que ele iria visitá-la.

Foi então que uma hipótese terrível e sombria passou pela mente de Feng Ping.

“Não... Isso seria impossível...”, pensou enquanto balançava a cabeça como se tentasse afastar aquela ideia.

— Não sei o motivo disso, mas o Conselho deve ter suas razões.

— Não sabe? — perguntou Sariel com um tom de dúvida. — Você é um Pilar ainda, deveria estar informado sobre isso.

— Alguns Pilares possuem informações que nem mesmo eu sei — explicou Feng Ping. — Ardos e Clementius devem saber de algo.

“Não é a informação que eu desejava, mas pelo menos sei algo agora... É o suficiente”, pensou Sariel.

O viajante observou o Pilar por um bom tempo, quando uma batida soou pelo outro lado da porta novamente.

— Entre, Yuu.

A aprendiz arrastou a porta e se desculpou-se por atrapalhar a conversa.

— Gostariam que trouxesse algo mais? — perguntou.

— Não será necessário — disse Sariel. — Estamos terminando nossa conversa, portanto irei embora agora.

— Agora? — perguntou o Pilar. — Ainda há muito para discutirmos.

— Infelizmente tenho pressa, caso contrário ficaria por mais tempo — disse o viajante conforme se levantava.

— Ah, algumas pessoas apareceram preocupadas com o que aconteceu e perguntaram sobre o senhor — disse a aprendiz para Sariel. — Disseram que estava hospedado em uma das casas deles e que seu cavalo estava lá, gostaria que eu o buscasse?

— Não se preocupe com isso, não desejo dar mais trabalho ainda — respondeu o viajante.

— Não será um problema, Yuu retornará rapidamente — disse Feng Ping, tentando convencer Sariel a ficar mais tempo e conseguir mais informação.

— Bem... se insistem tanto então aceitarei, obrigado. — O viajante se curvou em agradecimento.

— Certo, retornarei em breve. — A aprendiz também se curvou e deixou a sala, fechando a porta com cuidado e partindo para buscar o cavalo de Sariel.

Assim que Yuu saiu, o viajante se sentou novamente.

— Gostou tanto assim de minha companhia? — brincou.

— Ainda há muito que preciso saber sobre você — respondeu o Pilar. — Um Volátil é uma existência de extrema importante para a humanidade, e nunca soube sobre você. Tem certeza de que não é conectado ao Conselho?

— Mestre Ping é o primeiro Pilar que conheci, portanto não — respondeu Sariel com certeza em sua voz. — E infelizmente não teremos tempo o suficiente para um assunto longo.

Feng Ping permaneceu pensativo por um breve momento, quando se lembrou da batalha que travou alguns minutos atrás.

— Como atingiu o Nirvana?

— Soube pelos livros de história que mestre Ping havia herdado uma técnica que tornava seus movimentos imprevisíveis e sem liberar uma intenção, portanto treinei sozinho até conseguir fazer isso.

— Mas como...? — perguntou o Pilar com dificuldade. — Como atingiu a paz interior? Me diga o que fez!

A figura de Feng Ping como um poderoso guerreiro capaz de derrotar um reino sozinho havia minguado para uma pessoa que desesperadamente buscava a resposta para seu maior tormento.

O Pilar, durante os últimos anos, esteve tentando seguir o treinamento que recebeu de seu mestre e o fez atingir a paz interior pela primeira vez, mas seu espírito ainda estava abalado por tudo que aconteceu.

Se seu mestre ainda estivesse vivo para guiá-lo não teria esse problema, contudo não havia mais ninguém capaz de fazer aquilo.

Apenas uma pessoa no Conselho era capaz disso, o Pilar da Ilusão, que também era nativo das Montanhas Prateadas. Contudo, Feng Ping se encontrou poucas vezes com ele, e essas interações não deixaram uma boa impressão.

Por ser o mestre do elemento Ilusão, a maior utilidade do Pilar da Ilusão era assassinato, algo que Feng Ping desprezava, portanto jamais pediria ajuda dele.

Yuu, apesar de também ter atingido o Nirvana, era sua aprendiz e não conseguia explicar como conseguiu, e apenas repetia que seguiu as instruções dele — que eram as mesmas instruções dadas a ele por seu mestre.

E agora, uma outra pessoa que havia atingido o Nirvana estava bem diante dele.

Sariel, ao ver o tormento de Feng Ping, permaneceu em silêncio por um breve tempo enquanto considerava qual a melhor maneira de prosseguir.

— Mestre Ping... Sei pelo que passou e entendo o quão difícil é encontrar a paz novamente após ter perdido quase tudo — disse com respeito. — Infelizmente não passei pelos mesmos tormentos que o senhor, portanto não sei se poderei ajudar da mesma maneira...

Ao ouvir aquilo, o Pilar abaixou o olhar e apertou seus punhos.

— Entretanto, o senhor não perdeu completamente tudo — disse Sariel.

Feng Ping ergueu a cabeça novamente e perguntou: — O que quer dizer?

— Ainda tem sua aprendiz, alguém que lhe é importante, certo? Afinal, não hesitou nem mesmo um segundo em quebrar sua promessa e usar magia para protegê-la — explicou o viajante. — Não possuo a resposta de como poderá reencontrar sua paz, mas de uma coisa eu tenho certeza... Yuu... ou melhor, a senhorita Yukinoshita poderá guiá-lo até sua resposta.

O Pilar permaneceu em silêncio por mais um tempo enquanto processava aquela informação.

Sariel havia apenas dito algo óbvio a Feng Ping, algo tão óbvio que não percebeu ainda.

— É claro... — disse enquanto quase ria perante tal ironia. — Como pude ser tão cego? Como não vi isso antes?

— É normal não perceber algo óbvio quando está direcionando toda sua atenção para outra coisa — disse o viajante. — Isso se chama hiper foco, e tenho certeza de que esteve tão focado em buscar sua paz que não percebeu que a chave para ela poderia estar logo ao seu lado.

— Entendo... — Feng Ping não sabia como agir, nem falar. Esteve tanto tempo com os olhos fechados que, agora que foram abertos, a luz doía e não sabia como encará-la.

Ambos permaneceram em silêncio por vários minutos. O viajante não desejava incomodar o Pilar enquanto digeria seus sentimentos.

Eventualmente, Yuu retornou e bateu à porta.

— Pode entrar. — Quem deu permissão para que ela entrasse foi Sariel, já que Feng Ping ainda estava em silêncio.

A aprendiz abriu a porta com uma expressão levemente confusa e informou que o cavalo do viajante estava pronto para partir.

— Bem, neste caso terei de partir — disse Sariel conforme se levantava. — Foi um prazer, mestre Ping. — O viajante se curvou em respeito.

— Ko-Kotira... Digo, o prazer é todo meu. — Feng Ping se esqueceu que idioma estava falando e quase se despediu usando a língua das Montanhas Prateadas.

O viajante começou a se dirigir até a porta.

— Yuu, poderia acompanhá-lo, por favor? — pediu Feng Ping com um tom leve, mas ainda confuso. — Precisarei lidar com algumas coisas.

— Certo, mestre. — A aprendiz se curvou, apesar de ter estranhado a maneira como o Pilar fez este pedido. — Me acompanhe, por favor.

Sariel e Yuu deixaram a sala, permitindo que Feng Ping ficasse sozinho.

“Não consegui muito, mas creio que deixei uma boa impressão sobre mim em Feng Ping... Minha identidade provavelmente se manterá em segredo”, pensou o viajante enquanto caminhava.

Assim que ambos partiram, pegou uma folha em branco e seu pincel e começou a pinta novamente uma flor de sakura.

Enquanto isso, o viajante e a aprendiz caminharam em meio aos destroços e à bagunça causada pela batalha com Feng Ping.

Quando chegaram no salão de entrada, Sariel percebeu que — surpreendentemente — o chão estava quase limpo e os móveis que estavam intactos estavam em seus lugares.

— Já arrumou tudo isso? — perguntou surpreso com a dedicação da aprendiz.

— Fiz o possível para deixar este lugar apresentável antes que partisse, mas ainda não está perfeito. Peço desculpas por isso. — Yuu desculpou-se gentilmente.

Haha! Eu que deveria estar me desculpando, afinal fui o responsável por isso.

A aprendiz deixou um pequeno sorriso escapar. Não se lembrava da última vez que ouviu uma risada genuína, portanto aquilo a alegrou um pouco.

Ambos chegaram na porta e trocaram seus calçados para saírem, e depararam-se com Su-en — o cavalo de Sariel — e o casal que havia recebido ele na noite anterior.

Assim que o casal viu o viajante, se aproximaram com preocupação estampada em seus rostos.

— O senhor está bem? Vimos aquela explosão e ficamos preocupados — perguntou Yuri.

— Pensei que havia morrido! Está ferido? — perguntou Suzuki.

— Estou bem, mas o que fazem aqui?

— Quando mencionei que traria suas coisas, ambos insistiram que viessem até aqui e ver se o senhor estava bem — explicou Yuu.

— O que aconteceu aqui? É verdade que irá embora? — perguntou Suzuki.

— Sim, partirei agora mesmo, portanto isso é uma despedida.

— Compreendo, fico feliz que está bem — disse Yuri. — Vamos voltar então, Suzuki. Já incomodamos Yukinoshita-dono demais.

— Tem razão — concordou Suzuki. — Neste caso, adeus, Sariel-dono. Lhe desejo uma boa viagem.

— Agradeço sua hospitalidade — agradeceu o viajante enquanto se curvava.

Ambos se curvaram também e não se demoraram para partir, caminhando o mais rápido que podiam em meio aos ventos gelados das montanhas e a grossa neve que chegava até o joelho.

Sariel observou ambos partirem sentindo-se compelido a dizer uma última coisa, contudo desistiu disso.

“Parecem se lamuriar um pouco com a morte do filho deles, mas estão bem juntos... Não devo me intrometer nisso”, pensou.

Yuu percebeu o olhar contemplativo do viajante e perguntou: — Há algo de errado?

Sariel negou com a cabeça e voltou sua atenção para seu cavalo.

— Olá amigo, como se sente? — perguntou enquanto o acariciava.

Su-en relinchou, demonstrando seu desagrado com o frio que tinha de aturar.

O viajante riu dessa reação e disse: — Eu sei, eu sei... Vamos embora agora mesmo para que não tenha que ficar neste frio.

Sariel montou no cavalo e olhou para Yuu.

— Bem, foi um prazer, senhorita Yukinoshita.

— O prazer é todo meu — respondeu a aprendiz enquanto se curvava. — Adeus, e tome cuidado.

— Hmm, eu não diria que isso é um adeus — disse o viajante. — Um “até a próxima” é mais apropriado.

— Pretende voltar algum dia?

— Sim, e cuide de mestre Ping até lá. — Sariel começou a guiar Su-en, que se virou em direção à estrada.

— Eu que estou sob os cuidados de mestre Ping, mas agradeço sua preocupação.

— Não digo neste sentido.

— O que quer dizer?

— Em breve perceberá. — O cavalo do viajante começou a trotar e a se afastar. — Até breve!

— A-Até breve... — disse Yuu sem compreender as palavras de Sariel.

O viajante trocou seu elemento para gelo, absorvendo o frio e reduzindo a espessura da neve, tornando o trabalho de Su-en muito mais fácil.

A aprendiz observou ambos se afastando por um bom tempo, já que era bem treinada e conseguia ver longe mesmo naquele ambiente, até que os dois finalmente saíram do alcance de sua visão.

Yuu se virou para sua casa e suspirou.

— Já é a terceira vez que teremos que reformá-la... — disse em um tom cansado.

A aprendiz retornou para sua casa e foi direto para a sala onde seu mestre normalmente ficava.

Yuu bateu na porta e aguardou por uma resposta.

— Entre, Yuu... — disse o Pilar com uma voz ligeiramente ofegante. Provavelmente pela luta e pelo estresse de pensar em ter que reparar a casa novamente.

A aprendiz abriu a porta e estava prestes a perguntar se Feng Ping desejava algo, quando percebeu um sorriso quase imperceptível em seu rosto.

O Pilar não respondeu. Seu olhar estava focado em uma folha em cima de sua mesa onde uma tinta preta — já seca — a decorava com um desenho.

— Está... tudo bem, mestre?

— Veja isto, Yuu! — Feng Ping ergueu a folha e a estendeu para que ela pudesse ver.

A aprendiz observou a pintura com curiosidade, quando percebeu algo magnifico: a pintura da flor de sakura, apesar de imperfeito, estava completo.

Até o momento, Feng Ping nunca terminou uma pintura anterior, pois sempre cometia um erro grosseiro demais e ficaria insatisfeito se concluísse a arte, portanto sempre amassava o papel e jogava fora, para logo em seguida começar a pintar novamente e ter o mesmo resultado.

Dessa vez, apesar de possuir um erro, era quase imperceptível — até mesmo para Yuu — e estava finalmente completo.

Não era uma flor perfeita... mas estava muito próxima da perfeição.


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