O Primeiro Serafim Brasileira

Autor(a): Anosk


Volume 1

Capítulo 61: Feng Ping

Uma grande sala construída em madeira abrigava um homem, sentado no chão, de pernas cruzadas e pintando algo em um papel em cima de uma mesa diante dele.

Este homem possuía longos e lisos cabelos cinza, com olhos escuros e puxados. Vestia um quimono preto com detalhes brancos, similares ao soprar do vento.

Aquela sala era bem diferente do padrão dos outros reinos. As portas eram de correr, grandes, feitas de madeira bem fina — sempre com artes pintadas nelas — e sustentadas com madeira mais grossa.

Não havia quadros. Qualquer forma de arte era pintada diretamente na parede, e a maioria eram pinturas de paisagens, como uma casa coberta de neve em uma montanha, árvores com flores de sakura desabrochados ou uma cidade embranquecida devido ao frio com pessoas exercendo suas profissões.

O piso era feito de madeira, mas era totalmente coberto por tatame de cor caramelo — uma espécie de tapete só encontrado nas Montanhas Prateadas — e graças a ele não era necessário o uso de cadeiras, já que era macio e confortável o suficiente para sentar-se no chão.

Uma grande janela — também de correr e com pinturas nelas — estava aberta por onde a luz do sol da tarde e pequenos flocos de neve entravam por ela.

Também havia prateleiras onde, em sua maioria, havia vasos, flores e pequenas árvores chamadas bonsai, que de alguma maneira eram capazes de sobreviver ao frio.

Feng Ping, o Pilar do Vento, estava sentado diante de uma mesa com um grosso cobertor cobrindo as laterais dela, e embaixo desse tecido havia uma pequena pedra de Fogo para espantar o frio. Esta mesa era chamada de kokatsu, e era bem comum nas Montanhas Prateadas, já que a neve nunca parava de cair.

Feng Ping vestia seu grosso kimono preto — com artes semelhante com o soprar do vento por todo o tecido — como sempre, e pintava em um papel branco com destreza a imagem de um galho com flores de sakura.

Suas mãos seguravam firma e gentilmente um grosso pincel, e a tinta preta na ponta deixava uma impressão forte no papel.

Após algum tempo manejando o pincel com cuidado, o Pilar do Vento afastou o instrumento do papel e colocou sobre a mesa enquanto encarava o desenho.

Aos olhos de qualquer leigo aquela seria uma obra-prima, contudo, os olhos de Feng Ping notaram uma imperfeição, frustrando-o e fazendo-o amassar o papel com a tinta ainda molhada e sem terminar a pintura. Desde que começou a pintar essas flores de sakura, jamais conseguiu terminar uma.

Já havia se passado 20 anos desde que parara de usar magia, e o motivo disso era simples: quando os anjos atacaram seu lar e mataram seu mestre e amigos, um ódio incontrolável tomou conta e o Pilar do Vento se tornou um demônio vingativo que assassinava qualquer anjo que encontrasse.

Seu mestre o havia ensinado a jamais deixar a raiva e vingança tomar conta de suas ações, já que isso levaria a um caminho de sofrimento, o caminho de Shura. Deveria sempre seguir o caminho do Nirvana, o caminho da paz interior.

Aqueles que deixavam suas emoções influenciarem em suas ações tendiam sempre a agirem sem pensar e se arrependerem profundamente do que fizeram, fazendo-os cair na desgraça.

Controlar seus sentimentos também era uma ferramenta letal em combate, já que o Pilar do Vento, antes de se deixar levar pela vingança, era um oponente invencível em combate já que seus sentimentos estavam oculto durante seus movimentos, sendo impossível prever suas ações.

Feng Ping apenas percebeu que havia desviado para o caminho de Shura quando batalhou pela última vez contra Indra que, no meio da batalha, disse ser capaz de sentir as emoções dele.

Desde então, retornou para sua terra natal e jurou nunca mais deixar aquele lugar e usar magia novamente até que conseguisse abandonar totalmente o caminho de Shura.

Contudo, esta não era uma tarefa fácil. O Pilar do Vento decidiu começar sua jornada para voltar ao caminho do Nirvana pela pintura, pois sempre gostou de pintar quando tinha tempo livre, além de que a arte reflete os sentimentos do artista.

Entretanto, anos se passaram e em todas as suas artes conseguia perceber um resquício da amargura causado pelos anjos. Um traço mais grosseiro, um pequeno erro, ou um ponto onde havia tinta demais.

Podia parecer estúpido se importar com erros tão minúsculos, mas o Pilar do Vento sabia muito bem o quão importante era trabalhar sua mente para que tais erros não ocorressem e conseguisse pintar a flor perfeita.

Feng Ping pegou outro papel que estava ao lado na mesa e continuou a pintar novamente.

Sempre que achava estar perto de pintar algo com perfeição, memórias do passado piscavam em sua mente, manchando sua arte com um defeito. Tais memórias eram o dia em que os anjos mataram seu mestre, a fúria cega com que os decepava, o ódio que ainda não havia morrido e muitas outras.

As horas se passaram, os papeis amassados se acumularam e a luz do sol apagou lentamente, dando lugar à noite.

O Pilar do Vento permanecia pintando, quando ouviu uma batida suave na porta.

Despertado por este som, Feng Ping disse em um tom calmo e com um resquício de felicidade: — Entre, Yuu.

A porta correu e, do outro lado, aguardava uma bela e jovem mulher segurando uma bandeja com comida ainda esfumaçando.

Vestia um longo kimono azul escuro e com detalhes semelhantes ao soprar do vento, semelhante ao de Feng Ping. Entretanto, havia algo a mais: flocos de neve e partículas azuis de gelo também decoravam suas vestes, sendo carregados pelo vento.

Seus olhos eram escuros e puxados, e sua pele era tão branca quanto a neve. Possuía lábios rosados, discretos, delicados e sem qualquer maquiagem. Sua beleza natural faria qualquer um pensar que havia acabado de fazer uns 20 anos.

Seu cabelo chamava atenção de longe: era longo — quase chegando até a cintura —, e das raízes até o comprimento dos ombros eram totalmente brancos, e conforme se aproximava da cintura tornava-se gradativamente preta. Estava preso em um rabo de cavalo baixo, mas devido ao comprimento se abria como um leque em suas costas, além de duas franjas laterais.

Esta era Yukinoshita Yuu, a única sobrevivente do mestre de Feng Ping e atual aprendiz dele.

Por mais que sua aparência fosse o suficiente para qualquer um se apaixonar por ela — mesmo sem uso de maquiagem —, era uma guerreira poderosa, superando em muito a força de um soldado da Vigília.

Yuu se curvou e entrou na sala devagar.

— Mestre, preparei e trouxe o jantar — disse suavemente. Qualquer um que escutasse sua voz e notasse seu comportamento teria a impressão de uma mulher casada e madura, apesar deste não ser seu caso — por mais que estivesse com 32 anos agora.

— Agradeço o trabalho, Yuu — agradeceu Feng Ping, deixando um sorriso quase imperceptível escapar. — Coloque em cima de minha mesa, por favor.

— Entendido. — Yuu se aproximou e colocou a bandeja em cima da mesa. A comida que havia incluía arroz, peixes, carnes e sopa missô. No entanto, havia uma quantidade apenas para uma pessoa.

— Não comerá hoje? — perguntou o Pilar do Vento.

— Praticarei um pouco mais antes de jantar — respondeu Yuu.

— Entendo, não se sobrecarregue — disse Feng Ping. — Treinar demais pode ser mais nocivo do que treinar pouco.

— Manterei isso em mente. Com licença. — Yuu se curvou novamente e deixou a sala, fechando a porta cuidadosamente e deixando o Pilar a sós com sua comida.

A refeição estava quente e saborosa, perfeito para aquele frio, apesar de Feng Ping já ter se acostumado com esse clima.

Após terminar seu jantar, o Pilar continuou a pintar por mais um tempo até que eventualmente parou e foi dormir.

Contudo, nem mesmo em seus sonhos era capaz de ter paz...

 

***

 

Feng Ping se via em uma casa humilde de madeira, com características semelhantes com sua casa atual, apesar de infinitamente menos luxuosa.

“Este lugar... A quanto tempo não volto aqui?”, perguntou-se com um leve tom de saudade.

— Filho, venha! O almoço está pronto! — disse a voz de uma mulher em outro cômodo da sala.

Segundos depois desse chamado, o Pilar viu uma criança de cabelos cinzas e curtos correndo até a direção de onde veio esta voz, trombando em alguns moveis no trajeto.

Feng Ping sorriu ao ver aquilo e seguiu a criança, chegando em uma pequena sala com uma mesa no centro, onde havia comida.

Nesta mesa estavam sentadas três pessoas: Uma mulher com cabelo preso em um coque e levemente esbranquiçados pela idade, um homem magro e quase careca, e a criança que acabara de chegar ali.

A comida não era muita, mas os três demonstravam estar felizes e conversavam alegremente sobre qualquer assunto aleatório.

— Coma bastante querido — disse a mulher. — Precisa se alimentar para se recuperar de sua doença.

— Está tudo, bem já sou capaz de carregar peso novamente — respondeu o homem com a voz levemente rouca. — Estou mais preocupado com nosso garoto que parece um poço sem fundo. — O homem riu enquanto olhava Feng Ping devorando sua comida.

— Tenho que comer bastante para me tornar um forte guerreiro!

— Mas se comer demais irá engordar, é capaz de nem conseguir se mexer, haha! — respondeu o homem.

O Pilar sorriu novamente ao relembrar esta cena. Não havia dúvidas de que era uma memória de sua terra natal, que fazia fronteira com as Montanhas Prateadas.

Eram tempos mais simples e felizes, os anjos ainda não haviam almejado aquele reino por ser pouco desenvolvido pela dificuldade do clima e terreno.

Feng Ping observou aquela doce memória sentindo um calor em seu coração, até que o som de vento forte começou a soar do lado de fora.

A princípio todos ignoraram, pois, era comum uma nevasca, mas o som se tornou cada vez mais forte, fazendo a janela de madeira — que estava fechada — ranger ruidosamente.

“Espera, não me diga que este é... aquele dia.”, pensou o Pilar.

— Ora, que ventania é essa? — A mulher se levantou e caminhou em direção à janela.

— Pare, mãe! Não se aproxime! — gritou Feng Ping ao mesmo tempo que corria na direção de sua mãe para impedi-la de abrir a janela.

Como era um membro do Conselho, foi capaz de se aproximar antes mesmo que ela terminasse de se levantar. Entretanto, quando estendeu suas mãos na direção dela, elas simplesmente a atravessaram como se fosse um fantasma.

Sua mãe caminhou lentamente em direção à janela, e o Pilar tentava o tempo todo pará-la, mas nada funcionava.

A mulher abriu um pequeno vão da janela para evitar que muito vento entrasse, mas ao invés disso, o que entrou foi uma lança, atravessando seu pescoço e tingindo as paredes de vermelho.

No momento seguinte, a janela foi estraçalhada e dela um anjo invadiu o aposento.

O homem observou aquilo em choque, mas logo um olhar de raiva surgiu em seu rosto, pegou uma faca na mesa e avançou contra o anjo.

Enquanto isso, Feng Ping — do sonho — estava em choque e sem se mover.

— Mã-Mãe? — perguntou com a voz trêmula.

O pai de Feng Ping tentou acertar o pescoço do anjo com a faca, entretanto o anjo bloqueou o golpe sem dificuldade e depois perfurou o estomago dele.

— PAI!

— FILHO, FOGE DAQUI AGORA! — disse o homem enquanto sangue escorria de seu ferimento.

O anjo tentou puxar a lâmina e finalizá-lo, entretanto o homem segurou com força a arma, impedindo o movimento de seu oponente.

— Ma-mas...

— AGORA!

Feng Ping, como era apenas uma criança, acabou obedecendo as ordens de seu pai e deixou a casa, correndo o máximo que pôde.

Enquanto isso, o Pilar observava os últimos momentos de seu pai com uma expressão tenebrosa, como um demônio vingativo.

— Eu vou morrer, mas vou levar você comigo! Seu desgraçado! — O homem tentou novamente acertar o anjo com a faca, e dessa vez o golpe atingiu o alvo. — A humanidade já está cheia de vocês!

O anjo nada disse, nem reagiu ao golpe. Sua única ação foi apontar sua mão livre na direção do homem e fazer um jato de água comprimido cortar o pescoço dele sem nenhuma dificuldade.

Vendo a cabeça de seu pai rolar pelo chão, uma fúria incontrolável tomou conta do Pilar, que fez um tornado surgir bem onde estava.

No entanto, aquilo era apenas um sonho.

Seu vento não causava dano nenhum, atravessava os objetos e não os movia como se não existisse.

— MALDITOS! VOU MATAR TODOS VOCÊS!

Feng Ping aumentou ainda mais a intensidade de seus ventos, mas foi subitamente puxado para fora de casa, indo parar bem no meio de uma estrada onde sua versão criança fugia desesperadamente dos anjos.

Como saiu às pressas, estava descalço e seus pés queimavam com a neve no chão e eram perfurados por pedras ou pelo terreno acidentado. Caminhar pela vila que morava já era uma tarefa difícil por estar em uma montanha, mas era muito pior sem estar devidamente vestido.

Nas casas ao redor, gritos de desespero e sons de metal cortando carte podiam ser ouvidos. Algumas queimavam, outras eram levadas pelo vento ou destruídas por relâmpagos.

Feng Ping correu o máximo que conseguia, mas os anjos eram muito mais velozes. Flechas atingiram seu ombro, fogo queimou um de seus braços e uma estaca de gelo atravessou um de seus joelhos.

Desequilibrado por tantos golpes, ele acabou tropeçando e caindo em um precipício de centenas de metros, sendo finalmente deixado em paz pelos anjos.

O Pilar do Vento observava tudo com a mesma raiva que sentiu quando os anjos tiraram tudo dele pela segunda vez, e soltou um grito gutural que ecoou pelas montanhas.

Feng Ping foi encontrado — de alguma maneira ainda vivo — por seu mestre no fim do penhasco, que o levou até as Montanhas Prateadas para cuidar dele.

Uma cicatriz terrível foi deixada na mente dele quando criança, mas graças à sabedoria de seu mestre, foi capaz de curá-la e seguir o caminho do Nirvana, alcançando a tão difícil paz interior que tantos buscam, mas poucos conseguem.

Demorou mais de uma década, contudo Feng Ping superou o passado e se tornou um guerreiro imprevisível cujas emoções não podiam ser sentidas.

Ainda em seu sonho e dando voz à toda o ódio que sentia pelos anjos, sua consciência lentamente despertou.

E foi dessa maneira que acordou deste pesadelo, gritando de raiva e de volta ao seu atual lar.

Feng Ping olhou ao redor pronto para batalha, mas apenas se deparou com seu quarto.

Assim como a sala em que normalmente pintava, seu quarto possuía as mesmas pinturas, plantas e decorações.

Contudo, este era o quarto que pertenceu ao seu mestre, portanto havia alguns dos pertences dele ainda ali.

Havia pinturas de guerreiros vestindo armaduras e protegendo o povo dos anjos penduradas nas paredes, além de espadas, lanças e pedras mágicas.

Havia também um altar onde jazia uma grande estátua de Kura e feita de um material marrom, com incensos acesos logo ao lado. Estava de pernas cruzadas e ambas as mãos estavam com os punhos fechados se tocando e repousadas sobre suas pernas. O rosto possuía apenas dois riscos representando os olhos e um representando um sorriso.

Existiam poucas estátuas de Kura, já que ninguém sabia exatamente como ela se parecia, mas aparentemente o mestre de Feng Ping a viu uma vez e praticou a arte de esculpir apenas para recriar o que viu.

O Pilar do Vento logo se recuperou de seu pesadelo e se sentou com uma expressão cansada e quase triste.

— Eu havia... superado isso... — disse com a voz trêmula. — Por que isso está voltando a me assombrar?

Toda a marca deixada pelo ataque dos anjos em seu reino natal já havia sido superada, mas agora este passado estava de volta para atormentá-lo.

— Fazem 20 anos e ainda não superei nada! — disse com a voz carregada de frustação.

Feng Ping permaneceu em silêncio por um tempo, quando ouviu uma batida em sua porta.

— Pode entrar... Yuu... — disse enquanto tentava controlar sua voz.

A porta correu revelando sua aprendiz, segurando uma pequena pedra de Alteração para iluminar a escuridão.

Yuu se curvou e perguntou com preocupação: — Mestre, está tudo bem?

O Pilar suspirou e respondeu: — Sim, apenas tive um pesadelo.

— Compreendo, gostaria que lhe preparasse um chá?

— Não será preciso, Yuu. Descanse.

— Tudo bem, com licença. — Yuu se curvou novamente e fechou a porta, deixando o quarto de seu mestre.

Feng Ping permaneceu sentado por um tempo enquanto observava a estátua de Kura. Apesar de seus tormentos, duas coisas que sempre o ajudavam a acalmar a mente eram essa estátua deixada por seu mestre, e sua aprendiz.

Eventualmente, o Pilar se deitou novamente e dormiu.


Meu pix para caso queiram me ajudar com uma doação de qualquer valor: 6126634e-9ca5-40e2-8905-95a407f2309a

Servidor do Discordhttps://discord.gg/3pU6s4tfT6



Comentários