O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 52: Atrás da árvore

Uma gota de suor caiu na grama enquanto eu observava a árvore arranhada na minha frente, a primeira entre as muitas da floresta que se erguia ao lado do dormitório. Nas minhas mãos estava uma lança, com um cabo de um metro e meio e ponta de ferro composta por duas lâminas que se encontravam à frente, formando uma ponta perfurante.

Era difícil mover a lança, e não ter vídeos para ver o corpo de um praticante dificultava. O cabo era muito estranho e bateria no meu quadril se tentasse fazer um ataque muito aberto, fora que o peso era difícil de manusear.

A lâmina era relativamente pequena, muito menor que a de uma espada. Não poderia aparar ataques e, se alguém entrasse dentro do meu alcance curto, eu tinha duas opções: puxar a lança para usá-la como uma estaca com apunhaladas mais lentas e difíceis, ou investir em um jogo de pés que me movimentassem de volta a uma distância segura.

Comparando com a cimitarra que usei no duelo, a lança parecia exigir muito mais técnica e movimentação corporal. Também era difícil me locomover rápido com ela. As únicas vantagens eram o alcance maior, que me manteria mais seguro, e o peso, que, embora me deixasse lento, tornaria os ataques mais fortes.

Encarando a árvore, fortifiquei meus pés no solo e tentei executar um combo simples de ataques, conforme o livro ensinava.

Estocada.

Empurrando meu corpo à frente com o pé direito atrás, estendi meus braços para frente, rotacionando os quadris até que eu estivesse quase de lado. Para liberar mais alcance e impacto, soltei a mão esquerda e estendi o ataque com o braço direito até ele ficar reto.

Dum.

Metade da lâmina adentrou na árvore de uma vez.

Recuei um passo, puxando a lança, e repeti a estocada, cravando-a perto do mesmo lugar, onde deveria ser a cabeça do alvo. Dessa vez, não larguei a mão esquerda, e rapidamente puxei a lança de volta para executar um corte horizontal. Para pôr a força máxima, dobrei um pouco o joelho direito com meu peso nele e de repente investi à frente, transferindo toda energia para o pé da frente e, por consequência, no ataque.

A rotação do pé fez meu quadril roda; o torso e os ombros reproduziram a rotação, dando um impulso mortal ao corte que ainda era fortificado pelo giro dos braços. A lâmina cortou o vento, fazendo um barulho agudo e então penetrou a árvore com tanta força que ela tremeu. Era, afinal, uma energia que crescia desde os pés, e a cada músculo que rodava só se intensificava.

A lâmina entrou quase toda no tronco, enterrada. Se fosse uma pessoa real, o ataque teria parado pouco após partir as costelas, talvez dentro do coração. Se pegasse em um braço, seria capaz de cortá-lo através dos ossos.

A teoria do combo era simples. As duas estocadas eram para atrair a defesa do inimigo à cabeça, ou forçar um desvio que seria interceptado pelo corte. A segunda estocada tem um alcance mais curto por deixar as duas mãos dela, mas prepara uma rápida continuação do corte. Se o adversário estiver protegendo a cabeça, é um golpe em cheio na barriga.

O problema é que a lança é lenta para se manusear, então, a não ser que as duas estocadas atordoem o adversário, ele certamente verá o ataque do corte e se defenderá. Duas estocadas na cabeça e uma no estômago talvez fosse mais eficaz...

Limpei o suor da testa e contemplei a luz alaranjada do Sol se pondo no horizonte. Já havia se passado duas horas, era hora de começar meu treino de feitiços e de mana.

Larguei a lança no chão e peguei um livro de feitiçaria de vento. Tinha começado a revisar os feitiços, quando vi o último que aprendi, o “lâmina de vento”. A teoria era simples: faz-se um corte no ar, e o vento o propaga até o adversário. Era um feitiço de médio custo de mana, e só ensinaram a variação mais simples das três tradicionais — havendo várias outras para magos de elite.

O professor havia ensinado somente a como produzi-lo com as mãos. Ele prometeu que, nessa semana que começaria, aprenderíamos a como executá-lo em armas. Nem o professor esperava que a Missão da Floresta voltasse tão cedo...

Olhei para a runa incrivelmente complexa desenhada. Runas, de uma certa forma, eram como aprender kanji difícil do japonês, composto por outros kanjis e radicais. Por exemplo, o kanji 関係 (kankei), que significa “relacionamento”. Ele é composto pelos kanjis 関 (que significa conexão) e 係 (que significa estar envolvido).

Da forma como aprendi na Terra — que talvez seja mais poética que verdadeira —, o kanji 関 é composto pelo kanji do portão 門, do céu 天 e dos chifres 丷 que ficam acima do céu. Quando junta os três, vê-se que é um portão dentro do qual o céu se conecta ao inferno, que simbolizaria a conexão. Já o kanji 係 é composto pelo radical da pessoa fina 亻e da linhagem 系, ou seja, é uma pessoa interagir com a linhagem de alguém. Sendo assim, conectar-se à linhagem de alguém, ou 関係, é “relacionamento”.

Da mesma forma que no japonês um significado de um kanji complexo é construído ao juntar kanjis e radicais menores, as runas eram o mesmo. Uma runa maior poderia ser composta por várias runas e símbolos menores. Usavam diversos radicais como os dos elementos Ar, Fogo, Terra etc., de atributos "velocidade", "modificação", "calor", "tempo" etc., e, quando se coloca todos os símbolos juntos, formam um significado maior, que é o da runa.

O problema era que algumas runas e símbolos sofriam variações ao serem colocadas numa runa maior. Por exemplo, na runa de lâmina de vento, há o radical do elemento ar, que é um triângulo com um risco horizontal perto da ponta de cima. Porém, quando esse símbolo foi usado para a runa de lâmina de vento, o triângulo, que era para ter todos os lados iguais, só tinham dois de mesmo tamanho. Se eu imaginasse um de três lados iguais na hora da conjuração, o feitiço não daria certo.

A maior dificuldade era que aprender novas runas fazia o cérebro se confundir sobre as runas que antes sabia, por usaram radicais iguais mas com variações diferentes em cada uma. Mesmo com o dom do Flamel, minha memória não era fotográfica.

Virei algumas páginas e achei a runa do feitiço de vento aplicada a armas. Os símbolos eram quase iguais, com a exceção de que agora envolvia um...

Cocei a cabeça. Não conhecia uma grande porção dos símbolos. O que era de tão diferente assim? Por que uma simples extensão do feitiço para armas adicionaria tantos símbolos novos?...

Li as páginas de legenda do feitiço, que explicavam seus componentes, e logo entendi o porquê. Eram runas dos subelementos de metal e madeira. Metal era um subelemento composto de terra e fogo, enquanto a madeira, de terra e água.

Os símbolos de madeira e ferro se multiplicavam de forma uniforme, como se fosse um tecido feito por linhas iguais. O livro chamava isso de “malha”. A malha existia porque a runa do feitiço seria aplicada na ponta da arma, mas como a mana seria transportada até lá? Como solução, a malha realiza essa condução. A malha de madeira conduz a mana pelo cabo, e a de ferro, pela lâmina.

Só que havia um outro problema. Os subelementos madeira e ferro possuem terra na composição, e terra é o oposto do ar. Como as malhas são extensas, as grandes proporções de terra que surgem entram em conflito com a feitiçaria de ar. Para consertar isso, foram adicionados diversos símbolos “amortecedores”, que reduzem os atritos entre elementos opostos. Isso tornou a runa incrivelmente complexa e cansativa de se aprender.

Apesar de assustador, isso tudo era...

Fantástico.

Meus olhos brilharam com tamanha complexidade e beleza. Era a primeira vez que eu examinava uma runa com subelementos diversos unidos e harmonizados. Quem inventou isso deveria ser o gênio dos gênios.

Nesse ritmo, duas horas voaram enquanto eu aprendia aquele novo feitiço e memorizava cada centímetro dele. Quando finalmente terminei, meu coração estava acelerado. Aceleradíssimo. Seria meu primeiro feitiço de nível intermediário, que combinava vários subelementos.

Estava nervoso e ansioso por finalmente poder testar se conseguiria executá-lo ou não.

Ergui-me de pé perante a árvore, longe o suficiente para a lança não pegar nela, e preparei minha base com o joelho de trás dobrado, enquanto encantava ao cabo e a lâmina da espada. À medida que ela ficava pronta, a lança parecia mais fria, como se carregasse a brisa do anoitecer. A arma brilhou, especialmente o círculo mágico feito ao final dela, que carregava o poder do Ar.

Então, dei um passo à frente, jogando meu peso junto de um corte horizontal. A runa cintilou e puxou à força minha mana. A lâmina da lança dançou no ar, e cada centímetro que se movia era mais mana que puxava.

Terminei o ataque sem acertar a árvore, e o vento soprou mais forte. Diante dos meus olhos, o corte no ar se propagou para frente, com um contorno translúcido que era visível mesmo sendo puro ar. A lâmina de vento se disparou até a árvore e se chochou. No impacto, o ar se espalhou, mas um corte raso foi esculpido na madeira. Era cerca de um quarto do poder de destruição de um corte meu direto.

Se eu treinasse a runa, talvez ela fosse ficar ainda mais forte.

Meus lábios se abriram em um sorriso e logo comecei a rir igual louco. Meus ombros, costas e peitos estavam dormentes do tanto que já havia treinado com a lança, mas nada me impediu de sair pulando com os braços para cima.

— Hahahahahahahahaha.

“Se preparem, porque essa é a lenda do grande Michael!”

Inevitavelmente, minha mente comparou meus feitos com os dos meus colegas. Meu brilho começou a sumir quando me lembrei do chicote de gelo que a Guinevere criou na arena, e fiquei com vergonha do meu entusiasmo quando tive a imagem mental de como ela fez o local se tornar um mar revoltado. Até quando brigou com a Violette, ela conjurou uma enorme espada glacial que quase congelava meu corpo só de chegar perto.

...Esses são poderes de estudantes normais mesmo? Não era para as pessoas da minha turma nem saberem executar uma lâmina de vento direito?

Suspirei, já um pouco menos embriagado pela conquista. Só que...

Meu sorriso cresceu de novo. Mesmo que fosse pequeno, era progresso. Um progresso bom e difícil. Isso já valia a pena. Tudo isso foi alcançado em apenas um dia. Se eu tivesse mais tempo... Se eu tivesse anos de treinamento igual esses nobres...

Espreguicei os braços com a lança e, saindo do estado de foco, finalmente dei mais atenção aos meus arredores.

A noite ficava mais escura, e o poste de luz iluminava apenas uma porção do gramado. Todo o restante era envolto em trevas. Encarando as árvores, era difícil discernir onde terminavam os troncos e onde eram os vãos entre eles. Era mais impossível ainda dizer se, ali, haveria um par de olhos a me observar. Por algum motivo, esse pensamento inundava minha mente. Tinha algo de estranho...

Frio recaiu sobre meu corpo. Recolhi meus itens no chão consciente de cada movimento que fazia, pronto para ter que reagir a qualquer momento. Alguma coisa estava errada. Tinha que estar.

Meu pescoço se arrepiou. Virei-me para trás, encarando outra porção da floresta mergulhada em escuridão. Uma sensação gélida tomou minha nuca e a estremeceu. Era como se houvesse um monstro me olhando sempre por trás, mas fosse impossível de o ver. Não importava quanto meus olhos perscrutassem aquela floresta, nada encontravam.

Minha imaginação foi a mil ao pensar no tanto de coisas medonhas que minha visão poderia encontrar ali. Qualquer coisa, qualquer monstro poderia me espreitar. Em um formato humano ou animal, raivoso ou sádico.

A sensação era anormalmente forte, quase como que sentisse uma mana densa e repleta de ódio. Uma parte de mim queria se virar e correr para o dormitório. Procurar a Violette ou a Guinevere. Era mais seguro. Uma outra parte minha queria apenas parar de olhar para as árvores, antes que visse alguma coisa de que me arrependeria.

Porém, depois de passar por tantas situações de vida ou morte...

Usando parte da pouca mana restante, fortifiquei meu braço e bati a ponta do cabo da lança no chão com força, fazendo um baque mudo na terra. Encarei a paisagem sombria com um olhar afiado, tomando coragem e tempo para analisar cada galho e tronco, antes de declarar com uma voz grossa:

— Quem quer que esteja aí, apareça!

De repente, algo nas trevas se moveu. Por detrás de um tronco, surgiram dedos finos e compridos, pálidos como a neve, com unhas negras tão extensas quanto a lâmina da lança. Eles bateram na árvore ritmicamente a cada segundo. As unhas que encontraram a madeira acidentalmente a cortaram como manteiga, caindo pequenas lascas na grama.

Meu corpo paralisou. Quis ofegar, respirar com toda minha força, mas tive que me silenciar. Não poderia parecer nervoso.

Nos poucos segundos que se passaram, ouvindo o batuque grotesco, pensei no que fazer. Poderia correr para o dormitório. Contudo, lá tem tantos corredores e curvas que o monstro poderia usar como armadilha. Não sei a força nem a destreza dele. Nem se usa magia.

Um combate direto era impossível também. Eu estava exausto. Outra possibilidade seria gritar pela Violette. O quarto dela é bem perto... Contudo, ela poderia não estar aqui. Não sei que tipos de assuntos ela tinha a tratar. Se isso desse errado, o monstro pensaria que sou uma presa fácil e indefesa.

Tum, tum, tum.

A cada batida dos dedos, mais rápido minha mente buscava um plano. Naqueles instantes, decidi por gritar, contando que poderia fazer o monstro recuar ou chamar a atenção da Violette:

— SE TIVER CORAGEM, ENTÃO SE APROXIME!

E apontei a lança para a direção da criatura, secretamente usando fortificação corporal para não a tremer com os braços exaustos.

Os dedos pararam, como se o monstro pensasse no que faria. Naqueles instantes, dei tudo de mim para tornar meus olhos ardentes como ferro escaldante. Na verdade...

Quanto mais fitava aqueles dedos esticados, mais raiva e determinação começava a crescer no peito. A hesitação da criatura me deu a impressão de que talvez não fosse tão forte assim. E, mesmo se fosse, eu não deixaria que mais nada atrapalhasse a minha vida nesse mundo. Ninguém mais roubaria meu espaço sem eu lutar com toda minha vida.

Nada. Nunca mais. Eu poderia não estar seguro de que sobreviveria, mas lutaria até o fim, e arrancaria pelo menos um dos dedos do desgraçado.

Então, os dedos se esticaram mais na árvore e as costas de uma mão apareceu. O monstro se revelaria. Entrei em guarda, e, no momento em que ele começava a sair de trás da árvore...

O som de uma janela se abrindo ecoou.

Olhei para trás e vi Violette em seu quarto encarando a cena com olhos brilhando em chamas violetas vivas.

Imediatamente virei-me de novo e olhei para a árvore. Os dedos se encolheram para trás dela, adentrando no reino da escuridão, onde eu nunca mais conseguiria enxergá-los.

Meu corpo ainda estava enrijecido como uma estátua. Apesar de toda coragem, o medo foi real, e só agora pude ofegar o ar que tanto precisava.

— Meu Deus...

Andei até o dormitório sem olhar para trás e em pouco tempo estava na porta da Violette. Assim que ia bater nela, ela se abriu, revelando a garota ruiva. Por trás dela, pude ver pelo menos dez armas diferentes exibidas em suportes pela parede da janela. Todas pretas e algumas com uma fita vermelha elegante. A mesa estava repleta de livros abertos e alguns frascos vazios ainda molhados.

Meus olhos se dirigiram aos dela. Entreolhamo-nos em silêncio. Ela tinha um rosto cansado, olhos ríspidos e cabelos desgrenhados como raramente os vi. Vestia apenas uma camisola branca frouxa, estampada com algumas flores vermelhas, que a cobria desde pouco depois da clavícula até depois dos joelhos.

Fiquei um pouco nervoso ao não conseguir ler as emoções dela. Ela me encarava como se me interrogasse do porquê de estar ali. Cocei a cabeça meio sem jeito.

— Você viu?

O silêncio que se fez entre nós foi difícil de respirar. Tão difícil que ela suspirou, não aguentou e o quebrou:

— Não. O que tinha lá?

Engoli em seco. Aqueles dedos, por algum motivo, eram tão fáceis de se ver em meio às sombras, quase como se tivessem luz própria. Não entendi como ela não os viu.

— Posso... entrar primeiro?

Era um pouco assustador ficar lá, ela de camisola e eu de costas para o corredor, completamente desprotegidos.

— ... — Ela me encarou com um claro desejo de negar meu pedido. Mas, vendo minha face envolta numa mistura de ansiedade e determinação, ela encolheu os ombros e disse: — Pode.

 



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