O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 50: Zonto

Quando imaginei o local em que aconteceria a fala do professor, pensei em um salão extenso, com candelabros de ouro pendendo ao teto, os alunos sentados em fileiras de poltronas acolchoadas ouvindo o discurso.

O local a que Aithne nos levou, contudo, era uma arena de batalha. Muito parecida com a que enfrentei Violette, com a diferença de que não havia um vão entre a arquibancada e o piso do ringue. Por isso, não havia mesas de armas, e uma magia como a do chicote que Guinevere havia conjurado atingiria os espectadores da arquibancada.

O lugar estava lotado. Havia cinco vezes mais estudantes do que conhecia da minha sala, dispersos em grupos menores, os membros de cada um interagindo de forma tão diferente que pareciam ser pequenos mundos em si mesmos, com atmosfera própria. A pintura geral era como um mosaico, feito por todas as tão diversas facetas humanas observáveis ali.

— Geralmente aqui é para duelos de exibição, do tipo bonitinho e ensaiado — disse Aithne naturalmente, como se fosse seu papel me instruir. — Muito diferente das lutas brutais e incertas que acontecem na verdadeira arena...

— Enten...

De repente, um par de lábios macios e molhados pressionou meu pescoço, um cabelo ruivo fazendo cócegas na bochecha.

— Viol! — Ri, feliz, embora um pouco envergonhado, notando os olhares que já atraíamos.

Com um sorrisinho, Violette pousou o queixo no meu ombro. Ela era tão fofa... Envolvi-a com meu braço, puxando-a para mim e inundando sua testa de beijos.

— Vocês são um casal mesmo, hein. — Apesar do tom penetrante da Aithne, seus lábios estavam curvados em um sorriso pacífico, os olhos nostálgicos, agridoces.

Infelizmente, não tinha muito o que fazer sobre a Aithne... Quando há algo fora do nosso alcance, a solução mais sábia é deixar o tempo resolver. Ele pode criar caminhos onde não existem, e fazer um coração abandonado recriar seu lar, tal qual um passarinho que, depois da tempestade, reconstrói sua casa.

E o tempo, esse tempo maravilhoso, também me trouxe para junto dela... Beijei mais outra vez a testa da Violette, que grunhiu satisfeita, como se fosse uma raposinha.

— Você é manhosa, hein — sussurrei.

Ela me beliscou de levinho na cintura, o que me fez pular de susto.

— Ei!

— Vai vendo se vou continuar sendo sua gatinha assim, se meu dono fica me descrevendo. Tá achando que tá narrando uma personagem, é? — cochichou ela de volta. 

— Aham. E uma super fofa por sinal. Ai!

A filha da mãe me beliscou de novo.

— Seus dias tão contados — disse ela.

— Não mais que os seus. Espera só a gente ficar a sós pra ver se não te encho de beijo...

— Não era só de beijo que você queria me encher hoje. Era?

Ela se esgueirou embaixo do meu ouvido e beijou o pescoço, mas... não tirou os lábios dele dessa vez. Sugou minha pele como se chupasse uma laranja, e só após alguns segundos que deixou a boca deslizar e o queixo retornar ao meu ombro.

— Você não acabou de me dar uma marca em público, né?!

— Talvez...

— Violette...

— Melzinho~. Estou brincando. Não tem marca nenhuma. Mas posso deixar...

Suspirei fundo. Essa menina...

Sem ter muito o que fazer, afaguei a cabeça dela e a beijei, tentando desaquecer um pouco aquela bomba de tesão. Era impressionante como essa garota tinha zero de tato social quando estou do lado dela. Até quando fez a palhaçada da bola de água. Fora que...

Onde quer que eu olhasse, havia alguém nos encarando e cochichando. Sem dúvidas, éramos um dos tópicos mais quentes da Academia, ainda mais do que o pronunciamento misterioso do professor que acontecia em breve.

Minha atenção naturalmente retornou à Violette, que havia acabado de olhar para trás e já retornava ao seu cantinho especial no meu ombro, embora houvesse um resquício de mana violeta na face. Ela usou aqueles olhos... Mas para quê? O que será que tanto via? Será que tinha a ver com a gente sendo o foco da atenção? E...

Um calafrio se espalhou de repente pelo meu corpo. Minha nuca queimou, uma dor excruciante como se fosse marcada por um ferro em brasas. Virei-me para trás e vi, no meio do mar de estudantes...

Um corpo humano de pura carne vermelha, alto e robusto, fumaça saindo de onde deveria haver pele. Da vermelhidão, dois olhos negros me encaravam, tão arregalados que explodiam o contorno da testa. A boca se abriu, larga como um disco, e vomitou uma corrente verde que voou em direção a mim e Violette, rápida como uma bala.

De reflexo, me posicionei na frente da Violette e a abracei firme, decidido a tomar o impacto por ela. 

— Cuidado! — disse, fechando os olhos e aguardando que meus músculos fossem dilacerados com aquele disparo.

Aguardei por longos segundos, mas... tudo que minha pele sentia era o tecido macio do uniforme intocado. Nada, absolutamente nada ocorreu.

— O que foi? — Violette e Aithne me perguntaram em uníssono, me encarando com confusão.

A estranheza no olhar delas acelerou meu coração. Olhei para trás de novo, e o monstro havia desaparecido. Não tinha nada. Nada além do...

Na mesma posição em que vi o ser horripilante, Cyle me encarava com um olhar repleto de veneno. Um veneno tão áspero quanto a corrente verde que tentou me chicotear. Sua expressão exalava nojo, como se fosse eu o monstro.

A criatura podia ter sumido, mas aqueles olhos do Cyle, tão perigosos quanto os estourados do monstro, me faziam arrepiar da mesma forma. Omnix Beytran não estava lá para me explicar, mas tinha uma suspeita...

Inveja. — Quem falou isso foi a Violette, antes de se esconder ainda mais fundo no meu pescoço.

O cenho da Aithne franziu, confusa enquanto nos observava, e eu abracei a Violette mais apertado...

Por eu ter elevado a voz e agido tão abruptamente, agora todos nos encaravam. Seus olhos apontavam para nós, alguns riam e caçoavam de mim, dizendo aos colegas que eu era louco. Infelizmente, não havia nada a ser feito. Fiquei encarando o horizonte, enquanto o calor e o perfume da Violette me confortavam. Era horrível, mas...

Suspirei de alívio. Não havia monstro algum, só maus olhados. Era horrível ser alvo de risadinhas, mas ainda pior seria qualquer coisa acontecer com essa princesa. Beijei a cabeça dela outra, e...

Hm?

Ela tremeu. Foi uma tremida quase imperceptível e que eu não daria atenção alguma. O problema era que foi algo tão estranho de vir dela. Era um tremor de medo, de pavor, que pouco combinava com a guerreira fria que era.

Depois que comecei a acariciar a cintura dela, preocupado, ela virou o rosto para cima e me fitou, seus olhos quase nos meus. Pareciam normais. Quase normais. Quase... Exceto um toque neles fúnebre, quase escondido. Algo naquelas pupilas me fazia lembrar da criança Violette sentada na cama, encarando a porta com olhos de cadáver.

— O que que tem? — disse ela, num tom anormalmente ríspido.

— Eu que te pergunto. Tá tudo bem?

A Violette abriu os lábios com as sobrancelhas animadas, pronta para me dar uma resposta imediata que dissesse que sim, e...

A resposta não veio. O brilho nos olhos lentamente foi sumindo, os lábios murchando. Ela deu um passo para trás, coçou a cabeça, me encarou, suspirou e se espreguiçou, esticando os braços ao topo sem ser sensual, tentando me despistar de encarar seu estado emocional.

— Mhm.

Ela não estava bem. Definitivamente. Sem saber o que fazer para contornar as defesas dela, decidi buscar ajudar externa:

— Aithne, o que você...

Quando percebi, a jovem feiticeira havia desaparecido. O que...

— Flamel! — brandiu uma voz jovial mas profunda, tão familiar.

Na direção dela, Dolgan exibia um sorriso quilométrico e abanava o braço desesperadamente, à frente da arquibancada. Aithne estava com ele, além da Guinevere e de... um jovem de cabelos verde esmeralda presos num rabo de cavalo, sentado em um dos degraus, a katana embainhada nas mãos. Era Hikaru.

Hummmmm... — Violette se espreguiçou outra vez, ainda mais modesta que anteriormente.

Depois que se ajeitou de volta, seu rosto estava mais tranquilo. Até um pequenino protótipo de sorriso o acompanhava.

— Vamos? — disse ela, agarrando minha mão e não me dando tempo para responder, apenas de contemplá-la, como o fazia a cada minuto.

Segui-a por entre as ondas de grupos até chegar ao Dolgan, que correu e me envolveu num abraço apertado de urso, a Violette recuando de fininho para nos dar espaço.

— CARA, EU SENTI SUA FALTA!

Esse cara...

— Também senti — falei rindo. — Mas não de como você fala berrando nos estádios...

— Ah, Flamel, foda-se! — Ele soltou o abraço para bater em meu ombro, potente o suficiente para fazer a estrutura óssea vibrar. — “Um homem de verdade não foge de suas responsabilidades!”

— E onde tem responsabilidade nisso?

Ele me encarou como se as sobrancelhas exibissem um ponto de interrogação.

— Na responsabilidade de... ser reconhecido?

— Isso não me parece láa um reconhecimento.

O anão gargalhou.

— Você é sempre tão sistemático. Relaxa um pouquinho mais. — Ele bateu no meu peito e se fastou de mim, revelando quem estava atrás dele, que era...

Engoli em seco. Era uma jovem de olhos azuis rebeldes e cabelos loiros presos num rabo de cavalo feito às pressas, muito atípico para quem sempre se vestia como uma princesa. Apesar da aura desafiadora, um sorriso carinhoso, talvez um pouco amargo, se abriu.

— Oi — disse ela, e estendeu a mão.

— Oi... — Apertei a mão delicada, cuja textura era mais áspera do que me lembrava. Seus olhos penetrantes miravam nos meus... Era compreensível, afinal, eu a rejeitei. Ainda assim, não conseguia retribuir a mesma frieza. Um pequeno sorriso caloroso se abriu nos meus lábios, mesmo sentindo um pouco de tristeza nos olhos. — É bom te ver. 

Tentei soltar a mão dela, mas ela se recusou, mantendo-a parada. Seu rosto se abriu um pouco, um suspiro carregado saindo dos pulmões.

— Também é bom te ver.

Não soube como responder, e a falta de palavras ficou um pouco constrangedor. Demos um passo para trás, nos distanciando. Ela jogou o cabelo para trás da orelha e focou o olhar nos outros grupos, longe de mim. Estávamos tão próximos, mas um muro intransponível se fazia entre mim e ela.

Não que eu pudesse fazer algo a respeito. Foi minha escolha, afinal...

— E olha quem está aqui, por minha causa! — Dolgan deu um tapa nas costas do Hikaru e riu como se tivesse bebido dois litros de cerveja.

Somente então analisei a feição de Hikaru. Seus olhos eram abertos e atentos, embora com os músculos faciais relaxados. Não senti a tensão de quem vê um inimigo em potencial. Era mais como se pendesse a uma ausência de julgamento, absorvendo cada informação que podia sobre todos à volta.

Ele não parecia ser problema. Quando fui estender minha mão, porém...

Hikaru se curvou, pendendo a quarenta e cinco graus.  

— Agradeço pelo acolhimento. Farei meu melhor na equipe — pronunciou ele, com palavras sérias e sem hesitação alguma.

Sorri meio sem jeito, e os demais também não souberam reagir muito bem. Esse nível de respeito era raro de se ver aqui.

— Eu que agradeço por se juntar a nós. —Assumi a liderança e me curvei também.

Após me levantar, encarei meus companheiros e sorri sem jeito outra vez, meio envergonhado da pergunta que faria:

— Aliás, por que todo mundo está reunido em grupo mesmo?

— Ah! — Dolgan bateu nas minhas costas e riu. — Também fiquei surpreso. A professora Hayek passou aqui mais cedo e disse para fazermos equipes de até seis pessoas. Não tenho ideia do porquê.

Sorri e afaguei o ombro do anão.

— Valeu. Isso explica as coisas.

— É bom ver você sorrindo tanto — Aithne sorriu também, como se fosse contagioso. — Aliás, espera, isso em você é marca de sorriso?! — Ela correu até mim e puxou a lateral dos meus lábios, examinando cada centímetro.

— O que foi-

— Cala a boca. Deixa eu ver!

Calei-me e ela analisou meu rosto. Guinevere, de fininho, observou minha face por cima da cabeça da Aithne. Dolgan e até Hikaru foram ver também.

— Você tá com marca de sorriso nos dois cantos da boca! E tá ficando profunda! — Aithne ficou boquiaberta, os olhos arregalados.

— Sério?! — Dolgan ficou na ponta dos pés para ver melhor.

A atenção que recebia me fez ficar tímido. Comecei até a suar, quando de repente os braços de alguém envolveram minha cintura, e algo macio e delicioso se espremendo nas minhas costas. Então o rosto da Violette apareceu em cima do meu ombro, surgindo como se fosse um daqueles bichinhos que você tem que acertar o martelo no fliperama.

Hehehehe. Meu Melzinho anda feliz. — E beijou minha bochecha, deixando-a um pouco melhada.

Como resposta, Guinevere nos encarou com um olhar profundamente fechado e impenetrável. Aithne também franziu o cenho e inclusive o brincalhão do Dolgan nos fitou com desaprovação.

— O que foi? — Não conseguia entender. Era por causa da Violette?

— Liga para eles não, Mel. Estão com inveja~

— Inveja? — Guinevere cruzou os braços e suspirou fundo. Pareceu pensar e pensar, encarando o chão, mas, à medida que o tempo passava, ficou óbvio que desistiu de dizer o que queria.

Dolgan também nada disse, embora seus olhos sombrios à Violette fossem piores que mil xingamentos. Só a Aithne que...

Em meio à situação tensa, a maga de cabelos castanhos esboçou um sorriso.

— A Violette não é tão ruim assim. — A declaração fez os olhos de Dolgan e Guinevere se arregalarem. Aithne franziu o cenho para os dois. — E, acima de tudo, como ela mostrou, o Flamel tem sorrido como nunca. Até eu tenho que confessar que, porra, o menino tá feliz. O drama de vocês faz até parecer que ela tá traindo ele ou algo assim.

Dolgan colocou as mãos no bolso e uma artéria do pescoço pulsou. Apesar disso, ele se calou e não falou mais nada, juntando-se ao lado da Guinevere. Aithne os observou com o rosto inexpressivo, difícil de ler, antes de dizer:

— Que seja.

Batendo os pés, foi para o degrau da arquibancada e se sentou ao lado de Hikaru. Dobrou as pernas e escondeu o rosto nelas, os braços reforçando o esconderijo improvisado. Dolgan trocou um olhar culpado com Guinevere, antes de irem para lá também, me deixando em pé a sós com a Violette, que tudo observava pelo meu ombro.

— Por que fazem isso com você? — falei baixinho, meu coração doendo enquanto olhava para aqueles olhos sem vida dela, que encaravam distantes o grupo, enxergando mas não vendo.

— Você tem o coração muito puro, Mel. Se soubesse melhor dos rumores sobre minha Casa...

— Sobre a sua Casa?

Ela apertou os lábios, hesitou, fechou os olhos como se fugisse dos meus e finalmente concluiu:

— Talvez concordaria com eles.

Calei-me, aos poucos me relembrando os absurdos que Aithne me contou a respeito. Se aquelas coisas eram verdadeiras... O pelo do meu corpo inteiro começou a arrepiar.

Encarei aquele rostinho angelical e sem expressão, que escondia uma profunda tristeza por detrás da superfície, como um lago que esconde grandes pedras no fundo. Senti o calor do abraço, a maciez dos seios que conhecia cada vez melhor, a profundidade dos lábios que conseguia imaginar perfeitamente. Lembrei a sensação nauseante e viciante da mana dela, mais verdadeira que qualquer palavra doce que poderia me dizer.

Senti e experimentei, por mim mesmo, aquelas águas. Naveguei pelos seus vales, descobri tesouros e perigos, mistérios e bênçãos. Senti os dedos mais carinhosos do mundo, e a abracei na frente do rio com toda compaixão que o coração humano poderia proporcionar, até o mundo se fazer quente. Vivemos tanto, situações de vida e sensualidade, morte e desespero. Mais do que qualquer rumor, eu a via. Desvendava seus labirintos, seus detalhes.

— Você é linda.

Os olhos dela se abriram e miraram surpresos nos meus. Uma expressão de dúvida surgiu em sua testa.

— Você...

De repente, o som de uma flauta de bambu começou a ressoar próximo de nós. Meu foco mudou para a figura enigmática do Hikaru, que manuseava o instrumento nos lábios.

Como se soprasse com toda calma do mundo, uma pequena nota ressoou, trêmula e emotiva. A nota transformou-se em outra mais aguda, depois noutra ainda mais, antes de cair num grave lento e constante. Era como se fosse uma pessoa subindo a escada da vida, cada vez mais agudo, mais perto da glória, e subitamente escorregasse e voltasse ao início grave, de onde partiu.

Aquele grave vibrou, incerto, morrendo até quase se tornar um sussurro. Mas algo aconteceu. O som voltou a criar vida. E, como toda vida quer crescer, ele se fez mais intenso a cada instante. As notas subiram, às vezes desceram; brincaram como uma valsa, indo e vindo, aos poucos subindo, lentamente avançando. Felicidade e tristeza, infortúnio e milagres, todas as dualidades da existência humana eram captadas na suave música.

— Não é bonito? — cochichou Violette no meu ouvido, um sorriso sereno em seus lábios como se todos os problemas de segundos antes fossem um mero pesadelo.

— Sim. Muito.

Relaxei e foquei na música. Ela trazia uma paz estranha e especial. Não a paz da falta de ação, mas a paz que é alcançada quando se transcende as vitórias e as perdas, como alguém que, ao fim da vida, encara seus erros e acertos, os altos e baixos. Era uma música que, na felicidade, era doce e singela, e na tristeza, hesitante e muda.

A paz que proporcionava não vinha da ausência do conflito, mas da certeza da luz após as tragédias e infortúnios. A luz que poderia ser ofuscada pelo sofrimento, e, inevitavelmente, voltaria a brilhar.

— Ele é amigo do Dolgan? — perguntei, tentando entender como tínhamos conseguido alguém como ele no grupo.

Quem riu com a minha pergunta foi a Aithne, que havia tirado o rosto do casulo dos braços.

— O Hikaru raramente aparece — sussurrou Violette. — Mas, quando o faz, geralmente é para comer com o grupo do Dolgan. Ele tem um talento para atrair os isolados da Academia.

Os isolados da Academia...

Conseguia entender bem o porquê. A música, mesmo que baixinha, atraiu a atenção de outros grupos. Alguns encaravam o jovem com desgosto. Se prestasse atenção, ouviria sussurros como:

— Ele ama se exibir né?

— Arrogante demais... Acha que a Academia é palco pros showzinhos dele.

Ao mesmo tempo, havia algumas garotas conversando animadas entre si.

— Ele não é fofo?

— Esses cabelos verdes... Nunca vi igual.

— E a flauta é tão doce...

Havia também os que só ignoraram a música, o ruído da conversa deles disputando com a flauta, e outros que a apreciaram em silêncio. Apesar disso, para mim era evidente que alguém como ele não conseguiria se encaixar em nenhuma das equipes.

— Ele está em qual período? — falei.

— No nosso — respondeu a Violette, segurando minha mão e brincando com ela.

— Ué. É da nossa sala?

— Uhum. Um caso especial, assim como a Aithne.

— Ah, sim...

A música aos poucos morria, num tom mais agudo e amargo. Fechei os olhos, me apegando às últimas notas. Havia tanto tempo que não escutava uma melodia...

Na Terra, eu tinha acesso tão fácil a elas que nem percebia o quanto mexem comigo. Como o ritmo, o tom, a melodia se entrelaçam com o coração e confortam ou agitam, aceleram ou relaxam os batimentos. Nesse caso, relaxaram, bastante...

— Flamel... — Violette sussurrou, a voz vulnerável e pesada, num claro pedido de me ter mais.

Abri os olhos, e percebi que Dolgan, Aithne e Guinevere também conversavam. Porém então encarei a Violette, seus olhos profundos nos meus. Tão lindos...

Coloquei as mãos nas bochechas dela, sentindo-as ficando quente e vermelhas.

— Você... se lembra das nossas promessas?

Um sorriso bobo tomou conta de mim. Repleto de carinho, a puxei para meu peito e a envolvi nos braços, escondida do mundo.

— Como poderia?

A respiração dela se soltou, como se um nó se desfizesse no peito, e me abraçou, muda. Fechei os olhos e...

Alguns aplausos eclodirem ao nosso redor. Percebi que a música já havia acabado, e nem tinha percebido...

Ainda sentindo as notas vibrando no peito, olhei para os cabelos sedosos e brilhantes da Violette e os afaguei. Fiquei um pouco triste por ter me distraído da melodia, mas talvez fosse porque meu coração se deliciava com uma outra ainda mais profunda.

Violette se mexeu e desfizemos o abraço. Ela encarou o chão, num silêncio inseguro que pouco combinava com ela.

— Você é tão...

Um trovão violou as barreiras do som e fez estremecer a arena. De repente, nuvens inundaram os céus e se concentraram acima de nós num grosso redemoinho. O vórtex do centro parecia ser capaz de sugar qualquer coisa, inclusive o próprio Sol, que desaparecera. Em pleno meio-dia, o dia se fez noite, o Sol se fez vazio.

As nuvens cinzas tornaram-se negras e maciças. Clarões amarelos saltaram por todo céu, carregados de pura eletricidade.

— O que é iss...

Um outro relâmpago cortou os céus e pareceu fatiar o mundo pela metade, caindo no centro da arena onde não havia ninguém. O chão tremeu e balançou, como se fosse rasgado. 

No local em que o raio explodiu, ergueu-se uma coluna de fumaça acima do chão queimado. À medida que ela se desfazia, surgia a sombra de um ser, larga demais para ser a de um humano.

O vento soprou forte, como se um tornado criasse vida, e a poeira e fumaça foram carregadas para longe. Das sombras inumanas, surgiu um mago coberto por um largo robe roxo, que somente revelava a metade de baixo da face do sujeito. Em meio à pele pálida como um fantasma, seus olhos eram escondidos pelas sombras.

Segurava um cajado roxo fosco, grande como uma espada. Bateu a base no chão, e as nuvens se agitaram ainda mais. O vórtex no céu se multiplicou, formando um furacão de cima para baixo, aos poucos descendo pela vastidão da atmosfera até tocar o cajado do mestre. As nuvens o circundaram, rápidas como o som, e foram diminuindo de tamanho cada vez mais, até parecerem algodões, escuras como carvão.

Elas foram desacelerando, tornando-se quase estáticas, quando explodiram e se lançaram ao ar. Então elas se repartiram em dezenas de fios grossos, cada um descendo a um grupo diferente. Um deles recaiu nas minhas mãos, entregando-me uma esfera de cor obsidiana.

As nuvens que materializaram a esfera entraram dentro dela e tornaram-se o número sete, lentamente se fazendo rosado até ser da cor de orquídea, enquanto uma imagem de uma floresta verde se reproduzia como um filme no plano de fundo. Essa esfera...

Meu sangue congelou, um nó gélido mordendo o topo do estômago. Essa merda de orbe...

Aquilo era a mesma coisa que presenciei na visão de quando tentei salvar o menino que foi torturado. O mesmo número, a mesma floresta. Não havia dúvidas.

Fixei os olhos naquele mago misterioso. Observei cada detalhe, mas era difícil absorver qualquer detalhe. Uma névoa roxa o circundava, e a vestimenta o cobria quase que por completo.

— Prazer conhecê-los. — Sua voz era rouca como um trovão, mas esguia como uma cobra. — Sou Zonto, o professor substituto que conduzirá o treinamento prático de vocês. O desafio desse período será o da Floresta, como sempre. Cada grupo recebeu um número que será correspondente à floresta que entrará. Os exames começarão amanhã. Estejam preparados. Os verei novamente para comunicar-lhes os resultados. Esforcem-se.

O mago bateu o cajado no chão, fazendo as nuvens o recobrirem como uma esfera e nela desaparecer. As nuvens se desfizeram do céu tão depressa quanto surgiram, e a noite se fez dia em segundos. Não sobrou um resquício dele na arena.

Um silêncio brutal recaiu sobre o local, que ainda vibrava com suas palavras de poder proferidas pelo mago. Depois de um minuto, conversas explodiram por todos lugares.

— O exame vai ser agora?! No começo do período?! — falava Aithne com horror. — A gente nem aprendeu nada direito!

— Deve ter algum engano... — Dolgan coçou a cabeça.

— Não há — pronunciou Violette num tom seco.

— Ele foi bem claro... — Guinevere entrelaçou os dedos, insegura.

Enquanto eles compartilhavam as impressões absurdas do que ocorreu, meus olhos se concentravam em algo infinitamente mais absurdo: a esfera em minhas mãos.

Por vezes, achei que a cena do menino torturado poderia ser mero pesadelo. No dia seguinte, o corredor da caverna estava completamente fechado. A Aithne não tinha pista nenhuma sobre o lugar em que fui. Não sabendo se foi só um sonho, encontrei paz na dúvida.

Mas agora era claro como dia ensolarado. Aconteceu. Aquele menino teve as tripas arrancadas e testadas uma a uma, para examinar sua capacidade de regeneração. Essa esfera mostrava que isso tinha que ser real. Era um fantasma maldito que voltava para me assombrar e, de alguma forma, queria com isso dizer:

“Algo relacionado com o garoto acontecerá na floresta.”

Na verdade, tudo parecia girar em torno daquilo. O cenário em que Omnix Beytran me encontrou era também uma floresta, e ele disse que lá eu tomaria uma grande escolha quando chegasse a hora. Também nas florestas encontrei os piores monstros, o último teria me devorado se não fosse a Violette..

Não havia dúvida. Monstros estavam à solta, sem haver qualquer forma de prevê-los. Algo horrível aconteceria. O adiamento da Floresta tinha que ter algo por trás. Nós não estávamos seguros. Eu estava menos ainda.

E o pior...

Pelas próximas duas semanas, Omnix Beytran estará dormindo. Pediu-me que não entrasse em perigo, mas...

Que porra posso fazer?! Eu...

Um calor se espalhou pela minha mão, junto de um toque gentil. Violette olhava para mim, um sorriso tranquilo nos lábios.

— Você não está sozinho.

Guinevere, Aithne, Dolgan e Hikaru nos encararam, curiosos e sem entender do que se tratava a fala dela. Sem obter uma explicação, olharam para mim. Naquele momento, vendo como me encaravam em uníssono, meio preocupados, entendi o recado da Violette.

Não sabia o que infernos acontecia, mas não estava sozinho. Todos estavam comigo.

Segurei a mão dela e a fitei com olhos resolutos.

— Não importa o que acontecer, vamos destruir esse desafio.

A Violette sorriu, sorriso esse que contagiou toda a equipe, como se permitissem dar uma paz temporária. Até a Guinevere, que se mostrava a mais fechada, pareceu deixar a desconfiança de lado e assumiu um rosto mais confiante.

— Vamos! — Dolgan bateu no peito com força, ecoando um barulho pesado como se estivesse batendo em uma muralha.

Hikaru acenou com a cabeça, silencioso, e Aithne me encarou com ansiedade, expectativa e um pouco de... ânimo?

Em menos de um minuto, todos se levantaram e caminharam até eu e Violette. Fizemos uma roda entre nós, e lá pude encarar o rosto de cada um, um por um. Aquela equipe... Aquela equipe era perfeita. As pessoas mais confiáveis, funções de combates diversas e alunos habilidosos com feitiçaria.

Meu sorriso cresceu.

Engoli em seco, como se tentasse engolir a ansiedade de volta ao coração, e acenei para todos.

— Vamos.

Ali, naquele dia, uma nova equipe surgia.



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