Volume 1
Capítulo 38: Biblioteca das Almas
Enquanto andávamos por entre o labirinto de livros, notei uma salinha mais ao fundo. Através da pequena janela de vidro, vi Aithne estudando, as olheiras tão profundas quanto as sombras produzidas contra a luz de uma bola de fogo sobre o livro.
Então ela normalmente ficava aqui... Nem fazia cinco minutos que me despedi dela, e a garota já foi para lá, talvez procurando por um local quieto. Isso explicava por que às vezes não a encontrava quando vinha aqui.
Depois de muito andar, chegamos a um corredor sem continuação. Tokewater andou até o fim dele e puxou um livro de capa vermelha, um que parecia tão comum que jamais o pegaria por curiosidade.
Logo após puxá-lo, a parede começou a ranger, como se pedras se arranhassem, e logo até sons metálicos reverberaram, tais quais seriam diversas engrenagens enferrujadas agindo em comunhão.
Notei que surgiu uma linha na parede que marcava uma descontinuidade da superfície em formato retangular, como se fosse um bloco solto. Tokewater firmou os pés no chão e empurrou a estante, fazendo o bloco rotacionar e abrir uma passagem para uma caverna. Ela era escura e repleta de estalagmites, afiadas e pesadas como se fossem dentes de pedra. Facilmente perfurariam o crânio se caíssem em alguém...
O homem estalou os dedos, e diversas tochas nas paredes da caverna explodiram em um fogo azul, iluminando as superfícies rochosas e tortuosas. Ele seguiu adiante, os passos confiantes como se pouco temessem o que estivesse adiante.
— Venha, Flamel.
A verdade era que eu estava parado, atônito, observando aquilo. Era muito diferente dos corredores pelos quais andava no percurso entre o quarto subterrâneo e o prédio das aulas. As tochas nele não vibravam nessa cor misteriosa e estranha, e...
Uma brisa gélida como a neve soprou no meu rosto, jogando meus cabelos para trás. O frio súbito me fez ter um calafrio e cruzar os braços, tentando me aquecer. Deveria ser impossível para uma caverna ter uma corrente de ar assim, mas...
Dei um passo à frente e segui Tokewater adentro. Meu coração vibrava forte e alto no peito, como se trovões relampejassem no lugar dele. Ainda assim, foi a voz na minha mente que me fez vir até aqui e ela não mandou recuar, então não podia fazer nada além de seguir com fé...
— Onde estamos? — Ouvi o eco da minha voz se espalhando pela caverna. A cada eco, parecia que o som se tornava mais fantasmagórico e inumano, até ao ponto que fiquei assustado com minha própria voz. Engoli em seco.
O caminho que o mago corpulento seguia fez um contorno brusco à esquerda, o que me fez perdê-lo de vista por um instante. Meu coração tremeu e apressei o passo. Quando consegui alcançar a curva...
Ele estava lá. Normal, nenhum monstro. Respirei fundo, aliviado, e limpei o suor que se acumulava na testa.
— Na Câmara Secreta da Biblioteca — respondeu ele, num tom tão impessoal que o fazia parecer sem calor, sem vida igual a um manequim.
Apesar de todo receio, um sorriso se abriu no meu rosto. Quanto mais aprendia sobre a Academia, mais percebia que tinha zero de conhecimento sobre ela. E talvez nem os professores soubessem da complexidade e obscuridade dessa instituição.
O caminho continuou descendo por degraus talhados impecavelmente, como se esculpidos pelas mãos de um artesão. A pedra deles era polida, embora da mesma cor e material do restante da caverna tão imperfeita e tortuosa. Era a clara diferença entre a natureza selvagem e a natureza moldada pela arte humana...
A escadaria desembocou num novo corredor, no qual, à direita, descansava uma porta fortificada e espessa de aço maciço. Por um instante, me senti como se dentro das trincheiras sujas e escuras da Segunda Guerra Mundial, encarando uma porta que seria capaz de resistir contra qualquer bomba ou tiro.
Observei que à esquerda seguia um outro corredor, muito mais escuro. Quando fui espiar o que tinha por lá, fui imediatamente interrompido:
— Cuidado. Se vir algo nesta Academia que não lhe seja devido, perder os olhos talvez seja a menor das preocupações — disse ele em um tom quase ameaçador.
Isso fez um arrepio se alastrar por todo meu corpo. Repreendi-me pela curiosidade exacerbada e fui junto dele à porta. Afinal, mais do que qualquer um, sabia do quão podre e medonha a Academia podia ser...
— Lyla! — falou ele alto e bateu na porta.
Poucos segundos após, diversos sons de chaves rodando em fechaduras se alastraram pelo corredor. Contei sete sons desses no total. Era um lugar bastante protegido.
Assim que o som se interrompeu, a porta se abriu com um enorme rangido, tremendo com o atrito contra o chão. O barulho do metal arranhando a rocha doeu fundo nos ouvidos...
Enquanto eu estava meio atordoado, Tokewater entrou na sala. Tentei ignorar o incômodo ainda persistente e o segui, para não o perder de vista. Logo que meus pés me levaram para através da porta, observei que...
— Identifique-se — disse firmemente uma voz feminina.
Era uma mulher com um vestido que cobria quase todo o corpo, cujas peças bordadas e elegantes eram compostas por tonalidades de cinza e preto, como um vestido gótico da alta nobreza. Seus cabelos prateados desciam até as costas como cachoeiras iluminadas pelo luar, fluidos e lisos.
Os olhos dela, porém, estavam cobertos por um tecido preto reforçado. As orelhas, pontudas, eram tais quais as de Melissa, embora se distinguissem por dois pingentes, um em cada orelha, com o símbolo de uma lua crescente cortada por uma espada.
— Sou eu, Thrun Tokewater — falou ele, fazendo uma reverência. Fiz o mesmo. — Este é Flamel Vandutch, aluno da Academia, do terceiro período.
— Entendo, senhor Tokewater. Contudo, a mana de Flamel Vandutch não está registrada. Por favor, retirem-se.
Tokewater, um homem tão grande e parrudo, diretor de uma Academia renomada como essa, recuou, como se estivesse diante de alguém que pouco poderia fazer alguma coisa contra.
— Ele me forneceu o código exato do li-
— Retirem-se, por favor — repetiu ela, a voz afiada ressoando com uma pressão tão densa e perigosa que me fez sentir como se meu pescoço pudesse ser decepado a qualquer instante.
Como Tokewater, dei alguns passos para trás, até que:
Aproxime-se dela, soou a voz da minha cabeça.
O choque que isso deu em mim foi imenso. Queria correr e sair dali o mais rápido possível. Estava em perigo iminente, cada parte trêmula do meu corpo tinha certeza disso. Só que...
Junto da voz na mente, uma energia estranha recobriu meu corpo. Era como se cada fibra do meu ser transbordasse mana e se revestisse com uma força sem igual. Olhei para a moça, e seu cabelo balançava mais devagar. Tokewater também se movia lentamente. O mundo inteiro aos poucos se congelava diante dos meus olhos.
Meu coração se acalmou, uma confiança transcendental se apossando do meu ser. Não a neguei, e a deixei que me guiasse.
Caminhei em direção à moça sem medo, até a encarar face a face.
Levantei minha mão e a aproximei do rosto dela. Senti como se incontáveis espadas e adagas estivessem preparadas para dilacerar e massacrar cada centímetro dos meus membros e órgãos. Seria feito em pedaços, começando pela mão que se colocava perto dela.
Ainda assim, encostei a palma da mão em sua bochecha e a acariciei com os dedos. No fundo, ouvi a voz distorcidamente lenta do Tokewater gritar:
— Não!
Mas pouco me importei. Dos meus lábios, brotou um sorriso, quase nostálgico. Vi a adaga dela se aproximando do meu pescoço em velocidade absurda, tão rápida quanto um flash mesmo com o mundo tão lento. Porém, em vez de temer, pronunciei um simples:
— Abacate mágico.
Em um só instante, o mundo inteiro retornou à velocidade normal. A adaga dela voou até meu pescoço tão rápido quanto um trem, e parou quando já havia cortado milímetros dele. O vento produzido pela sua força descomunal fez com que um furacão parecesse se instalar na sala, tão forte que empurrou minhas bochechas contra os dentes.
O sangue quente do corte escorreu pela camisa, tornando-a pesada e colada ao peito. Foi naquele momento, encarando a venda dos olhos dela, que...
— M-mestre?! — A voz dela se fez trêmula e confusa.
Seu corpo começou a tremer e deixou a adaga cair ao chão, cuja lâmina perfurou o solo de pedra como se fosse manteiga. Aquilo estava prestes a me decapitar...
— Não... Não é... — Ela balançou a cabeça, presa nos próprios pensamentos. Colocou as mãos nas minhas bochechas, puxando minha mana para si e cortando o fluxo de forma que eu não sentia absolutamente nada do corpo ou da alma dela. — Sua mana roxa é igual a dele, mas...
Olhei de soslaio para Tokewater, que estava ao meu lado, coberto de suor. Podia ver em seus olhos tanto tensão, como se preparasse para ver seu estudante sendo degolado à sua frente, quanto confusão, de quem presencia algo inexplicável e impossível de ocorrer.
— Há uma mana azul que não combina nem um pouco com ele... Quem é você, afinal? — disse ela, soltando meu rosto e dando um passo para trás. — E como sabia da senha do Abacate Mágico?
A pergunta dela fez meu coração parar por um segundo. Como iria provar isso? Não sabia nada sobre meu dom ou essa súbita inspiração, eu...
Antes que me desesperasse mais, notei que os olhos de Tokewater refletiam um brilho roxo forte, ainda mais intenso do que quando lhe solicitei o livro. Era como se chamas daquela cor tomassem toda a sala com tamanha beleza e resplandecência. Aquilo vinha de mim?...
— Você... — falou ela, a voz anormalmente aguda como se precedesse um momento de sensibilidade e vulnerabilidade. — E-entendo... Você é permitido na Biblioteca das Almas.
Tokewater, que até então estava imóvel e parado como uma estátua, pareceu ter o queixo caído.
— C-como?!
As palavras do homem, porém, encontraram o olhar gélido da mulher, que mais parecia um par de lâminas de gelo. Tokewater engoliu em seco, engolindo também as perguntas que queria fazer.
Não pude deixar de dar um suspiro longo e lançar um olhar de reprovação a Tokewater. Esse filho da mãe deveria ter me defendido. Ele quem me trouxe aqui...
— Mich... Digo, Flamel... — disse a elfa. O fato de ela ter quase mencionado meu verdadeiro nome me fez ficar sem ar, não tão diferente do que seria uma mão sufocando meu pescoço à força bruta. — Perdão. Devo-te uma apresentação mais adequada. Sou Lyla — ela puxou a saia e se curvou, igual faria uma princesa da corte —, a guardiã da Biblioteca das Almas. Se alguns castelos possuem uma sala secreta apenas para guardar ouros e joias, aqui seria o equivalente na Academia.
Fiquei meio sem jeito com a mudança de comportamento dela e com a formalidade. Tentei me curvar também, uma mão nas costas e outra no peito.
— É um prazer, Lyla.
Ela reergueu a coluna e pôs-se a andar até a porta de ferro. Fechou-a e ficou em silêncio, entregando-se a uma meditação repentina e profunda. Dela, vi um brilho prateado da cor dos cabelos surgindo, que a envolveu como um manto, circundando o próprio corpo numa espiral que subiu até o teto.
Mesmo que não estivesse tão perto dela, senti fortemente aquela mana. Não era opressiva e agressiva; parecia perfumar o ambiente com um cheiro de... segredo, mistério, semelhante à natureza enigmática contida no luar de um céu sombrio. Era suave e agradável, mas provocante à mente e à reflexão. Pensei nos sete elementos usuais, mas nenhum se assemelhava a essa energia.
Então, a porta começou a brilhar na mesma cor, surgindo incontáveis micro-runas esculpidas no aço com precisão cirúrgica.
— Desculpa pela demora. A sala onde vocês estão não é a Biblioteca das Almas, apenas uma “câmara secreta” que finge esconder algo de valor. Sigam-me.
Lyla abriu as portas e, em vez de ter lá o corredor do qual viemos, meus olhos presenciaram um salão enorme, de luminárias esplendorosas ao teto e mesas de vidros que empunhavam livros individuais, em vez de estantes com pilhas de livros onde cada um deles era “só mais um”.
Maravilhado e até assombrado pelo que via, segui-a adentro da sala. Tokewater veio atrás de mim.
Uma vez que meus pés tocaram a cerâmica fina e com toques esculpidos a ouro, fui invadido por um turbilhão de manas tão intensas e poderosas que pareceram comprimir meu corpo. A sensação era semelhante às cenas de filme em que o ator, preso numa tumba, se vê sendo esmagado por duas paredes que ininterruptamente se aproximam uma da outra.
O salão, que antes era tão bonito, foi contaminado por uma coletânea de cores, como se fosse uma pintura cujo artista de repente jogou um balde de cores distintas. Vermelho explodia em chamas ardentes, que me faziam ferver igual naquele mundo infernal; azul-claro vinha de repente, como uma tempestade de gelo, gelando toda a energia vital do corpo; verde intenso, crescendo como raízes pela sala, senti como se prendesse meu corpo e me forçasse para dentro do chão, como se quisesse me enterrar para sugar minhas forças.
Mais dezenas de energias de cores diferentes me assaltaram simultaneamente, cada uma querendo tomar a mim como escravo, como fonte de vida para roubarem. Minhas pernas perderam a força e minha cabeça, aturdida como se levasse trinta socos diretos no crânio ao mesmo tempo, se desligou por um segundo, incapaz de processar tudo aquilo.
— Ordem! — gritou a guardiã, mas a voz dela era tão distante, como se estivesse quilômetros de distância de mim.
Comecei a me desligar cada vez mais, até...
— AHHH! — Respirei descontroladamente assim que comecei a ter acesso ao ar de novo, o qual as energias haviam me roubado.
Com aquele grito, a elfa conseguiu fazer as manas pararem de me atormentar, ao ponto de nem conseguir mais enxergar suas cores ou sequer senti-las.
— Você está bem? — perguntou Tokewater, me forçando a ficar sentado e batendo nas minhas costas.
A mana dele se irradiou pelo meu torso, concentrando-se no meu pulmão. Para minha surpresa, consegui respirar duas vezes mais profundamente com o feitiço que ele usava em mim. Recuperei-me depressa, em poucos segundos já não suava mais.
— Obrigado.
— O que aconteceu com ele? — Tokewater lançou um olhar severo à Lyla. Finalmente o desgraçado tentava me proteger...
A guardiã correu até mim e, se ajoelhando, repousou a mão no meu peito. Ela me fitou com olhos esguios e tristes, como se quisesse pedir perdão do fundo da alma.
— D-desculpe... É que esses livros possuem um resquício tão poderoso da mana de seus autores que é exatamente como se eles ainda estivessem vivos neles, com alma e tudo. Diversas dessas almas tentaram fazer um contrato com você, antes que outras conseguissem.
— Contrato? — falei, já mais recuperado.
— Sim. Existe um contrato de mestre-aluno para aprender as artes dos grandes mestres, como são os autores desses livros. Em troca do poder e dos conhecimentos, pedem coisas como sigilo total sobre as técnicas ensinadas. Alguns deles também refazem seu sistema de mana, reestruturando-o para ter mais afinidade com certo elemento ou subelemento, às custas de perder a habilidade com os demais. Cada mestre tem seus próprios termos e condições.
Embora ainda estivesse meio aturdido, consegui entender a explicação dela. Com dificuldade, mas apoiado pelos dois, consegui me por de pé.
— Isso é novidade para mim...
— Na Academia, só trabalhamos com feitiçaria — começou a explicar Tokewater. — Esses vínculos de “contrato mestre-aluno” são só na magia, num caminho muito mais amplo e místico que nossas pesquisas são capazes de traçar. Então não faz parte da ementa introduzir os alunos a esse tipo de coisa.
Acenei com a cabeça. Isso me levava a novas perguntas... No começo, achava que tudo era feitiçaria. Depois, descobri a existência de magia. Em seguida, me foi revelado haver dons. E agora, por fim, descubro que há até artes de magia ensinadas de mestre a aluno. Talvez houvesse “artes secretas de clãs” e coisas assim, como eu lia nos livros de fantasia da Terra. Tudo isso era doido demais...
Meus olhos exploraram os livros à minha frente. Deveria haver ao menos trinta deles, cada um segurado por uma plataforma de cristal como se fosse uma espada sagrada a ser empunhada.
— Por favor, Flamel. Escolha um dos livros — falou Lyla, se curvando um pouco.
— E-eu posso?
Qualquer livro daqueles parecia muito mais do que um aluno como eu poderia sonhar...
— Sim — disse ela sem hesitação. — Porém, contente-se com um apenas.
A confiança na resposta dela me tranquilizou. Isso deveria ter alguma coisa a ver com o tal do "abacate mágico" ou algo assim.
— Muito obrigado. — Curvei-me também, com um sorriso ansioso que só crescia no rosto.
Voltei a andar, admirando as diferentes capas, como um rei escolhendo quem será seu cavaleiro. Até que...
— Michael~ — Ouvi uma voz estranhamente familiar que fez meu coração vibrar. Era muito parecida com a da Violette...
Olhei na direção dela e avistei um livro de capas vermelhas da cor do fogo. Sem dúvidas, era aquela mulher que encontrei durante a meditação com a Aithne. Comecei a andar na direção dele, curioso, até que...
— É essa que será a sua escolha?
Foi uma voz pesada e rouca, quase que sem brilho. Virei para trás e me assustei ao deparar com um cavaleiro de armaduras negras e robustas, de quase dois metros de altura. A armadura, esmurrada e sem-brilho, lembrava-me uma montanha na escuridão da noite. O elmo me impossibilitava de ver seu rosto.
Apesar de tudo, o detalhe que mais chamava minha atenção era uma espada de cerca de três metros de comprimento que repousava em suas costas, bem maior que ele próprio. Ela era branca, uma cor tão suave e delicada quanto a neve.
Uma aura preta circundava o corpo dele, mas coexistia com a mana branca que ganhava vida na espada maciça. Os dois eram como yin e yang, dois opostos coexistindo e se complementando.
— Q-quem é você? — falei. A estranha aparição dele me fez ficar com um pouco de medo.
Diante da minha pergunta, ele pareceu rir.
Quando pisquei os olhos, de repente me vi o encarando dentro de uma floresta noturna, embora não tão sombria, com um forte luar a nos iluminar. Ao meu lado, havia um riacho cercado por grandes pedras. O cavaleiro se sentou sobre uma delas, e a espada pareceu se tornar uma com a lua ao céu.
— Quem sou eu? É algo que também procuro responder, Michael. Estaria eu mais próximo da escuridão, da luz suave da minha espada, ou até... — Ele estendeu a mão, e um intenso brilho roxo, meio violeta, a recobriu. Era muito parecido com o meu que vi refletido nos olhos de Tokewater. — Roxo, enigmático como o vazio? Não posso te dizer muito. Talvez eu seja uma mistura de tudo.
— V-você tem um nome? — ousei perguntar. Afinal, se isso fosse uma tentativa de contrato, deveria saber alguma coisa para aceitar ou rejeitar.
— Popularmente, sou mais conhecido como Omnix Beytran. Porém, é apenas um pseudônimo, que me serve tal qual uma máscara que esconde o rosto. E não te preocupes com contrato. Não tenho esse tipo de coisa. No entanto, temo que não poderás escolher mais de um livro. Vês esse riacho, essa floresta?
Acenei que sim com a cabeça.
— Reconheces este lugar?
Observei melhor as árvores, a água, as rochas... Realmente não sabia onde estava.
— Não.
— Aqui, muito em breve, tomarás uma das escolhas mais importantes da tua vida. Determinarás parte do teu caminho. A depender do que escolheres, diversas portas se fecharão, nem que temporariamente. Apesar disso, uma coisa em comum a todas elas é a impossibilidade de retornar à Biblioteca das Almas. A escolha do livro agora te iniciará por um caminho que em muito terá influência na tua jornada.
— E como espera que eu escolha sem mais informação? Sei nada sobre você ou sobre a mulher de fogo. — Andei à frente, aproximando-me dele. Tentei ver seus olhos no vão do elmo, mas tudo que enxerguei era escuridão.
— Quantas vezes na vida terás que tomar escolhas importantes sem qualquer preparação ou informação a mais?
— Mas você poderia me ajudar...
— Por acaso, quando a “voz na sua cabeça” lhe disse para não adentrar na sala em que o garoto estava sendo torturado, você a ouviu? Se eu te der algum conselho, adiantará em algo, ou no fundo continuará a trilhar seu caminho com seus valores próprios?
— Foi você?!
— Essa resposta não terás, mesmo que sejas um jovem curioso. No entanto... — Ele olhou fixadamente para mim; eu sabia disso, mesmo que não pudesse ver seus olhos. — Vou te retornar à Biblioteca das Almas. Só peço que faças tua escolha com base nos teus valores, no que queres para ti e para o mundo, como sempre tens feito. Não possuis muita informação sobre os livros, mas podes sentir a mana deles, seu perfume, seus sentimentos; isso já é muito mais que o bastante. Escolhas bem, Michael. Aproveitais vossa nova vida.
O cavaleiro estalou os dedos, e de repente eu estava de volta à Biblioteca. Tokewater e Lyla me olhavam de longe, mas não se aproximaram. Pela falta de surpresa deles, talvez a minha conversa tenha acontecido sem que o tempo passasse no mundo real.
Depois de respirar fundo por alguns minutos e me acalmar, andei pelos diversos livros, analisando um a um. Felizmente, depois da interferência inicial de Lyla, nenhum tentou me atacar. Não houve outro livro que me transportou para outro mundo ou me fez conversar com uma entidade sobrenatural, mas consegui tocar os “sentimentos” de cada uma das manas.
Houve aquelas mais calmas e serenas; outras revoltadas e tempestivas; tinha as corajosas e resistentes; outras mais racionais e reflexivas. Havia, conforme eu sentia, magias mais próximas do fogo, outras do subelemento magma. Encontrei uma de natureza que pareceu criar raízes no meu peito, mas a deixei para averiguar outras.
Finalmente, cheguei no último livro. Era um de capa preta e fosca com letras brancas em alto relevo, com o título de “Magia da Alma”, de Omnix Beytran. As páginas eram roxas, embora não conseguisse abrir o livro.
Repousei a mão sobre a capa e senti a mana do livro. Ela era intensa e sufocante, um emaranhado de oscilações entre luz, trevas e uma energia diferente, por vezes amarga, por vezes bela.
Associando isso ao título da obra, era como se representasse as diferentes emoções humanas nos seus estados mais brilhantes e nos mais perigosos. Acima de tudo, porém, uma porção de sentimentos específicos parecia reinar sutilmente nas entrelinhas das emoções, composto de... culpa, arrependimento e a esperança de um recomeço? Era difícil por em palavras uma linguagem que só o coração é fluente.
Além desse livro, havia todas as mais de trinta opções, desde as que poderiam ser vistas como “poderosas” ou “roubadas”, como fogo ou escuridão, até outras que se voltariam à cura ou à pesquisa científica. Mesmo assim...
Lembrei-me que, no livro que recebi da Aithne antes do primeiro incidente com o monstro, o autor era também o Omnix Beytran. E o livro que minha mente ordenou vir buscar era esse que via agora. Foi a minha mente, essa voz misteriosa que tem me ajudado desde o começo, que me orientou a vir buscá-lo. Havia algo mais profundo nisso que eu não conseguia compreender.
E, além de tudo, magia da alma era algo que estranhamente me chamava a atenção. Talvez porque me lembrava um pouco a Psicologia que estudei na Terra, talvez porque sempre quis entender melhor as pessoas à minha volta, inclusive a mim mesmo. E esse tipo de magia parecia extremamente poderosa, com mais possibilidades que algo como um fogo que está fadado a só queimar, ou o gelo, a congelar.
Peguei o livro com mãos firmes.
— Tens certeza disso? — falou o cavaleiro através da minha mente.
Acenei que sim.
— Tenho.
O cavaleiro riu, uma gargalhada pesada e robusta.
— Entendo. Será um prazer trabalhar convosco, Michael.
Um sorriso se abriu nos meus lábios. Meu coração, que até então estava agitado pela insegurança, começou a se acalmar. Era a escolha certa. Sentia isso.
Andei até Lyla. Ela sorriu para mim.
— Você combina com este livro. — Ela afagou minha cabeça, como se eu fosse uma criança.
Ri e falei:
— Talvez.
— Vamos? — disse Tokewater.
— Vamos.
Assim, Lyla abriu a porta e nos levou de volta à “falsa biblioteca das almas”. Então ela fechou e abriu a porta de novo — e lá estava o corredor usual, como se a Biblioteca das Almas nunca tivesse existido.
Tokewater e eu saímos. Lyla se curvou e se despediu de mim:
— É um prazer conhecer alguém como você.
As palavras dela me fizeram completamente sem jeito. Cocei a cabeça e sorri meio envergonhado.
— O prazer é todo meu, Lyla. Obrigado pela gentileza.
Ela sorriu uma última vez, antes de fechar a porta e trancar todos os cadeados. Enquanto eu ainda sorria, embora meio confuso sobre ela se referir a mim como se fosse alguém tão importante, Tokewater bateu forte nas minhas costas.
— Não sei o que aconteceu, mas nunca esperaria ver algo assim na minha vida... — comentou ele.
— Nem eu. — Não que eu pudesse falar isso com propriedade, porque nada desse mundo era algo que eu esperava que aconteceria um dia...
Caminhamos juntos até a biblioteca. Inevitavelmente, silêncio recaiu entre nós, mas era um silêncio bem menos áspero e frio que o de antes.
Quando entramos na biblioteca, me virei para ele e o agradeci pela ajuda. Despedimo-nos e segui com minha jornada, carregando o livro nas mãos e quase pulando de alegria por ter algo assim. Era magia da alma. Magia da alma, algo que ninguém nunca estudaria na Academia, e quiçá um mago de verdade saiba de qualquer coisa do assunto. E aprenderia isso com um livro protegido a sete chaves na Academia...
Era uma sorte indescritível. Indescritível demais.
Uma lágrima chegou a escorrer pela minha bochecha. Nunca imaginava que eu, alguém tão perdido e despreparado, conseguiria chegar até aqui. O antigo Michael, que vivia recluso dentro do quarto, nunca conseguiria se imaginar como alguém treinando pesado, confortando corações e lidando com terrores que poucas pessoas seriam capazes de suportar.
Porém, aquela alegria me fez esquecer de que, quanto mais forte a luz, mais fortes são as sombras, e mais insetos esgueiram à procura da luz, até sujá-la com sua podridão...
Entrei no prédio das salas de aula, no caminho para o quarto subterrâneo, quando me deparei com três rapazes andando pelo corredor. Um deles era Cyle, com o cabelo lambido que se tornou o apelido dele nos últimos dias por minha causa.
Encolhi meus ombros e tentei passar despercebido por entre eles. Porém, meu peito congelou quando ouvi Cyle dizer:
— Flamel? Você aqui por essa hora?
Apressei o passo, querendo sair dali o mais rápido possível. Mas a mão dele agarrou meu cabelo e me puxou para trás com uma força descomunal, fazendo eu cair de costas no chão.
Antes que eu pudesse me levantar, o sapato dele pisou no meu peito e se afundou na minha carne, pressionando minhas costelas com uma força que poderia rompê-las a qualquer momento. A dor estridente me fez ranger os dentes.
— Temos algumas contar a acertar, Flamel. — Cyle sorriu, um sorrisinho sádico e cruel que parecia encarnar o diabo no próprio corpo dele.