O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 30: A Conversa

— Então quantos mestres existem?

— Um número exato?  Impossível dizer. Há aqueles que foram expulsos do leilão, há aqueles que não participam por variadas razões; os banidos e os que não podem participar por serem iniciantes demais. 

— Então deixe-me reformular a pergunta. Quantos mestres participam do leilão em média?

— Em média? — Ela parou um pouco para pensar e coçou a cabeça. — Não sei a média, mas o número de participantes esse ano é de setenta e dois mil mais ou menos.

Mantive um rosto solene, mas por dentro eu apenas travei. Saber que havia outros 72.000 mestres era assustador. Eu me senti claustrofóbico. Estava em pânico. 

Aquela vozinha no meu ouvido, aquela mão gelada que tocava meu ombro e dizia: “deixe-me assumir o controle, deixe-me ser Kayn, deixe-me ser a gente”, já estava tocando no meu ouvido.

Contive a mente serena com esforço e me acalmei. Uma gota de suor escorreu pela minha testa e o som baixo nem mesmo ressoou, mas, pelo olhar de Celine, ela percebeu.

— Surpreso? 

— Muito — disse sinceramente.

— É, a maioria se sente assim. Mestre Kayn, agora é minha vez. Qual a sua raça?

Ela tocou num ponto delicado. Em Vanglória nephelins não eram muito adorados, principalmente aqueles que eram meio-sangue: metade demônio e metade anjo.

Eles eram presos, torturados e usados como máquinas de guerra por ambos os lados. Eram naturalmente mais fortes que os pais e não possuíam fraquezas normais. Porém eles eram tratados como animais.

Entretanto minhas asas estavam ocultas, minha pele tinha um tom parecido com o de um ghoul e os meus olhos eram simplesmente incomuns. Ela não poderia suspeitar ou fazer suposições.

— Sou uma quimera — menti.

— Uma quimera, né? Nunca vi uma como você.

— É, pode se dizer que sou uma especial. — Eu ri, contendo o nervosismo.

— Sua vez de novo. Pergunte.

— Consigo ver pela maneira como tratam você e a maneira com que tratou aquele homem. Há uma hierarquia entre os mestres, isso tenho certeza, mas como ela funciona?

— Uma hierarquia? — Ela outra vez deu uma tragada e tossiu um pouco. — É, algo assim existe, mas não como você pensa. Não há cargos e muito menos uma ordem específica. Os fortes estão em cima e os fracos abaixo.

— E quem são os fortes?

— Mais de uma pergunta, mestre Kayn? Está é minha vez.

Acenei com a mão para que ela perguntasse.

— Você consegue ouvir a voz do criador?

Olhei nos olhos dela sem piscar. Eu não sabia responder bem aquela pergunta.

— Eu não entendi direito o que você quis dizer.

— Você escuta uma voz mecânica, um pouco parecida com a da mestra golem, tocar no seu ouvido às vezes. Vou dar um exemplo, quando você chegou até aqui.

— Não são todos que podem ouvi-la? 

— Ha! — Ela riu alto, mas não parou. Começou a gargalhar próxima de quase cair da cadeira. — Então realmente você escuta!

Na verdade eu consigo até mesmo ver; mas, como você não perguntou, não entrarei no assunto.

Essa voz que você escuta é a voz do criador. É a prova de que ele existe. Mestres normais não podem ouvir sua voz. A única forma que seres normais tem acesso ao criador é pelos Núcleos Vazios.

Um sinal de interrogação enorme surgiu na minha cabeça. Se eles não tinham acesso ao sistema, como criavam monstros? Como sabiam das habilidades que tinham? Como conheciam a própria força? E por fim...

— O que é o núcleo vazio?

— O núcleo vazio? Essa pergunta eu respondo de graça. Você sabe o que acontece com o núcleo de um mestre quando ele morre?

Eu engoli seco. Em Vanglória, eu possuía a imortalidade. Todos os jogadores voltavam a vida pelo cetro de Anúbis, então isso nunca passou pela minha cabeça.

— Eles se tornam núcleos vazios?

— Exatamente. Os humanos e outras raças usam eles para ver o que eles chamam de “informações”, vendo suas classes, suas estatísticas e habilidades. Mas nós mestres podemos absorvê-los. Isso nos dá a capacidade de ouvir a voz do criador. Porém você, mestre Kayn, você nunca absorveu um núcleo, certo?

— Não, nunca, e essa é sua segunda pergunta, agora eu também tenho duas.

As coisas estavam se tornando complicadas. Eles tinham que usar outros itens para acessar o sistema, então como podiam...? Mais dúvidas se acumulavam, mas eu ainda tinha como descobrir.

— Esperto você. Pode perguntar.

— Quem são os fortes? 

— Como disse, não há uma hierarquia definidinha e estruturada com leis, normas e regras, então os mais fortes mandam e a estrutura é simples. Há os novatos, mestres como você que acabaram de cumprir os requisitos para participar do leilão. Há os mestres que participam do leilão há mais tempo; eles são mais experientes e tem níveis aleatórios de força, mas ainda não são a elite.

— Então quem é a elite?

— Aí chegamos em mim. Aqueles mestres escolhidos como guias para os novatos são a elite. Somos tão poderosos que não precisamos nos importar com vocês novatos. Vocês não possuem nada que nos interessa.

Eu senti como uma bala lotada de sinceridade batesse contra o meu peito.

— Mas existem aqueles acima de vocês?

— Sim, há aqueles. Os mestres novatos os apelidaram de Reis Celestiais e seus Duques.

— E quem são eles? — Eu estava nitidamente impaciente.

— Calma, Kayn, já irei explicar. — Ela soltou uma enorme cortina de fumaça que formava um morcego acima da mesa — Um deles você já conheceu, o Rei Celestial do medo, Amadeus Black, o Vampiro Primordial.

Um calafrio desceu pelo meu corpo.

Apenas me lembrar dele já causava arrepios. Um ser tão intocável que nem parecia mais estar vivo. Uma parede de tijolos estava entre nós; não! Uma parede era pouco. Amadeus era mais como um cordilheira de montanhas intransponível. 

— Realmente a sua alcunha combina.

— Ah, Kayn, Amadeus é o menos perigoso. Ele não se envolve com conflitos banais e ninguém sabe sua verdadeira força. Até mesmo seus duques são mais perigosos do que ele.

— Quem são seus duques? — Eu já estava fazendo perguntas demais, porém Celine não pareceu querer me fazer outras, então continuamos.

— Os duques dele são o Louco Rei Lich; O Cavaleiro do Apocalipse: Morte, uma calamidade em todos os sentidos da palavra e, por fim; O Príncipe das Feras, um Lobisomem Fenrir.  Todos são mestres de suas respectivas masmorras e extremamente poderosos.

— Por que eles são mais perigosos que seu mestre? — Se o Vampiro Primordial era tão poderoso, porque ele não conteria seus subordinados?

— Eles vivem livremente e fazem o que querem. Existe até um rumor que o Cavaleiro do Apocalipse deseja ir contra o próprio mestre. Em suma, eles são imprevisíveis e perigosos. Cada um com capacidade de varrer um reino do mapa sem muito esforço. O mais perigoso deles é o Rei Lich. A magia negra consumiu a mente dele completamente.

Eu respirei fundo. Esse lugar era simplesmente perigoso demais. Eu estava sentado a poucos metros de bombas nucleares que poderiam explodir por simples insultos.

— Mestre Kayn, você ainda consegue me ouvir?

Estava tão perdido nos meus pensamentos que acabei nem reparando que perdi minha compostura.

— Estou bem. Só preciso de um tempo para absorver isso. Conte-me sobre os outros Reis Celestiais e seus duques.

— Bem... 

❂❂❂

A conversa durou por mais algumas horas e finalmente tive as respostas que desejava.

— Bem, mestre Kayn, estou de saída. Quando estiver pronto, podemos nos encontrar no salão. Tente não perder o evento principal da noite. 

Eu acenei com a mão e fiquei sozinho no bar da medusa, encarando o teto por um tempo.

Havia sete Reis Celestiais e cada um tinha um número aleatório de Duques, então era simplesmente aterrorizante pensar nisso. 

E os duques eram apenas outros mestres de masmorra que serviam a eles. A possibilidade deles terem ainda mais subordinados era maior ainda.

Ainda assim, havia algo de positivo nisso tudo.

Um dos Reis Celestiais é um humano. O Rei Celestial da Loucura.

Ele não participava do leilão fazia anos, mas ele era um mestre da masmorra e era isso que importava. Talvez se eu o encontrasse, ele poderia me contar como sobreviveu tanto tempo entre monstros.

Além do Rei Celestial humano, todos os outros estavam entre as fileiras dos deuses, calamidades e imperadores. Forças ainda mais aterrorizantes e desconhecidas.

A cada bater do meu coração, sentia as energias do meu corpo fluindo em harmonia, mas minha mente estava quase que em colapso. Nem mesmo sei como controlei tão bem a mente serena; o outro cara continuava a cochichar no meu ouvido até agora.

— Cristal, vamos ficar bem, não é? — Olhei para a loba que sentava ao meu lado e ela deu uma lambidas na minha mão. — Vai ficar tudo bem...

Imperadores, deuses e calamidades: eu era pequeno perante eles. Um ser insignificante que poderia ser simplesmente pisado e jogado fora.

Se eu quisesse sobreviver, precisava jogar fora qualquer ideia de grandeza. A melhor opção, para viver bem, era manter um perfil baixo.

— Se eu não mexer com ninguém poderoso, poderei viver em paz. 

Talvez não, porém era a melhor opção no momento.

Eu não sou o melhor do mundo.

O peso daquelas palavras nunca foi tão grande. Eu havia chego no fundo do poço, podendo apenas me agarrar a esperança de poder viver em paz.

Droga! Droga! DROGA! 

Eu poderia me levantar naquela hora, pegar minha lança e destruir todo lugar. Arremessar e liberar  todas as minhas habilidades ao mesmo tempo para que minha raiva, aquele meu sentimento de insignificância, finalmente passasse.

Eu era o melhor do mundo! O maior de todos os jogadores. Tudo foi somente sorte? Eu não tinha reais competidores? Eu poderia merecer sentir tédio? Eu poderia desejar mesmo ter controle sobre tudo e todos?

Eu sou merecedor disso tudo?

Os pensamentos me afogavam mais e mais. A única coisa que me segurava entre a lucidez e a loucura eram as leves lambidas reconfortantes da loba branca.

— Obrigado, Cristal.

Ela acariciou meu braço com a sua cabeça. Eu me ergui da cadeira e sai andando do bar. Com um simples querer na mente: viver em paz.

Enquanto andava para o lado de fora, pensei em uma das perguntas da nossa conversa. 

Como mestres criavam monstros?

Quando perguntei isso, ela me deu um olhar estranho. Até pensou que estivesse brincando com a cara dela, porém era uma pergunta sincera.

Eu criava monstros por meio dos emblemas e dos pontos, como os outros mestres faziam isso? A dúvida me matava.

Eles usavam o seu mana para isso. Os mestres possuíam uma habilidade chamada: criação de monstros. Eles precisavam entender a anatomia do monstro criado e colocar seus próprios elementos nas criaturas.

Por isso a maioria dos mestres possuía apenas monstros dos seus emblemas. Os emblemas também faziam parte do processo; ao invés de um caldeirão, eles precisavam fazer manualmente.

Havia também a opção de capturar monstros de fora e usar alguma habilidade ou item que os fizesse virar seus servos. A vantagem do uso de mana era que os monstros criados dependiam exclusivamente da força do mestre.

As desvantagens eram o cansaço, a quantidade de mana, a chance de falha e o número limitado de monstros que poderiam ser criados. Porém com o tempo e experiência, criar alguns tipos de monstros era simplesmente quase que automático.

Celine contou que poderia criar uma matilha de lobos inteira com um único estalar de dedos e isso sem cair uma gota de suor.

Entre usar pontos e criar monstros com mana, eu achava a opção dos pontos bem melhor. Os monstros nunca nasceriam no seu auge de força, isso era possível com a habilidade deles, mas pelo menos a variação do meu poder era bem melhor.

Mesmo assim, se eu tivesse a habilidade criação de monstros poderia simplesmente criar um dragão do nada. Eu conhecia sua anatomia como a palma da minha mão.

Bem... não adianta chorar pelo leite derramado.

Finalmente cheguei do lado de fora do bar da medusa. Percebi que a multidão movia-se toda para uma mesma direção, então os segui.

 

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